914-O ESPIÃO - A Ampulheta - 3a. parte
Na sessão seguinte o doutor Guilherme Dourado disse ao paciente Mario Ramos:
— Temos que aprofundar mais em suas recordações que estão no subconsciente. Vamos tentar mais uma vez. Peço que se deite naquele sofá de maneira confortável.
Mario agiu com boa vontade. Não se lembrava, realmente, de nada que pudesse ser causa de seus pesadelos. Queria colaborar com o médico.
Depois do processo de adormecer sob efeito do hipnotismo, Mario retomou a narrativa de sua vida, a partir da prisão e dos primeiros dias no Campo de prisioneiros.
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No terceiro ou quarto dia, foi levado a um interrogatório. Tremeu ao ver os objetos de tortura na sala do interrogatório, e mais ainda ante a figura impressiva do comandante Capitano Leone Nero.
Os olhos negros e inquisitivos do Capitão italiano iam observando Mario, seus movimentos e tique nervoso, perscrutando o significado do comportamento do interrogado, enquanto lhe dirigia perguntas traduzidas pelo soldado que permanecia hirto ao seu lado.
Depois de quase duas horas, o capitão se levantou e disse:
— Não quero submetê-lo a torturas, soldado. Fique tranqüilo. Agora me diga: está satisfeito com a comida?
— Não, senhor capitão. É pouca e estou sempre com fome.
— E o frio? Sente mito frio? Incomoda-lhe?
Mario não percebeu quão capcioso era o capitão em suas interrogações.
— Sim, não tenho agasalho nem cobertas. Sinto muito frio, como todos os prisioneiros brasileiros.
O capitão parou de andar prá lá e prá cá, fez um silêncio prolongado e depois disse:
— Você poderia ter mais agasalho e mais comida. Seria bem melhor, não é verdade?
Mario respondeu quase sem pensar:
— É claro que todos nós queremos mais comida, mais agasalhos... — Mas em seguida perguntou:
— De que maneira a eu teria mais comida e agasalhos?
Mais uma pausa. O comandante parou perto de correias que estavam dependuradas nas paredes, com manchas escuras (de sangue?). E disse em voz baixa:
— Poderia ser nosso colaborador e observar o que se passa no campo. Quem mais se queixa de frio, de fome, essas coisas. Quero saber do que mais precisam.
Mario nem por sombra percebeu que estava sendo aliciado.
Pensou: “Se for só isso, nada tenho a perder. E respondeu:
— Sim. Isso eu posso indagar dos companheiros e informar ao senhor.
Capitão Giuseppe era cuidadoso no falar. Ao ouvir o “sim”,de Mario, continuou:
— Mas tem que ter cuidado. Jura que manterá segredo sobre tudo o que ouvir aqui?
— Juro.
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Mais alguns dias, Mario foi levado de novo à sala de interrogatório
— Preciso de um “observador” e você me parece ser o homem apropriado.
Antes que Mario respondesse, o Capitano abriu uma caixa que estava sobre a mesa e lhe deu dois maços de cigarros. E indicou o conteúdo da caixa. Mario olhou e viu bombons, maços de cigarros e embrulhos que pareciam alimentos defumados.
— Será bem recompensado, se fizer bem o serviço. Abra os ouvidos e me relate tudo que ouvir de seus companheiros.
— Sim, senhor— Agora, “bocca chiuzza”! (boca fechada) Pode ir.
Mario saiu do escritório meio zonzo, pensando sobre a proposta O trato é para espionar meus camaradas.
Longe das vistas dos companheiros, divagando entre os anéis de fumaça dos saborosos cigarros, Mario pensava... pensava.
Não demorou muito em decidir-se.
Guerra é guerra, pensou.
E começou a prestar atenção a todas as atividades dos prisioneiros que lhe pareciam suspeitas. Principalmente aos cochichos e diz-que-diz dos companheiros de farda, os brasileiros.
Mario já tinha ouvido algumas conversas em tom de conspiração entre os mais graduados, e fiou alerta.
Não demorou muito, ficou sabendo de um grupo de prisioneiros que planejavam fugir. Ele foi convidado mas o medo impediu-o de aderir ao plano do grupo. Eram corajosos e não tinham tempo a perder.
Na manhã do quinto dia, ouviu o aviso final:
— Fiquemos atentos! — disse o chefe do grupo. — Hoje de noite, antes da meia noite, vamos fugir. Os vigias do primeiro turno da noite já estarão cansados e diminuem a vigilância.
— Alertarei os demais, falou outro pracinha. Vamos planejar uma operação de distração desses comedores de macarrão.
Mario disfarçadamente pediu para falar com o comandante do campo, pensado:
O capitano vai passar uma reprimenda no pessoal e a fuga vai gorar, com certeza. O máximo que poderá acontecer é que serão privados de comida por uns dias.
Assim pensando, Mario delatou.
Nada foi como o traidor pensou. Os fugitivos não tiveram chance.
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Continua – 4ª parte: O Massacre
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte,19 de outubro de 2015.
Conto # 913 da série 1.OOO HISTÓRIAS