Uma Travessia na África

No coração da África, sob um sol inclemente, as barracas começaram a ser desmontadas. Clancy demorava em sua varanda improvisada; sobre o tamborete descansava as pernas esticadas e o espaldar da cadeira acomodava as costas ainda suadas do esforço a que acabara de se submeter. Descer do caminhão a enorme e pesada arca exigira o esforço de cinco homens nativos mais o de Clancy. Ali estava a sua preciosa carga. Era necessário, para um transporte rápido e seguro, a contratação de uma equipe eficiente e numerosa. Clancy tinha noção do perigo e dos riscos que iria enfrentar. Entretanto, não era homem que levava em conta a possibilidade de um fracasso ou de morte e, no caso em questão, menos ainda se for considerada a soma envolvida e as outras vantagens que o êxito da missão lhe trará.

Dali para frente valia a coragem e a determinação. Ao erguer a tampa do caminhão e visualizar oarsenalClancy se surpreendeu; era mais do que ele esperava. Oitenta e quatro homens formavam a equipe para a missão, dos quais sessenta e dois nativos que não precisariam de armas; pelo menos não as receberiam. Para que então todo aquele arsenal bélico? Os rifles estavam em caixas, novos em folha; a dinamite, empacotada, dividia espaço com outras caixas menores que continham pólvora, munição para as armas, rolos de corda e, mais ao fundo, empilhados em pé, espingardas de caça, arcos e uma montoeira de flechas de diversos tamanhos e formatos. Quanto à quantidade e à qualidade das armas Clancy não teria do que se queixar e a empresa fornecedora muito menos, poisque o acordo valera a pena.

- Buana! Buana! Tem fogo lá atrás

Clancy se deliciava com um cachimbo quando surgiu a sua frente, na varanda, este nativo com a notícia inesperada. Clancy já vinha sentindo, há minutos, um odor de queimado, mas sem dar importância por ser esse fato corriqueiro em função de certas atividades comuns em fazendas. Mas em função do espanto do africano que não parava de sacudir os braços e apontar para um ponto determinado, levantou-se mais do que depressa e foi verificar o que tinha acontecido. Ao virar a varanda e ir para trás da casa divisou a fumaça; subia negra e compacta, já ultrapassando algumas árvores.

- Não pode ser o que eu estou pensando! Não é possível – e correu desesperado a checar o que apenas suspeitava.

Não deu outra. Infelizmente, para ele. Confirmou-se o seu pensamento. Já em fase impossível de ser controlado, o incêndio fazia arder em chamas o caminhão. A carroceria, que abrigava o arsenal que surpreendeu Clancy por sua incrível quantidade, queimava, sem dar chances a um grupo de nativos que assistiam de certa distância, de tentarem algo para amenizar o incêndio. O fogo começara ali mesmo e espalhava-se em direção à cabine. Havia uma parte ainda intacta, mas como penetrar ali para resgatar o que ainda não tinha sido atingido? Três dos nativos, num ato de loucura ou de coragem, aproximaram-se além do aceitável, portando mangueiras. Clancy, ao presenciar aquilo, gritou, mas já era tare demais.

- Não!

O que se viu em seguida assemelhou-se a uma cena de filme repleto de efeitos especiais. O veículo explodiu. Um barulho infernal tomou o ambiente e os pobres coitados foram lançados para o alto de forma terrível e violenta. Caíram carbonizados a metros dali. Tudo foi para os ares. Uma chama medonha e crepitante ainda pervagou por instantes. O incidente deixou o local, uma área antes rica e verdejante, mais parecido a uma arena de guerra e destruição.

