Andrezza Iriri, Cap. 11
Iara não se importou com o fato de Domício ter arranjado emprego no escritório onde trabalhava a nova mulher de seu ex-marido. Pelo contrário, a partir desse fato foi mais fácil inteirar-se da tentativa de assalto à mansão dos Amarantes e das implicações que isso pudesse ter em relação ao seu ex-cunhado. Em que pese as rápidas informações sobre o caso lhe terem sido transmitidas por Efigênio, e não por Domício.
Surgiu daí a idéia de manter contacto com Juvenal. Ele deve estar se sentindo sozinho. Em situação pior do que a que se encontrava quando almoçou com a gente no ano passado. Até então era o golpe de ter se separado de Izamara. Agora, coitado, vem essa merdança toda de envolvimento com uma quadrilheira. Por sinal, prima direta da nova mulher de Efigênio. Baixa renda é flórida. Só podia dar nisso. Efigênio é que se cuide. Ou que se foda.
Iara escolheu uma noite quente de meados de janeiro para ligar para Juvenal. Que andava pela casa, quando o telefone tocou, percebendo-a mais suja que desarrumada. Era preciso pensar num dia em que ele sozinho faria uma faxina completa. E ficava insistindo nessa preocupação, no mínimo na tentativa de se desligar a respeito do paradeiro que Andrezza tinha tomado.
-Juvenal? Boa noite, é Iara. Tudo bem? Você pode falar?
-Claro, Iara. Tudo bem. E você, como vai indo?
-Acho que melhor agora, embora a casa esteja mais vazia.
-Ah, é mesmo. Soube que vocês se separaram. Será que me invejaram?
-Nada disso. Como diz meu filho, o Domício, é a evolução natural das coisas. Cada vez mais gente se separando.
-Por falar nisso, como vão os dois?
-Vão bem. O Rafa com a arquitetura. O Domício deve se formar no meio do ano. Por sinal, arranjou emprego no escritório da madrasta, isto é, no escritório de advocacia onde trabalha a nova mulher de Efigênio.
-Soube disso também. Efigênio me disse que ele está indo bem. Parece que a doutora gosta muito dele.
-É um bom menino. Sempre foi muito estudioso e responsável, apesar de metido a conquistador.
-Será certamente um bom advogado.
-Mas e você, Juvenal? Já era pra ter ligado há mais tempo. Efigênio me contou alguma coisa sobre um acontecimento, no final de novembro. Sei que na época houve ampla divulgação. Mas não me liguei muito. Até porque estávamos decidindo a nossa separação. Mas agora, com um pouco mais de detalhes, senti-me preocupada. Parece que de algum modo teve algo a ver com você. Não é isso?
-É uma história um pouco complicada. Não sei se o Efigênio entrou em detalhes.
-Não entrou, não. E nem deveria. Na verdade fez um relato muito superficial. De qualquer forma, quero que você saiba que terá o nosso apoio. Já tem o dele e pode ter o meu também. Estou à sua disposição. Se quiser, pode vir aqui para conversarmos.
-Obrigado, Iara. Fico muito agradecido pela gentileza. Acho que podemos nos falar depois a respeito disso.
-Claro. Como quiser. Estarei aguardando a sua ligação.
-Obrigado, Iara. Vou ligar sim.
Andrezza já estava em casa há dois dias. Tinham achado que havia esfriado a questão da tentativa de assalto à mansão dos Amarantes. No primeiro dia, o reencontro com D. Tita fora marcado por forte emoção. Embora as duas procurassem controlar o choro para que Juliana ficasse o menos intrigada possível. Mas ali estava a filha aconchegando-se no conforto dos braços incondicionalmente oferecidos pela mãe. Apesar da vergonha que sentia e que aumentava na proporção da duração do olhar intrigante de Juliana.
O regresso de Andrezza acontecera há exatos sete dias após a ligação dela para Anelice. Dra Júlia havia dado o sinal verde. Muito embora tivesse colocado Domício de plantão na casa de D. Tita durante a quinta-feira em que Andrezza chegou e no dia seguinte.
Nesse sábado esperava-se a visita de Efigênio e Anelice, naturalmente com Angélica, e D. Mocinha. Juvenal também fora chamado. Ele vinha mantendo freqüentes contactos com Efigênio, preocupado com Andrezza, que estava sendo procurada pela polícia. Apesar de tudo, Juvenal ainda se achava muito próximo da mulher das coxas grossas. E Efigênio sabia disso. Não tanto agora pela lascívia que lhe pudessem inspirar os atributos físicos da bela morena, mas pelo inevitável sentimento de solidariedade que brotara daquele relacionamento.
