O silêncio é de ouro

Na manhã fria de fins de inverno, Ermintrude Friedmann desceu do "tram" na parada Eiran Sairaala. Nevava de leve, mas ela saíra de casa bem agasalhada, com casaco, botas e luvas de pele de rena. Tendo nas mãos o sobrescrito da correspondência oficial que havia recebido dias antes, levou alguns minutos parada numa esquina, até descobrir a rua por onde devia seguir. Estava apreensiva, principalmente depois que o marido havia sido interrogado pelo vice-cônsul alemão sobre um truque que ela ensinara anos antes ao cão da família: erguer a pata direita ao ouvir o nome "Hitler". Na época, parecera muito engraçado, mas a graça acabara quando a Finlândia associara-se formalmente ao Reich. Sentia agora que podia ter colocado em risco não somente a própria vida, mas principalmente a do marido e das duas filhas do casal.

Não teve que caminhar muito. O número indicado no envelope era o de uma casa de três andares em estilo Art déco, geminada com pelo menos uma dúzia de outras, que enchiam todo um lado da rua. Na fachada creme, sem qualquer identificação aparente, havia uma porta branca com uma aldrava de latão polido. Enchendo-se de coragem, Ermintrude deu duas batidas na porta com a aldrava. Após alguns instantes de silêncio, ouviu uma voz feminina gritar lá de dentro:

- Einen Augenblick, bitte!

A porta se abriu e ela viu-se diante de uma moça loura, aparentando não mais de 25 anos de idade. Estava vestida como uma civil, vestido castanho e casaco preto de lã, mas algo em sua postura fez com que a visitante suspeitasse tratar-se de uma militar à paisana. Ou pelo menos, de uma auxiliar dos militares, como em sua própria época na Lotta Svärd.

- Você é...? - Inquiriu a loura estendendo a mão. Não para apertar a dela, mas para apanhar o sobrescrito que trazia.

Ermintrude estendeu o envelope e o ofício do consulado alemão, antes de apresentar-se:

- Eu sou Ermintrude Kästner Friedmann... acho que estou um pouco adiantada, Fräulein...

- Anneliese Buchholz. Entre, por favor, Frau Friedmann. Sua pontualidade é bem-vinda, mas terá que aguardar um pouco...

Entraram na casa por um corredor sombrio, de piso de madeira. O corredor desaguava numa sala de estar decorada com móveis austeros e escuros, convertida numa espécie de recepção. Nela já estavam seis outras mulheres, duas das quais mal saídas da adolescência. Era difícil imaginar qual teria sido o critério da convocação, pois além das faixas etárias discrepantes, havia ali gente de várias classes sociais, inclusive uma jovem com uniforme de camareira de hotel. Todas pareciam apreensivas e mantinham um silêncio que Ermintrude só compreendeu instantes depois, quando Anneliese indicou-lhe uma cadeira vaga para sentar-se e observou, secamente:

- Queira aguardar aqui ser chamada, e não converse com as demais participantes!

Ermintrude pensou se deveria dizer que havia compreendido as instruções, já que o silêncio era norma. Terminou por responder, simplesmente:

- Ja.

E sentou-se no local indicado.

Anneliese Buchholz retirou-se para uma sala lateral e instantes depois chamou uma das presentes, uma senhora corpulenta, mais velha do que ela. A mulher estava suando, apesar do ambiente sem calefação. As duas desapareceram na sala lateral, cuja porta foi fechada. Após um tempo que pareceu uma eternidade, mas que certamente não durou mais que 15 minutos, reapareceram de braço dado, a senhora ostentando um ar de alívio no rosto. A loura acompanhou a mulher até a porta, e despediu-se dela com um abraço cordial:

- Agradecemos a sua visita, Frau Heidrich. Lembre-se: mantenha sigilo!

A senhora apenas balançou afirmativamente a cabeça, como se a determinação para não falar vigorasse até a soleira da porta.

Ermintrude Friedmann foi a terceira a ser chamada, logo depois de uma adolescente em uniforme escolar, que saiu da sala fechada cambaleante, amparada pela impassível Fräulein Buchholz. Depois de acompanhar a jovem até a porta e despedir-se dela com um abraço e as mesmas palavras usadas na despedida de Frau Heidrich, Buchholz encarou Ermintrude com seus gélidos olhos cinzentos e disse:

- Queira me acompanhar, Frau Friedmann.

Ermintrude Friedmann engoliu em seco, e ergueu-se da cadeira.

[13-10-2015]