O episódio da represa

Toda manhã quando acordava, ouvia minha mãe a cantar e repetir uma linda canção. Fazia isso enquanto lavava a roupa. Era uma música que não se ouvia mais no rádio. Mas, certamente levava-a de volta a um tempo bom. Recordava-lhe a juventude. Uma música triste, porém, de rara beleza. Melodia singela que embalava palavras que falavam de amor.

Eu ficava na cama a ouvi-la cantar. Ficaria ali por horas seguidas prestando atenção em cada sílaba. Em cada nota. Era uma bela canção sem sombra de dúvida. Fazia votos que tornasse a repetir. Só me levantava quando outros afazeres faziam-na parar de cantar. Então, ia à cozinha tomar café com pão.

A aula era às onze horas quando me metia no uniforme azul e branco e saía em direção à escola. Não sem antes degustar um almoço preparado com todo carinho. Do jeito como são preparados todos os pratos de todos os filhos de todas as mães. Um beijo no rosto, a benção e saía a balançar a bolsa que segurava pela alça. No ritmo dos passos. Para frente, para trás. No caminho distraía-me com uns poucos automóveis que passavam. Soltava a bolsa no chão e pendurava-me no galho de uma árvore para balançar. Sempre na mesma. Pois era a única que me dava dote de alcançar num salto. Encantava-me com todas essas coisas. Mas, chegava sempre na hora. Levaria uma surra se chegasse atrasado ou faltasse à aula.

A chuva fina caía naquela manhã de outono, quando tive uma ideia a caminho da escola. Eu sempre gostei de nadar e nunca tive permissão dos meus pais para fazê-lo. Temiam o ataque de uma faringite crônica que eu tinha por moléstia. Adorava ver as águas da represa de captação. A única na época a abastecer a cidade. No lugar havia - e ainda há - um tanque redondo, que era cheio pela cachoeira que caia do reservatório maior. Ali, os meninos da minha idade divertiam-se mergulhando de uma pequena plataforma. Os adultos também lá iam se banhar aos sábados e domingos quando não tinham que ir trabalhar. Achava fascinante a superfície da água ora parda, ora esverdeada onde deitavam pequenas bolhas de espuma. Quando ia a passeio levado por eles, ficava a imaginar eu ali, vindo à corrida para saltar do trampolim. A ideia era desviar-me do caminho da escola e ir para a represa. Naquela manhã chuvosa, não devia haver ninguém nadando. Teria ela, “a redonda”, só para mim, pensei. Assim estimulado, não hesitei em seguir a ideia e para lá me pus a caminhar.

Não era sonho. Meus dedos podiam tocar a água fria. Não sentia frio. Nenhuma criança sente frio diante de uma piscina. Isso é coisa de adulto. Estava tão feliz que me recusava a pensar que o tanque talvez não me desse pé. Mesmo assim, o instinto de defesa e o medo fizeram com que eu me sentasse na amurada e colocasse os pés na água tentando com eles tocar o fundo. Qual o quê! Sob eles, só água. Não pode ser! Não vou pular? Porque não sei nadar? Ah não! Não posso me furtar dessa aventura. Sonhei muitas noites enquanto dormia. Sonhei acordado muitas vezes durante o dia. Eu correndo só de calção. Sentindo o vento na minha barriga. Meu corpo caindo no espaço. O impacto com a água que eu só imaginara e não conhecia. Talvez o preço que devesse pagar compensasse. O que poderia acontecer? Morrer afogado? Morreria feliz porque fiz o que sempre sonhara. Conheceria a sensação de saltar para algo diferente de um monte de areia que eu sempre imaginava água. Se me livrasse do medo não teria mais que fantasiar.

Assim pensando, levantei-me da amurada e subi os poucos degraus de acesso a plataforma. Caminhei lentamente até o início dela. Fechei os olhos, cerrei os punhos, coloquei o pé direito adiante do meu corpo e quando ia começar a correr, senti uma mão agarrando o meu braço. Era meu pai, que informado da minha demora em retornar da escola, fora até lá e já sabia de tudo. Junto do meu tio e de dois vizinhos saíra a minha procura. Não lhe foi difícil imaginar o meu destino. Sabia do meu fascínio pela represa. Naquele momento, apenas segurou-me com firmeza pela mão e disse que em casa conversaríamos.

Não dera conta de quanto tempo havia decorrido. Quando me encontraram já passava de quatro e meia da tarde. Em casa, foi inevitável a surra de cinta e de chinelo. Meu pai e minha mãe me batiam, alternando-se com seus instrumentos. Ele, depois de cada cintada me chamava irresponsável. Ela, antes de cada chinelada, desnaturado.

Tempos mais tarde, descobri que o tanque, no ponto onde eu mergulharia, media no máximo um metro e vinte. Eu, aos dez anos, devia medir em altura mais do que isso. Não ia morrer a não ser de felicidade.