Não haveria, portanto a necessidade, nesse sábado, na casa de D. Tita, da presença de Domício, como elemento capaz de representar uma possibilidade de proteção constitucional a Andrezza. Primeiro porque, como o caso deixara de ocupar espaço na mídia e se tratava de um sábado, não era provável que ocorresse uma ação policial no sentido de provocar a detenção de Andrezza. Em segundo lugar, porque a partir das nove horas a casa estaria com pelo menos três visitantes, pessoas de bem e de um nível de vida melhor, capazes de testemunhar uma eventual exorbitância na ação dos agentes policiais que por ventura aparecessem.
Juvenal surgiu por volta de quinze minutos após Efigênio, que chegara pontualmente às nove com a sua nova família. Encontrou D. Mocinha, a irmã e o ex-marido de Iara conversando na sala. Anelice e Andrezza estavam a portas fechadas no único quarto da casa. Mas o que lhe chamou a atenção, antes de se dirigir à D. Tita, que abrira a porta, foi a presença de duas meninas brincando animadamente no exíguo afastamento frontal do imóvel. Que protegiam a si mesmas e a uma boneca de pano, no colo de Juliana, com uma sombrinha colorida, como se estivesse chovendo. Imediatamente lembrou-se da noite chuvosa em que fora abordado por três homens, portando um deles uma sombrinha exatamente como aquela. Certamente, agora que tudo se esclarecera, Juvenal verificava que as meninas se protegiam com o objeto usado pelo elemento que assumira a direção do carro após a abordagem de que fora vítima no primeiro assalto.
-Bom dia, Sr. Juvenal. Disseram-me que o senhor viria. Estávamos aguardando.
-Bom dia! A Sra. deve ser a mãe de Andrezza.
-Oi, Juvenal! Como está? Essa é a D. Tita, sim. Mãe da Andrezza, interrompeu Efigênio, apressando-se em abraçar o amigo.
-Muito prazer em conhecê-la D. Tita, disse Juvenal após o rápido abraço de Efigênio. E você, amigo? Chegou há muito tempo?
-Cerca de quinze minutos. Essa aqui é a D. Mocinha, mãe de Anelice e irmã de D. Tita.
-Muito prazer minha senhora, disse Juvenal, cumprimentando a irmã de D. Tita.
-O prazer é meu, Sr. Juvenal. Efigênio tem falado bastante no senhor. As meninas estão lá no quarto. Espere que vou chamá-las.
-Não precisa se incomodar, D. Mocinha. Deixe-as à vontade. Não tenha pressa, ponderou Juvenal, deliberadamente querendo adiar o momento do encontro com Andrezza. Tinha certeza do desconforto a ser gerado, tanto para um como para o outro.
Sem ligar para a observação de Juvenal, D. Mocinha dirigiu-se com a irmã para o quarto onde estavam suas filhas, entrando depois de bater suavemente na porta.
Juvenal teve tempo de identificar no rosto de Efigênio certa ansiedade, que não seria maior que a que ele mesmo experimentara ao sair de casa para essa visita. No caso de Efigênio, havia o receio de que Andrezza pudesse ser detida a qualquer momento, já que o caso certamente não fora esquecido. Sobretudo depois das exigências que fizera o Ministro do Interior quanto a uma apuração rigorosa. A eventual detenção representaria um desgaste emocional difícil de ser administrado. Porque alcançaria ao mesmo tempo D. Tita, D. Mocinha e até Anelice, que surpreendentemente havia se posicionado mais ao lado de Andrezza, depois do desfecho dos acontecimentos que culminaram com a morte de Pedro Crivo. Em relação a Juvenal, seria doloroso olhar nos olhos de Andrezza novamente, com a suspeita de que ela se achasse numa posição de inferioridade diante dele em razão do que havia cometido. Ele se sentiria mal em ter que eventualmente perdoar uma pessoa com quem se achava ainda envolvido.
Depois de certo tempo no quarto, saíram as irmãs acompanhadas apenas de Anelice.
-Como vai Juvenal? Efigênio tem falado muito em você. Finalmente nos conhecemos.
-Muito prazer, Anelice. Pena que não está sendo num momento assim tão bom para nós todos, disse Juvenal.
-Andrezza prefere que você vá até ao quarto conversar com ela. Ela o está aguardando, prosseguiu Anelice.
Não era bem o que Juvenal esperava. Procurando reunir coragem para se dirigir até ao quarto, valeu-se da porta de entrada da casa, que fora mantida aberta, para olhar as duas meninas que ainda brincavam na frente do imóvel. Notou então como eram grossas as perninhas de Juliana. Percebeu logo que se tratava da filha de Andrezza, também por reconhecer nos olhos vivazes da menina o mesmo riso zombeteiro que às vezes encontrava na mãe.