Clancy apressou-se em se dirigir para o interior de sua cabana, certificando-se de que ninguém o havia seguido. Abaixou-se ao lado da cama e puxou uma caixa de papelão, de tamanho médio, reforçado. Abriu e verificou o seu conteúdo. Se não tivesse passado por sua cabeça separar e guardar aquela parte do material poderia dar como cancelada a missão até que novo suprimento fosse conseguido. Abriu e conferiu o interior da caixa. Pegou nos rifles e nos revólveres, verificou cada um; checou a munição, contou as facas e guardou tudo novamente com cuidado. Pensou em manter segredo por enquanto quanto àquela preciosa carga até que uma investigação a respeito das causas do incêndio estivesse concluída. Não queria pensar em um ato criminoso, mas também não descartava essa possibilidade. Foi para o outro cômodo e olhou a arca. Lá estava ela, totalmente intacta e devidamente lacrada. Um frio correu-lhe na espinha ao imaginá-la perdida também no incêndio.

A preocupação agora passou a ser procurar o que fazer ou o que não fazer, visto que, sem armas e equipamento de proteção seria inviável uma excursão selva adentro. Sendo assim, todas as atividades haviam sido interrompidas até que uma ordem de Clancy designasse o próximo passo. Ao sair da cabana deparou com os nativos sentados na grama, de braços cruzados. Eles eram assim, enquanto uma ordem não fosse proferida não fariam nada e nem iriam a lugar algum. Aquelas fileiras de homens magros, trajando uma espécie de canga, sandálias de tiras de bambu e sem camisa tomaram quase toda a área frontal da cabana principal queera a de Clancy, entre esta e a estreita ruazinha de terra. Suas cabeças pequenas e semi raspadas pareciam não diferenciá-los uns dos outros; tinham todos a mesma expressão do nativo que não se deixaabalar em momentos de crise. Clancy fez um sinal de mão para os quatro que permaneciam de pé e eram os representantes das equipes. Fechou-se com eles por um tempo relativamente longo e os liberou em seguida.

A missão teria continuidade. Era primordial que a arca chegasse ao seu destino dentro do prazo estipulado. A equipe de Clancy e todo o restante do material, conforme o que fora combinado chegaria dali a dois dias nas primeiras horas da manhã e os aguardaria no Delta do rio Mucamba, na saída da vila de Potozil. A não ser que um apressamento se fizesseo quanto antes Clancy não conseguiria cumprir o horário marcado para esse encontro e, por conhecer a natureza do capitão Dirk, sabia que não escutaria pouco. A marcha seria íngreme; o trecho a seguir era em declive e os nativos não se mostravam muito animados em virtude da perda dos companheiros. Ainda assim não podia haver perda de tempo e ele ordenou a marcha.

Sem dúvida que o obstáculo maior constituía exatamente o transporte da arca. Não menos do que seis homens para carregá-la tal o seu peso e tamanho e a troca deles tinha que ser frequente, por isso, também, a grande quantidade de nativos para essa viagem. Outro motivo era a enorme quantidade de arcas menores, dezenas delas; menores, mas igualmente pesadas. Sendo assim, todos tinham o que fazer. Como eram muito sagazes e organizados não se deixavam enganar por uma possível esperteza quanto à ordem e à vez de cada grupo na tarefa árdua de carregar a pesada arca. Clancy ordenou a entrada dos seisda vez em sua cabana seguidos de um dos chefes. De lá saíram e tomaram a dianteira. Na frente destes apenas uma pequena equipe de não mais do que quatro ou cinco homens que tinham por missão verificar as condições do solo, como possíveis obstáculos ao bom andamento da marcha. Eram de todos os nativos,os únicos a utilizarem armas e treinados para este tipo de missão.

O grande segredo envolvendo esta longa e inusitada travessia estava no conteúdo das arcas; não só na principal como em todas as outras. O próprio Clancy não tinha total noção do que aquela missão representava. Sua única e exclusiva função era proteger o material de que fora incumbido fazer chegar a Nairóbi. Cada dois nativos transportariam uma arca. Outros, objetos menores, porém valiosos. Olhando-se para trás avistava-se a longa fileira de homens. Alguns, curvados pelo peso de algo volumoso em suas costas. Outros, fazendo dupla com um companheiro,iam agarrados às alças de uma bela e doirada arca, lacrada com cadeado de prata,a poucos centímetros do chão, ora de terra fofa e escorregadia, orade uma mata recém-aberta pelos facões dos que iam à frente. Clancy, quando não apressava os passos para conferir a segurança de sua arca mãe, demorava-se ou retrocedia um pouco na intenção de verificar a organização e o desempenho de todo o grupo.

