AMARELO DOURADO

Depois de muitos dias à deriva, avistei uma sombra no horizonte, pensei comigo, finalmente um pedaço de terra firme.

Talvez encontre uma civilização qualquer ou em última análise um local de reprodução animal que me dará nova carga de mantimentos.

Talvez água boa para se beber embora eu não precisasse me preocupar com água.

Meu bote salva-vidas estava equipado com dessalinizador e eu tinha todo o oceano em minha volta.

A carga de mantimentos para oito pessoas, por trinta dias, me dava quase um ano de relativa tranquilidade.

Logo que me vi só em pleno oceano, decidi que faria duas refeições com intervalo de doze horas, ao amanhecer e ao anoitecer.

Eu devia permanecer sempre atento porque meu barco inflável em sua maior parte não poderia ser atacado por peixes grandes que o confundissem com algo comestível nem deixar que ele batesse em pedras.

Apesar da plataforma de isopor eram os sacos de ar que mantinham a flutuação.

Afiei a ponta de um dos remos para servir de arpão.

Se não conseguisse fisgar um peixe grande, teria a arma com que feri-lo para me proteger.

A correnteza levou meu barco para mais perto da ilha.

Sim, era uma ilha vulcânica, escura, quase sem vegetação, povoada com focas e aves marinhas.

Se eu conseguisse achar uma praia, por menor que fosse para desembarcar sem correr o risco de rasgar os flutuadores, teria carne fresca e ovos.

Recolhi a lona do teto para diminuir a velocidade com que o vento forte, associado ao movimento das ondas, me empurrava para o que talvez fosse o naufrágio da minha embarcação.

Usei os remos e tentei costear a ilha.

Eu tinha me aproximado pelo sul e precisava ver o que tinha no lado norte, livre da correnteza, talvez tivesse praia com areia fina e macia. Foi difícil, muito difícil não ser levado para bem longe.

Lutei bravamente, mas consegui.

A água límpida revelou o terreno pouco abaixo do fundo do meu barco. Pedras vulcânicas, pontiagudas.

Nem um pouco de areia.

Será que valeria a pena arriscar ficar sem o barco apenas para comer um pouco de carne fresca?

Não.

Definitivamente não.

Eu devia me afastar o mais rápido possível daquela ameaça, mesmo porque a ilha me pareceu desabitada de humanos.

O que posso fazer é soltar a âncora para ficar com uns cinco metros de lâmina d’água e tentar pescar alguns desses peixes prateados.

Peguei anzóis e linha para fazer um parangolé e deixá-lo solto, ao lado do barco.

Mesmo sem as iscas. Só o brilho do metal polido do anzol é bastante para atrair os peixes curiosos.

Quando pescar o primeiro, poderei fazer iscas cheirosas e pegar muitos outros.

Não demorou muito.

Fisguei duas mariquitas.

Peguei uma delas e cortei em pedaços pequenos.

Seus olhos grandes têm algo de humano, olhando dentro de nossa alma.

Comi um pedaço, com escamas e tudo.

Como é bom o sabor de comida fresca...

Joguei os anzóis na água e procurei entabular uma conversa, meio pedido de desculpas com a outra mariquita.

Ela estava lá, jogada no assoalho do barco, com seu olho grande, olhando para mim, com os dentes finos à mostra, como se quisesse me dizer, eu não posso mais, mas meus irmãos podem comer você, assim que esse seu barco se furar nas pedras e você for levado pela correnteza, sangrando por ter os pés rasgados pelas pedras e pelas ostras.

Eu não gosto de você.

De onde você saiu?

Por que veio parar aqui e jogar esses anzóis para nos fisgar?

Nossa vida era muito tranquila longe de você, mas você veio para estragar tudo...

Não, peixe, não pense assim, eu não sou mau.

Eu tive que deixar, às pressas, o navio onde estive embarcado.

Houve um motim a bordo, os marinheiros mataram os outros oficiais e para não morrer também, abandonei o navio nesse barco salva-vidas amarelo dourado, sem que ninguém visse, antes que eles me pegassem.

Você está certo.

Eu tenho muita comida guardada nos compartimentos, mas eu não sei onde estou e nem se tenho possibilidade de ser encontrado.

Claro que eu liguei o rádio farol do barco, mas ele só funciona enquanto tem luz solar, quando escurece ele para de funcionar porque eu não pude pegar a bateria.