-Oi, Andrezza. Posso entrar?, perguntou Juvenal sem transpor a porta do quarto.
-Pode. Você está bem?,
-Estou, sim. E você?, respondeu Juvenal, sentando-se na cama de casal, um pouco afastado de Andrezza.
-Talvez você possa imaginar. Embora eu prefira pensar que você não deve se preocupar com isso.
-Nem sempre as nossas preocupações dependem da nossa vontade. Às vezes a gente se preocupa mesmo sem querer.
-Não quero parecer o que não sou. Mas não gostaria que se preocupassem tanto comigo. Não é justo que eu tenha feito o que fiz e agora esteja pedindo arrego.
Juvenal observou que a aquela voz gutural não saia clara como antes. Estava meio sumida. Havia alguma dificuldade para ouvir as palavras.
-Não está nas pessoas. Sua mãe – a primeira da fila –, sua tia, o próprio Efigênio e até sua prima estão do seu lado. Não adianta você pedir ou esperar o contrário.
-É duro ter que escutar isso, soluçou Andrezza, algumas lágrimas molhando o tapete poído sob seus pés. Porque vejo agora que tinha todo mundo do meu lado. E eu continuava jogando contra... mim mesma.
-O recomeço é sempre possível. Pior é quando o poço não tem fim, profetizou Juvenal, amedrontando-se com a possibilidade de também se emocionar.
-Você sempre foi um homem bom, Juvenal. Pedi que você viesse até aqui porque a minha vergonha não ia caber dentro daquela sala. Principalmente com todo mundo vendo.
-Nada disso, menina. Todo mundo já sabe de tudo. Não há mais segredos. Além do mais, é a sua família. Que agora tem mais um componente de valor, que é o Efigênio.
-Sei disso. Já dei meus parabéns a Anelice. Mas durante algum tempo eu fui o seu segredo. Sei que você acreditava em mim. E sei que talvez eu representasse pra você bem mais do que eu queria ou me recusava a imaginar.
-E ainda representa. E por isso estou aqui. Não só pra ser solidário, jogar junto, mas pra que você saiba que ainda tenho confiança em você. Que ainda acho que você também tem confiança em mim.
-Obrigada, Juvenal, disse Andrezza, estendendo a mão direita timidamente na direção de Juvenal, que logo a alcançou com as suas.
-Se você quiser, estarei do seu lado de novo. Você pode inclusive ficar lá em casa. Isso é o que eu iria acabar propondo, asseverou Juvenal.
-Não é tão fácil assim, Juvenal. Não pode acontecer de novo. Você não pode ser iludido de novo. Não por mim. Estou disposta mesmo a seguir noutro rumo. No rumo que me foi mostrado por minha mãe e minha tia Mocinha quando eu tinha a idade de minha filha. Tenho que recuperar o tempo perdido. No meio disso tudo, estou muito feliz com a aproximação de Anelice. Eu quero e vou incentivar isso. Quando crianças competíamos muito. Mas depois, quem passou a ter despeito dela fui eu. Isso agora eu não quero mais.
-Fico contente em ouvir o que você diz. Anelice é uma moça correta e uma ótima amizade. Além do mais, está com uma pessoa também muito bacana. Você só vai ganhar juntando-se a ela. Mas não vejo porque não tentarmos nós dois superar esses momentos e voltar à situação de antes.
-Fui longe demais com você, Juvenal. Não sinto forças para encará-lo de novo, como já aconteceu, como um homem que devesse ser meu. Houve momentos em que quis ficar com você, sim. Apesar de algumas restrições suas quanto à questão da diferença de idade. Mas depois, o meu lado mascarado falou mais alto. O meu lado zombeteiro, o meu lado revoltoso, que me levava a tratar mal até mesmo os meus companheiros. Na verdade nunca gostei de Pedro Crivo. É claro que não queria que ele tivesse desaparecido daquele jeito, tão novinho ainda. Tinha uma espécie de pena dele.
-Acho que você está exagerando nas punições que atribui a si mesma. Não sei se isso poderá lhe fazer bem.
-Agradeço a gentileza do que você me disse. Mas é preciso que eu leve as coisas mais a sério; é preciso que eu reúna melhores condições morais pra criar a minha filha, deixando de achar que gostar dela incondicionalmente é o suficiente; é preciso que eu aproveite esses momentos para ter uma idéia melhor de quem sou; é preciso finalmente, desculpe-me a franqueza, que eu acumule recursos pessoais para nunca mais fazer tantas merdas com as que fiz.
-Não seja tão severa assim, retrucou Juvenal, sorrindo comedidamente. Tudo que é demais pode atrapalhar.