O grupo de seis homens já não se aguentava de tanto cansaço quando teve que parar em função de um alerta vindo da equipe que vistoriava o terreno à frente. Os pés daqueles seis nativos já se afundavam no solo que, àquela altura era úmido e fofo e isto requeria deles esforço em dobro. Mas não se importaram muito quando isto começou porque dentro de poucos minutos seriam substituídos; estavam, portanto, mais contentes do que insatisfeitos. Todavia, um acidente, totalmente inesperado, porque quase todos os acidentes são inesperados,fê-los sofrer sem conta. Uma manada de búfalos estava prestes a cruzar o caminho por onde eles deveriam passar. Não poderiam seguir em frente.

Também não poderiam afrouxar tampouco deitar a arca devido às condições do terreno ali não serem nada propícias. O que fariam? Absolutamente nada a não ser esperar. Mas por saberem que a paciência daquele tipo de animal era muito maior do que a deles naquelas circunstâncias prepararam-se para o pior dos sofrimentos.

Alguém que presenciasse aquela cena achá-la-ia, no mínimo, cômica, embora fosse fruto de uma situação insustentável. Tudo o que mais queriam era poderem descansar, posto que já se encontrassem no limite de suas forças. Clancy percebeu isso na expressão fisionômica de alguns deles. Sendo assim agiu para que uma providência fosse tomada. Enquanto isto não acontecia o que se viu foi um princípio de desequilíbrio na ação de carregarem a enorme arca. Na verdade foi um desequilíbrio e tanto. Fruto da falta de coordenação; davam agora passos trôpegos e perigosos. Uns a puxavam para frente enquanto outros não conseguiam acompanhar e davam para trás ou andavam para os lados. O resultado desta falta de sintonia foi uma dança que estava prestes a levar ao chão, totalmente impróprio, o precioso material, a menina dos olhos de Clancy.

A única dúvida de Clancy era se aquele espetáculo grotesco e inesperado provinha do cansaço dos homens imbuídos no transporte da arca ou do medo deles por já saberem que búfalos se aproximavam. Só que ele não esperou para confirmar isto; era o que menos lhe importava diante das circunstâncias. Assim, destacou imediatamente um dos chefes de equipe para lhe conseguir seis novos carregadores, estivessem ou não na vez; o caso era emergencial. Neste momento ouve-se o ruído agudo e estridente de algo se aproximando; eram os búfalos. Vinham em desembalada correria. Somente ao se mostrarem visíveis é que deram a noção de quão perigosa seria a sua aproximação. O barulho era ensurdecedor; os mais pesados vinham na frente em enorme algazarra. Os carregadores da arca já haviam sido substituídos a essa altura e, assim que se viram livres de tamanho fardo estatelaram-se no chão, não se importando com o que poderia acontecer com eles. Os animais passaram, entretanto, sem maiores contratempos, deixando não mais do que um grande susto.

Iniciaram agora uma ligeira descida, ao fim da qual era o local do encontro. Um longo e sinuoso rio já podia ser avistado, com suas margens meio que escondidas por uma vegetação compacta, formada de arbustos e pequenas árvores que desfilavam montanha abaixo; era o rio Mucamba. Contornando esse bosque ele novamente aparecia com grande impetuosidade, carregando restos de vegetação, pedaços de barrancos e outros detritos para novamente sumir na curva seguinte. Em pouco mais de vinte minutos de caminhada estariam entrando na vila de Potozil.

