Odisseia tupiniquim
Carnaval de 2009. Eu e minha esposa vivenciávamos um sério dilema: ficarmos em Salvador para participar da folia carnavalesca ou viajarmos para descansar em algum lugar paradisíaco? Por dias permanecemos com essa dúvida cruel. Enquanto o tempo ia passando a pândega momesca já estava batendo à porta, sem que chegássemos a qualquer definição. Até que num bate-papo com o saudoso amigo Anísio e sua esposa Helena, falamos da nossa pretensão e os convidamos para viajar conosco. Sem pestanejar eles toparam a empreitada e, de comum acordo, escolhemos a localidade de Barra Grande no Baixo Sul Baiano para o nosso retiro. Tudo acertado, sexta-feira à tarde, a folia já começada aqui em Salvador eu, minha esposa, minha filha Tâmara, Anísio e Helena partimos para uma viagem sem qualquer planejamento logístico. Um verdadeiro tiro no escuro. Os efeitos dessa falta de planejamento já começaram na fila do Ferry Boat. Estava chegando ao bairro da Calçada. Depois de quase três horas de espera embarcamos. Já passavam das dezesseis horas quando desembarcamos em Bom Despacho. Botamos o veículo na estrada e seguimos viagem até Camamu, aonde chegamos aproximadamente às vinte horas, e nos alojamos numa pousada próxima a uma praça, onde havia um palco armado para uma festa. Após um refrescante banho saímos para lanchar e ao retornarmos demos uma rápida espiada na festa que já havia começado. De volta para a pousada as mulheres entraram para descansar. Para "matar" o tempo, eu e Anísio ficamos numa barraca de tiro ao alvo com espingarda de ar comprimido - comum em festas no interior - que ficava ao lado da pousada. Os alvos eram pirulitos, chocolates, bis e várias outras guloseimas. Compramos fichas e começamos a sessão de tiros. Como não tínhamos traquejo com aquelas velhas espingardas, erramos os primeiros disparos. Confesso que, apesar de na caserna ter treinado tiros com revolver, pistola, o antigo e pesado fuzil mauser 1908, metralhadora INA, etc, nunca fui uma sumidade em pontaria. Depois que peguei a manha da espingarda comecei a acertar os alvos em sequência. Parecia que havia baixado um poderoso santo sobre mim. Anísio, que também treinou tiros na Marinha, com diversos tipos de armas, efetuava, também, disparos certeiros. O dono da barraca já estava ficando cansado de tanto catar guloseima e colocar dentro de um saco de mercado que ele mesmo nos cedeu. Já havíamos enchido quase uma sacola, quando ele deixou um auxiliar tomando conta do stand e, sorrateiramente, deu uma rápida escapulida. Quando retornou chegou segurando uma espingarda com o cano torto e me propôs a troca. Eu estava tão endiabrado que um rapaz, trajando roupas surradas e que se encontrava à parte, em razão do meu desempenho no gatilho, ficou meu fã e passou a torcer freneticamente por mim.
Igualmente como ocorrera com a primeira espingarda, nessa segunda errei os primeiros tiros. Quando peguei a manha da nova arma, cujo cano apontava para o "lado onde a vaca correu para o brejo", guloseimas caiam em cascata; isto para desespero do barraqueiro que não sabia mais o que fazer para impedir que "quebrássemos a sua guia", como se diz no linguajar das jogatinas. Após enchermos duas sacolas de supermercado, com guloseimas, encerramos a noitada. O fã torcedor, impressionadíssimo, encheu-me de rasgados elogios. Não me contendo de satisfação e me sentindo de ego inflado, tirei cinco reais da algibeira e o gratifiquei. Pelo seu semblante, senti, a sua enorme satisfação em virtude da gorda gorjeta recebida.
Sobraçando as sacolas cheias de guloseimas, eu e Anísio, rumamo-nos para a pousada. Ao chegarmos com o fruto das nossas aventuras, fomos recebidos em grande estilo por nossas acompanhantes que, ainda acordadas, nos esperavam. Depois de deixarmos nelas a impressão de que éramos expert em tiro ao alvo, nos recolhemos todos aos aposentos, para dormir um justo e merecido sono, a fim de prosseguirmos a nossa imprevidente odisseia na manhã seguinte.