-Novamente agradeço. Mas eu saberei encontrar a dosagem certa. De qualquer modo sei que será preciso disciplina. Nada se consegue sem isso. E a disciplina normalmente não aceita a opção pelo mais fácil. E se encontra dentro do mais fácil a possibilidade de tentarmos recomeçar tudo. Que foi algo em que não acreditei inteiramente. Ou pelo menos não acreditei da forma que deveria. Por isso não acho que deva fazer de novo essa escolha.
-Além do mais, prosseguiu Andrezza, percebendo que Juvenal encontrava-se aparentemente sem palavras, tem a questão moral, meu querido. Nunca mais vou poder olhar pra você do jeito que tantas vezes olhei quando fazíamos tudo aquilo na cama.
Juvenal sentiu a mão dela apertar uma das suas, mas imediatamente intuiu que se tratava mais de uma comunicação de sinceridade do que de um apelo sensual, que não seria cabível depois de tudo o que ela dissera com tanta contundência. A ponto de subtrair-lhe as palavras.
Surpreendera-o também, além da eloqüência, a concatenação das idéias e a forma da organização do pensamento. Longe da possibilidade de ser encontrada em quem manuseava armas, e possivelmente drogas, e vivia pensando numa alternativa mais imediata, apesar de condenável, de ganhar a vida.
-Em todo o caso, tenho certeza de que podemos ser bons amigos.
-Disso não tenho a menor dúvida. E faço imensa questão. Se for preciso, coloco até no jornal, replicou Andrezza, pela primeira vez com o brilho nos olhos que tantas vezes intrigou Juvenal quando faziam tudo aquilo na cama.
Nesse momento ouviram-se vozes de homens na sala, além da de Efigênio, que procurava suplantar aquelas que a ele se dirigiam:
-Ela reside aqui, sim, falava Efigênio. Tem endereço certo.
-Não sabíamos. Chegamos até aqui através de informações que obtivemos.
-Nem poderiam saber. Ela nunca esteve envolvida com a polícia. Não poderia nem ter mentido, disse Efigênio aos dois policiais que foram entrando pela casa, aproveitando-se da porta da sala aberta.
Juliana e Angélica tinham parado subitamente de brincar. A sombrinha colorida ficara no canto da pequenina varanda contrário à entrada da casa.
-Ela está em casa?, indagou o policial mais alto, jovem, claro, cenho franzido, uma jaqueta preta com as inicias do órgão a que servia nas costas.
-Está sim. O senhor não precisa se preocupar, disse prontamente D. Tita. Vou chamá-la. Ela não vai fugir.
O policial mais alto não disse nada. Limitou-se a olhar para o colega, claro também, porém mais baixo. Sorriram discretamente.
-Vamos ter que levá-la, disse o policial mais alto.
-Vocês têm um mandato judicial?
Ao invés de responder, o mesmo policial mostrou a Efigênio um papel timbrado, não fazendo questão agora de dissimular a impaciência.
Andrezza saiu de casa algemada, sob os protestos e lamúrias de sua mãe e D. Mocinha, e sob os olhares cheios de dúvidas das duas meninas que ainda não tinham recomeçado a brincar.
Juvenal sentiu a frieza de se perceber incapaz de cometer alguma coisa que impedisse a violência de ver Andrezza sair algemada daquele jeito para entrar em uma viatura policial na frente de casa. A cabeça sendo levemente pressionada pela mão do policial mais alto ao entrar no veículo.
Efigênio tratou de acalmar a todos, depois que os policiais saíram, levando Andrezza.
-Não se preocupem. Isso era previsível. Vamos já pra delegacia, depois que Anelice entrar em contacto rapidinho com a Dra Júlia. Se quiser, você vem com a gente, Juvenal. O alvará de soltura deve sair ainda no início da semana. Ela não tem antecedentes criminais, é primária e tem endereço certo. É mole. Eles têm que mostrar serviço. O caso esfriou um pouco, mas o babaca do Ministro deve estar enchendo o saco deles. Certamente com o apoio de um juiz cagão ou puxa-saco.
-Oh, meu Deus! Que coisa horrível, comentou D. Mocinha. Isso não podia acontecer. Não com essas duas meninas aqui, terminou falando baixinho.
-Pra onde mamãe foi, vó?
A pergunta daquela menina com as coxinhas já grossas e a voz meio rouca exigiu de Juvenal o maior esforço para conter as lágrimas, que não lhe surpreenderiam. Porque já tinham querido aparecer quando ele estava no quarto com Andrezza. E ouvira dela a sua posição final quanto a uma possível reaproximação entre os dois.
-Mamãe foi com aqueles bobões. Mas vai voltar já, minha querida, explicou D. Tita.
As meninas entraram logo em seguida e foram brincar no quarto. A sombrinha colorida continuava na varanda.