A visão da vila era no alto. Dirk ergueu o par de binóculos e olhou, curioso, os primeiros sinais da aproximação. Ele estava acompanhado de um pequeno grupo, quatro homens e duas mulheres, todos a serviço do governo de Nairóbi na incumbência de proteger a carga até o seu destino. Até ali havia Clancy executado a sua parte com desenvoltura e autoridade. Com exceção do acidente ocorrido com o caminhão, que resultou na perda de quase todo o arsenal, tudo ocorrera dentro do previsto. Foram mais de vinte e quatro horas de árdua caminhada e superação de uma série de obstáculos. Dali em diante a missão de Clancy perderia um pouco do seu brilho, mas ele não se importava com isto. Ficaria um tanto na retaguarda, deixando a cargo do grupo a tarefa principal. Embora conhecesse, até melhor do que qualquer um ali, cada pedaço do caminho que iriam enfrentar, não tinha intenção de se intrometer nas decisões que fossem tomadas.

Dirk sinalizou para o motorista do jipe que os trouxera até ali, ordenando que retornasse. O homem deu meia volta e acelerou e o carro desapareceu da vista de todos ao fazer a primeira curva ao fim da estradinha de terra. Acabara o conforto; Dirk sabia que dali para frente teria que suar a camisa. Cada um, homens e mulheres, pegou do chão sua mochila, lançou-a às costas e seguiu o chefe enquanto este descia o talude para apertar as mãos de Clancy que já o aguardava lá embaixo. A primeira coisa que chamou a atenção de Dirk no momento em que cumprimentava o outro foi a maneira com que os nativos baixavam no chão a preciosa arca. Na opinião de Dirk o movimento fora atabalhoado e ele não ligou às explicações de Clancy de que os homens já estavama quase oito horas com aquele fardo às costas e que, a pedido dele, consentiram prolongar um pouco mais a fim de fazerem a troca naquele momento e local do encontro com o grupo; Clancy prometera uma boa recompensa e os homens concordaram.

- Umas boas chicotadas é o que merecem! Não me importam as razões que está me dando. São pagos para trabalhar. Se eu encontrar um só defeito naquela arca todos me pagarão por isto.

Dizendo isto, saiu de onde estava, indo em direção ao grupo que baixara a arca. Já chegou empurrando alguns deles. Um, de tão cansado, e dado à violência do empurrão, caiu sentado no chão, metendo as mãos num lodaçal que se formara pela chuva recente. O nativo, sem ação, pois não entendera nada do ocorrido, encarava Dirk, cheio de pasmo e assustado. Um dos chefes de equipe tudo testemunhara de longe; saiu feito fera de onde estava. Dirk o reconhecera ao se aproximar, pois o servira durante alguns meses em Nairóbi.Houve discussão. Dirk sabia que estava errado em sua atitude; isto não era forma de recepcionar a equipe que havia se esforçado tanto até ali. O chefe de equipe estava furioso e não se conteve para repreender Dirk pela forma como agira. Dirk o respeitava. Não por hierarquia porque era também seu subordinado, mas por ter sido, durante anos, seu braço direito na direção das fazendas que possuía em Nairóbi e o pioneiro na ascensão e na adaptação de Dirk àquele país da África. Não fosse por Manuti, o chefe em questão, Dirk jamais teria chegado aonde chegou.

Dirk fez ver a Manuti que aquela não era uma forma correta de trabalhar; que estava admirado por, sendo Manuti um dos responsáveis pelo transporte, permitir que agissem daquele jeito, já que, conhecendo tão bem o patrão e sabendo que estavam perto de encontrá-lo, não deveriam ser tão negligentes e com um objeto tão importante e valioso. Manuti replicava dizendo que não era competência dos nativos levarem em conta que tipo de objeto estavam transportando; que a função deles era não mais do que simplesmente transportá-lo da melhor forma possível. E a melhor forma possível, segundo as condições do terreno, do próprio peso do objeto e o pedido de Clancy para que fizessem além do pré-combinado era aquela que ele, Dirk, acabara de presenciar. E não adiantavam as réplicas de Dirk. Quanto mais rebatia as justificativas de Manuti, mais estelhe repreendia com explicações que pareciam mesmo plausíveis e aceitáveis. Mas o gênio de Dirk não permitia que ele cedesse, admitindo sua forma grosseira de se comportar. A discussão prolongar-se-ia indefinidamente se Clancy não houvesse se aproximado para tentar apaziguar os ânimos de ambos, tão exaltados.