Saí correndo do navio.

Você sabe como são essas coisas de motim.

Mas agora, que estou nessa ilha, não vou mais ser levado pela correnteza, aí eles vão me achar porque estarei parado.

Como que eles?

O pessoal da guarda costeira, claro.

Enquanto isso eu prometo que, se por acaso um dos seus irmãos for fisgado eu tirarei o anzol da boca dele e o devolverei para a água. Prometo.

Palavra de honra.

Eu não sou daquelas pessoas que promete as coisas e não cumpre. Você vai ver.

Vou pendurar a sua cabeça nessa armação e você vai poder ficar olhando tudo o que eu fizer.

Você tem os olhos muito grandes para seu tamanho...

Não, não estou rindo de você.

Só estou imaginando se eu tivesse os olhos na mesma proporção que você, os meus olhos seriam maiores que um prato fundo para sopa.

O que é prato?

É aquela coisa de louça, grande, redonda que nós usamos para comer. Não, gente não come louça.

Coloca-se a comida no prato e se come.

Entendeu?

Vamos acertar uma coisa.

Eu vou comer seu corpo porque você não vai mais precisar dele.

Seria um desperdício jogar fora, você não acha?

Outra coisa, quando eu for resgatado, vou jogar você no mar porque eu acho que você não vai gostar de viver na cidade onde fica a minha casa. Preste atenção peixe, faz três dias que eu ancorei meu barco na sua praia...

Como assim, quinze dias?

Já se passaram duas semanas?

Se tem todo esse tempo porque você não apodreceu?

Não me venha com essa história de que foi o sal do mar, o sol e o vento fortes que lhe transformaram em múmia.

Está certo que sua cabeça tem muito osso, é só osso, praticamente, mas se é assim por que seus olhos continuam brilhando?

Por que você não ficou com olho de peixe morto?

Desculpe o trocadilho infame...

Eu não queria fazer piada com você...

Você está ouvindo esse som?

Parece ser um avião.

O que é um avião?

Você nunca foi à escola?

Nunca leu um jornal?

Nunca colecionou figurinhas de chicletes?

O que diabos você fez com a sua vida?

Olhe bem naquela direção, ali, está vendo?

Aquilo é um avião.

Vou acender o sinalizador para facilitar a visualização.

Onde está o sinalizador?

Peixe, onde você escondeu o sinalizador?

Só pode ter sido você...

Estamos só nós dois aqui.

Eu tenho a certeza de que deixei o sinalizador preso no banco do meio, exatamente abaixo de onde você está.

E você vem me dizer que não sabe, que não viu...

Parece uma velha chata, faladora.

Vamos diga logo onde você escondeu o sinalizador antes que o piloto ache que não tem ninguém no barco.

Será possível que você não sabe de nada.

Piloto é a pessoa que dirige o avião.

Pode deixar.

Eu não preciso de sua ajuda.

Vou achar o sinalizador sozinho mesmo.

Diacho!

Eu devia ter apontado para cima.

Não ria de mim, peixe inútil... o sinalizador caiu n’água, mas fez muita fumaça e acendeu a luz vermelha.

Concordo.

Foi por pouco tempo, mas você viu que o piloto balançou as asas como que dizendo, espere que eu já volto para lhe buscar?

Peixe, eu acho que você tem razão.

O piloto não deve ter visto o meu sinalizador, mas o farol do meu barco continua mandando sinal, olhe ali a luz vermelha piscando.

Isso quer dizer que ele está mandando um aviso para o satélite sobre a minha posição.

O que é satélite?

Você também não sabe o que é satélite?

Já ouviu falar na lua.

Pois bem a lua é o satélite natural da terra, mas o homem mandou um bocado de satélites menores lá para o espaço para servirem de pontes entre pessoas, entre países, entre continentes...

Ouça peixe.

Isso é apito de navio grande...

Vou soltar outro sinalizador.

Dessa vez vai ser para cima e como está escuro, a luz verde vai ser avistada de longe...

- Como ele está doutor?

- Vai se recuperar. Oito meses num barco salva vidas isolado de tudo e de todos deixa a pessoa assim mesmo, mas as alucinações passarão em pouco tempo, eu espero...

GLOSSÁRIO

Mariquita - Myripristis jacobus