Sábado de carnaval. Acordamos e, lá fora, caiam chuvas torrenciais. Sentamos à mesa, tomamos café e, aproveitando a oportunidade, ofertamos metade das guloseimas que ganhamos para a cozinheira da pousada levar para seus netos. A outra metade ficou conosco para distribuirmos com crianças que encontrássemos no nosso trajeto. Debaixo de forte aguaceiro zarpamos rumo a Barra Grande. A estrada era de barro e já apresentava traiçoeiras poças d'água e intenso lamaçal. Com dificuldade chegamos a Barra Grande. O toró não cessava. Como não havíamos reservado pousada e estando num grupo formado por cinco pessoas, tornou-se muito difícil encontrarmos acomodações. Por sorte, quando já estávamos prestes a desistir da procura e partirmos rumo a Itacaré, encontramos uma que recebia os cinco hóspedes, mas, era uma verdadeira "espelunca". Contudo, em razão do dilúvio, resolvemos ficar ali mesmo. Choveu tanto que passamos o dia inteiro sem sair da pousada. Nem conhecemos os badalados encantos da vila. Quando o dia amanheceu, já domingo de carnaval, resolvemos tentar a sorte em Itacaré. Após o café partimos enfrentando novamente as alagadas e lamacentas estradas de barro. Ainda não existia a ponte para se chegar, via Camamu, a Itacaré. Tínhamos que pegar uma estrada vicinal de barro e fazermos a travessia numa balsa. A chuva teimava em cair torrencialmente, e as traiçoeiras poças se acumulavam em todo o percurso. Numa dessas gigantescas poças, obstáculo em que paramos para decidir se continuaríamos a viagem ou retornaríamos para Camamu, decidimos por atravessá-la. Anísio arremeteu o seu Honda Civic para vencer a enorme poça, mas, para nosso infortúnio o para-choque do veículo bateu em algo lá no fundo e desparafusou. Ficou com um lado arrastando. Esperamos que passasse algum veículo e alguém nos desse socorro, mas, foi uma espera em vão. Para nossa sorte Já avistávamos Itacaré a aproximadamente uns oitocentos metros. Nova dúvida nos assaltou: como seguir em frente com o carro arrastando o para-choque despencado? O veículo não possuía bagageiro de teto, o porta-malas além de não caber a peça, estava apinhado de bagagens, e, ainda conduzindo cinco passageiros no seu interior. A chuva só aumentava. Mesmo enfrentando um verdadeiro dilúvio a solução encontrada foi: este que vos fala ir andando debaixo de todo aguaceiro, segurando o lado arriado do para-choque, e Anísio, ao volante, desenvolvendo a surpreendente velocidade de uns dez quilômetros por hora conduzindo os demais passageiros, até chegarmos à balsa. Chegamos. Enquanto aguardávamos a embarcação para atravessar para a cidade de Itacaré conseguimos um pedaço de arame com um barraqueiro e fizemos uma gambiarra, prendendo a peça solta. Como era domingo de carnaval em Itacaré não havia oficinas funcionando. Localizamos uma borracharia onde o borracheiro usando mais um pedaço de arame reforçou a gambiarra. Este jeitinho brasileiro permitiu que, com prudência, continuássemos utilizando o carro. Almoçamos e depois fomos à luta para conseguirmos acomodações. Igualmente ao que acontecera em Barra Grande, não encontrávamos vagas para cinco pessoas nas pousadas. Já eram quase dezoito horas, já se avizinhava o lusco-fusco vespertino quando decidimos ir para Ilhéus, cidade com melhor infraestrutura hoteleira. Entramos no carro e partimos para mais essa aventura. Quando já deixávamos a cidade de Itacaré, um anjo salvador segurava uma placa anunciando o aluguel de uma casa mobiliada ao custo de duzentos reais a diária. Como estávamos em cinco pessoas a diária saia pela bagatela de quarenta reais para cada. Seguimos o corretor até ao imóvel oferecido e, apesar da rua não ser asfaltada ou calçada, a casa atendia ao que queríamos. Possuía fogão, geladeira, ar condicionado, televisão em cada quarto, além de garagem.
Permanecemos nesse imóvel até terça-feira quando retornamos a Salvador, cheios de histórias para contar. Mas, aprendemos uma dura lição: a de nunca viajarmos por ocasião dos feriadões sem reservarmos as acomodações.
Ah! O restante das guloseimas foi distribuído com crianças que encontramos durante o percurso.
Foi, realmente, uma verdadeira odisseia.
Salvador, 25 de fevereiro de 2016.
Autor: Valmari Nogueira