Diferentemente de Manuti, Clancy não tinha razões para considerar Dirk e nem ser por esse considerado. Pelo contrário, as informações que dele obtivera ao se informar sobre os líderes da travessia não eram as melhores. E, depois da cena que veio de testemunhar, acabou confirmando o que alguns falaram sobre ele, sobre sua arrogância e frieza. Mas Clancy não deixou transparecer nenhum outro sentimento além de simpatia e camaradagem. Como não era conhecido cumpriu bem o seu papel de apaziguador e fez com que tudo fosse esclarecido usando sua tática de liderança. O incidente foi esquecido. A partir dali, após serem apresentados uns aos outros, foram formadas as lideranças. Todo o grupo foi dividido em duas partes, ficando, Dirk e Clancy, cada um com uma mulher e dois homens para auxiliarem-nos. A grande arca passou para o grupo da frente, chefiado por Dirk e seus auxiliares.

Descendo por um caminho íngreme, porém mais aberto e de melhores trilhas, o grupo de Dirk avançava um pouco mais. Mesmo transportando a grande arca a impressão que se tinha era a de que, sob o rígido controle de Dirk os nativos eram menos negligentes e por isso rendiam mais, talvez por medo ou um forçado respeito. O incidente acabou servindo para precavê-los da figura draconiana do chefe. Outra razão era a presença de mais olhos vigilantes nas figuras de novos homens brancos e parece que ter uma mulher na liderança era um fator relevante para os nativos. Neste pedaço de terreno em que segue o grupo de Clancy o avanço parece bem mais difícil, mas, por conhecer aquela área ele, fingindo amabilidade, deixou que Dirk seguisse pelo caminho que, aparentemente, seria o melhor. Mas Clancy sabia que não. Preferiu seguir pelo alto, próximo à ribanceira e desviando-se de precipícios e de rochedos íngremes a ter que pegar a planície, onde tudo parecia calmo e convidativo. Com exceção da arca principal, que ficara a cargo do outro grupo, o de Clancy carregava quase que a totalidade da carga. Para piorar, o grupo ficou menor e por isso os homens davam mais de si ao transportar o material; Clancy obrigou-se a contornar a insatisfação de muitos deles. Mas, contudo isso sabia que estaria em vantagem ao utilizar aquele trecho e não a trilha por onde seguia o grupo de Dirk.

A visão que tinha lá de cima era privilegiada no sentido de poder acompanhar quase todos os passos de Dirk e seu grupo. Este contornava por baixo uma planície vasta e verdejante. Cada homem de Clancy necessitava de um cuidado redobrado em cada pedaço de terreno sobre o qual caminhavam. Havia trechos que, além de íngremes, eram extremamente perigosos por apresentarem terreno estreito e mesmo escorregadio em parte dele. Fazia-se de tudo para evitar esses trechos e quando isto era impraticável era preciso fazer passar homem a homem de mãos vazias. Lá embaixo, o fragor horripilante das ondas ao beijarem com violência as rochas; a simples visão causava medo e apreensão. Era preciso contornar a grande montanha. Clancy conhecia como ninguém a região e sabia que, à frente, ao fim de mais algumas horas de caminhada, havia a ponte de cordas que ligava as duas montanhas. Sabia também que aquilo exigiria esforço em dobro de sua equipe, portanto fazia o possível para não cansá-los agora.

