874-BANHO MATINAL - Aventura/Mistério - SMP-1o.
cAP. 1 -o Banho Matinal
Aos noventa e cinco anos e nove meses, é um homem alegre e bem disposto. É claro que já não faz mais as longas caminhadas nem cavalgadas como usava fazer durante toda a vida. Usa agora a confortável charrete de dois lugares, dirigida pelo Tingo, que o leva aonde ele indicava: — no rumo do nariz, como ele mesmo dizia, pela região que fora a imensa propriedade que outrora se espalhara por três municípios no interior de Minas Gerais.
Tão infalível quanto seus passeios de charrete, era o banho que tomava na piscina natural, feita pelo córrego que passava ao lado da casa sede. Não um banho simples mas uma imersão de meia hora ou mais, quando se deixava ficar imóvel, de olhos fechados e somente a cabeça fora da água,. Parecia estar meditando.
— Cali, vem tomar café! — chamava a empregada Emerenciana, com a intimidade que os velhos empregados adquirem com o passar do tempo. — Dona Esmeralda tá esperando o senhor.
Do alto da varanda da casa-sede, posso ver, no seu banho matinal, a figura do meu avô Calimério Correia de Noronha, conhecido como comendador Noronha e na família simplesmente como Cali. Não usava calção e sim uma toalha de banho enrolada na cintura e passando por entre as pernas, à maneira de um indiano. Aliás, a figura alta e muito magra, quase esquelética, enganaria qualquer estranho, levando a pensar tratar-se de um oriental, um sósia de Gandhi perdido nas serras mineiras.
— O doutor também vem tomar café, com seu avós. — Emerenciana disse.
Olhando mais uma vez para o patrão que permanecia na piscina natural, falou como que para si mesma:
— Qualquer dia desses ele vai cochilar na piscina. — E nem quero pensar o que vai acontecer. — Ee se retirou do alpendre para servir o café.
A vida ao ar livre tornara morena a tez de vovô. Os cabelos brancos estavam rareando, mas ainda cobria a cabeça. O rosto comprido, com olhos grandes e bem abertos, o nariz um pouco achatado e a boca de lábios carnudos, indicavam uma miscigenação de muitas raças.
Posso ouvir o barulho das águas do riacho que passa ao lado da casa, formando, como já disse, uma piscina natural. Em seguida, as águas velozes correm por uma dezena de metros e caem numa estrepitosa cachoeira de uns quinze metros, formando então um poço fundo, antes de prosseguir o curso.
Vovô, como sempre, permanece longo tempo imerso em seus pensamentos, na sua meditação. Nos últimos meses, por precaução, há sempre uma pessoa de olho nele, nestes momentos, para vigiá-lo e impedir uma tragédia: um escorregão, ou um cochilo, nunca se sabe. Tingo está lá, ao seu lado, atento para qualquer pedido do velho ou movimento indevido. Mais do que patrão e empregado, os dois mantêm camaradagem de amigos.
Daqui a pouco, Tingo será chamado pelo vovô, para ajudá-lo a sair da piscina. Sai restaurado e bem disposto, até mesmo nas manhãs frias de julho, como é esta de hoje.
Continua.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 13 de dezembro de 2014.
Conto # 874 da Série 1.OOO HISTÓRIAS