A visão ao longe era magnífica e encantava o apreciador. O horizonte espraiava-se por sobre a ponta do oceano. Os raios amarelados dos últimos momentos da luz do sol refletiam-se por grande faixa de água. Para o lado esquerdo do céu, nuvens enegrecidas davam conta de um temporal que não custaria a se precipitar. Clancy levou à cara o binóculo e confirmou os sinais. Considerou uma parada em breve antes da noite definitiva. Isto fugia a sua programação. Caso fossem surpreendidos pela chuva ainda no trecho arriscado que procuravam superar certamente teriam problemas. Essas ponderações de Clancy foram interrompidas por uma repentina e forte trovoada. Pouco mais da metade dos homens havia ultrapassado o ponto crítico da montanha; aquele em que rochas e árvores tombadas por tempestades interpunham-se no caminho já estreito para uma passagem. O chão ali era sedimentoso e escorregadio. As arcas, embora de tamanho aceitável, eram surpreendentemente pesadas e era preciso pisar com todo o cuidado; qualquer descuido seria fatal. Das vinte e duas arcas quinze já haviam sido transportadas para a estradinha ao final da curva perigosa e já se viam enfileiradas, aguardando suas companheiras. Alguns dos nativos, mais experientes, voltaram a fim de auxiliarem os outros.

Quando já estavam na arca de número vinte, faltando apenas duas para completarem a difícil tarefa, desaba impiedoso, o temporal. E o pior, uma, a penúltima, estava no meio do processo, desafiando a coragem e o cansaço dos bravos carregadores. Um deles escorregou no solo já encharcado e rolou no barro do acostamento. Tendo largado a arca que trazia com o outro, esta desceria com tudo e iriam os três para o fundo do precipício caso a previsão inteligente de Clancy não os viesse amarrados a grossa corda pelassuas cinturas e pela alça da arca, presa à outra ponta a possante árvore de um nível superior do barranco. A morte, ludibriada e vingativa, não poupou, todavia a intensa e cansativa trabalheira para removerem de sua situação, agora ridícula e lamentável, os dois homens cheios de dor e desgosto e a arca, indolor, mas provavelmente danificada. Isto é o que veriam no momento oportuno, se houver essa permissão e se houver esse momento.

A chuva ainda demorou a cessar. Embora fosse esse um sério problema, não afetava tanto a Clancy quando o desaparecimento de Dirk de sua visão. O atraso provocado pelo contratempo da chuva com o acidente contribuiu para isto. Clany sabia ser isto inevitável devido às diferenças de terreno que enfrentavam, mas não esperava que se desse tão rapidamente; deixou-o deveras contrariado. A razão dessa contrariedade dava-se mais pelo bem de Dirk do que por concorrência ou rivalidade. Se a missão era em comum teriam que se ajudarem uns aos outros, mas Clancy desconfiava que Dirk não pensasse desta maneira. Na verdade, disto ele tinha certeza. O de que ele desconfiava e buscava certeza é o que saberemos mais à frente.

Restava agora não mais do que um leve e inofensivo chuvisco. Ali mesmo, no começo da estradinha que levaria à ponte de corda, montou-se o acampamento. Era na verdade uma trilha aberta no meio da mata e utilizada em um passado recente para o transporte às costas de sacas de café até os centros comerciais de Nairóbi. Era um transporte alternativo visto que já havia a maioria das vias seguras que existem hoje, mas empresários menores e outros insaciáveis preferiam esse trajeto mais difícil e perigoso por força da isenção dos pesados impostos que a exportação requeria. Acidentes com mortes, doenças, e todo tipo de imprevistos não os desestimulavam e pareciam compensar a grande economia e miséria que pagavam aos nativos facilmente conquistáveis.

A razão do descontentamento de Clancy ao perder de vista o grupo de Dirk fica por conta do ataque de tribos sanguinárias bastante comuns lá embaixo. Clancy denominava de trilha da morte aquela região. Dependendo do número de inimigos a sua frente essas tribos enfrentavam ou não armas de fogo; sempre atacavam em grande número e não era fácil intimidá-las. Todavia, mesmo à distância, ao verem o grupo de Clancy, bastante inferior, não o atacariam, pois temeriam o confronto. Algo dizia, e a intuição deles dificilmente falhava, que teriam que enfrentar armas de fogo em boa quantidade. Ainda quanto ao trajeto de Dirk, o trecho era perigosíssimo e traiçoeiro, pois era preciso atravessar rios e lagos onde pontos arenosos confundiam-se com areias movediças, nunca se sabendo quando se estava sobre um ou sobre outro.

Fora da visão de Clancy, Dirk comandava o grupo de não menos do que sessenta e cinco nativos. Sempre oito com a grande arca e o restante portando objetos menores. O sol incidia agora com toda a força de seus raios sobre as costas nuas e suadas dos carregadores. A arca principal ia à frente. Dirk não largava mão de vigiá-los. Contornavam agora um pequeno lago e estavam a poucos metros de mergulharem em uma mata serrada cheia de trilhas escuras e íngremes. O grupo da frente, composto por cinco homens, abria espaço para a passagem da grande arca. Viam dificuldades, posto que pequenos arbustos tivessem que ser abatidos para dar acesso; isso tomava tempo e fazia cansar sobremaneira aqueles oito homens. Dirk não permitia que eles descessem a arca para esperarem a manobra dos desbravadores e isto os estressava além de um limite suportável. Em dado momento deste trabalho ouviu-se um alarido que foi crescendo até horrorizar todos sem exceção. Dirk ordenou silêncio e todo o grupo se abaixou dentro da mata. A arca foi ao chão com cuidado, o que foi um alívio para aqueles homens que já não mais se aguentavam. Dirk rastejou até uma ponta de trilha e afastou alguns galhos para identificar a origem dos gritos.

Ele não conseguiu contar, mas viu dezenas de selvagens descendo uma das colinas que iam dar no lago e que compunham uma tribo que lhe pareceu, pela aparência, das mais perigosas. Eram de uma cor escura intensa semelhante ao carvão e estavam pintados no rosto e em parte do corpo. Carregavam lanças muito compridas. É certo que partiam preparados para a guerra contra outra tribo. Dirk estremeceu ao verificar que elescertamente contornariam o lago como ele havia feito e aí teriam duas opções. Mergulhariam também na mata onde a carnificina seria certa, pois o grupo pouco avançara e ainda estava exposto. Ou virariam à direita e desapareceriam entre as árvores compactas de um bosque. O aceno silencioso e preocupante de Dirk indicou o que certamente fariam; iriam mergulhar mata adentro. Todos, sem exceção, obedecendo ao comando, deitaram-se; o mínimo sinal de respiração precipitaria o ataque. O estraçalhar de galhos secos sob pisadelas impetuosas, o arfar do capim molhado pela recente chuva, abrindo e fechando passagens no meio da mata e não muito distante deles era o que de mais temível se podia ouvir; era o medo da morte, de ser espetado por uma lança envenenada ou esmagado pelas patas selvagens dos guerreiros anti-humanos.

O alarido tomou proporções indescritíveis à medida que mais próximo eles iam chegando. Passaram como um exército fustigado pelo fogo inimigo. Por sorte de todo o grupo isto se deu a alguns metros de distância, o que deu a Dirk a certeza de que um combate estava para acontecer; nãoeram eles o alvo. Desta vez sairiam ilesos, mas até quando? Este pensamento cruzou a mente de Dirk e fê-lo odiar Clancy por ocultar dele aqueles perigos. Dirk sabia que o outro era experiente neste tipo de aventura; podia tê-lo prevenido. Esperou que cessassem os gritos, mas isto não aconteceu, pelo contrário. Eles aumentaram em intensidade e só a distância fez com que se fizessem menos perceptíveis. Dirk engatinhou até uma árvore do lado oposto ao seu e confirmou o que ele pressentira há instantes. Um confronto estava prestes a ocorrer. E bem ali. Há metros de distância de onde se encontravam. Pela visão do binóculo detectou negros fortes, dezenas deles, carregados de arco e flechas. Como característica, uma faixa de tinta branca no meio da cara, descendo até à barriga e um cinturão de fibras encimado por um porta flechas amarrado ao peito.

Já a esta altura puderam, os homens de Dirk, efetuar movimentos e até porem-se de pé, pois não havia o perigo de serem agora avistados, menos pela distância e pela mata cerrada que os abrigava do que pelo confronto de morte prestes a se iniciar. Atacaram-se para valer. Não era um espetáculo para se apreciar tranquilo e sem náuseas. As flechas voavam até encontrar seus alvos. Muitos ficaram pelo caminho, cravados e envenenados até que foi inevitável o choque; dir-se-ia uma carnificina tamanha era a violência do confronto. Dirk só ficou o suficiente para constatar que os homens com flechas levaram a melhor talvez por serem mais fortes e bem treinados. Após dizimarem mais da metade da outra tribo, perseguiam agora o restante que, apavorado, corria em direção ao bosque distante.

Foi um momento de grande susto para todos. Não mais havia sinal dos selvagens; mesmo assim teriam que se precaver. Dirk começou a achar, enquanto caminhava, beirando agora o leito de um rio, acompanhando com o olhar fiscalizador a condução da arca, que precisava agir o quanto antes, pois já não estava tão distante agora o destino do séquito. Teriam que atravessar uma grande área deserta e arenosa onde, possivelmente, fariam acampamento. Montaram lá as barracas de uma forma tal que deixasse a sua e de seus auxiliares diretos, que na verdade eram os seus comparsas, quase à beira da estradinha, local de encontro com o caminhão para o recolhimento da arca que ele pretendia roubar do Instituto de Arqueologia de Nairóbi. Ela continha o esquife do faraó Amenhotep I da vigésima sétima dinastia, do Império Novo Egípcio que estava sendo levado, sob a inspeção dele e de Clancy, de volta para a África após pesquisa científica em Nova Yorque.

Manuti, a única testemunha capaz de atrapalhar a investida dos criminosos, fora amarrado à noite, impedido de qualquer reação. Com a chegada do veículo ao raiar do dia, todos os nativos foram dispensados por Dirk e pagos por ele o que ficara estabelecido. Seguiram contentes e sem qualquer tipo de contestação e desapareceram na primeira curva do rio deixando para trás suas cargas incômodas. O que ele não previra e acabou acontecendo foi o seu reencontro com Clancy e o fim de seus planos e o desmascaro de sua quadrilha. Superados todos os obstáculos no alto dos montes que, por sua escolha teve que enfrentar, Clancy, conhecedor de cada metro de toda aquela região, galgou com destreza e bem auxiliado a descida que o levaria exato ao ponto de interceptação das intenções de Dirk.

- Esperava que fosse assim tão fácil? – disse Dirk a um dos comparsas.

- Mas não foi tão fácil assim; esqueceu-se dos perigos que enfrentamos no caminho? – respondeu o outro.

-É; você tem razão. Mas não quero pensar mais nisto. Agora é descermos até a pista e partirmos para o aeroporto. Collin já aterrissou segundo me disse no rádio.

Depois de carregar o veículo com tudo que achou necessário além da preciosa carga, Dirk e seu grupo desceu lenta e confiantemente, em direção à via principal para a sua fuga. Só que não contavam com uma articulação militar fechando a principal via de acesso; tudo pré-combinado entre Clancy e o exército de Nairóbi. Não houve resistência e nem poderia haver; acabaram se entregando e também os demais da quadrilha. Terminou dessa forma a travessia do valioso sarcófago do faraó Amenhotep I. Felizmente ele chegou intacto ao seu destino o que, para o futuro da ciência da história e da arqueologia representou um grande acontecimento.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 25/07/2015
Reeditado em 25/07/2015
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