A Vida Real

Havia, num cantão da Arábia, lá para os lados de Riyadh, a capital ancestral da dinastia de Al Saud, um próspero e respeitado rei. Abdul Aziz, após a captura de Riyadh, fizera por seu povo melhorias que o colocaram entre os maiores monarcas de toda a história da monarquia saudita. O castelo vivia em festa. A felicidade era evidente na fisionomia de todos, pois nunca um período tão longo de paz e prosperidade havia tido lugar em reinados anteriores.

Contudo o rei não era feliz. Aquela vida o havia cansado. Luxo, iguarias invejadas e honrarias já não o satisfaziam. O vazio que passou a sentir corroía-o dia a dia e ele caiu doente. O medo de que, com sua morte, a boa vida de todos pudesse ser abalada fez redobrar os cuidados para com o monarca.

- Que querem? Não veem que sou infeliz?

- Mas, majestade! O que mais podemos fazer? - dizia um de seus conselheiros.

- Deixem-me a sós com meu médico.

- Consiga-me um sósia - disse ao ficar a sós com o outro - E que fique entre nós o segredo; vou recompensá-lo a altura.

O médico não perdeu tempo em conseguir o que lhe fora ordenado. Alegando necessidade de cuidados especiais, removeu para sua casa o doente e, dois dias depois, apresentou ao monarca a cópia exata de sua própria pessoa. O rei ficou impressionado com tamanha semelhança e dispôs-se, sem perda de tempo, a colocar sua ideia em execução. Deu ao desconhecido as orientações básicas de sua rotina diária e saiu para o mundo.

Dirigiu-se dali para a casa de seu sósia. Impressionou-se com a pobreza extrema em que ele vivia com sua família. Mal tinham o que comer. A mulher era doente dos nervos e passava os dias a praguejar e falar os mais horripilantes palavrões. O rei estranhou que aquele comportamento pudesse partir de um ser humano. Batia nos filhos menores com arame e os amarrava para que não saíssem de casa. E era acostumada a bater também no esposo. Mas quando veio para cima de rei ele reagiu fortemente e matou a mulher, estrangulando-a.

Envolto em miséria e nunca tendo sido acostumado a ganhar dinheiro por força do trabalho, o rei se sentiu perdido e tratou de fazer alguma coisa para que não morresse de fome. Procurou em todas as casas comercias e também nas residências, alguma forma de ganhar dinheiro oferecendo-se para trabalhar naquilo que lhe fosse oferecido. Mas seu estado era, a essa altura, o pior possível. Estava magro, abatido pela fome, com uma barba e um cabelo que assustavam. Sendo assim, todos só queriam distância e viam nele não mais do que um vagabundo de rua.

Pensou no castelo; voltaria para sua vida de sempre, rica e afortunada. Mas rechaçaram-no antes mesmo que se aproximasse. Enquanto se afastava, uma ideia acendeu-se em sua mente. “E se removesse a barba e cortasse o cabelo, voltando à fisionomia natural? Não teria dificuldades de entrar em meu castelo, pois todos me reconheceriam”. Assim fez, retornando no dia seguinte. Porém, o mesmo se passou, deixando-o ainda mais consternado.

- Não reconhecem? Sou eu, o rei Abdul Aziz. Olhem para mim e tirem as suas dúvidas.

Mas se algo era impossível, era ver em Abdul Aziz o verdadeiro monarca. Estava irreconhecível; magro, fisionomia cadavérica e profundamente abatido. Ainda tentou, no auge do desespero, convencer os guardiões do castelo, dando-lhes informações precisas sobre a vida e a rotina do rei.

- Vá embora, maltrapilho! Já está nos enchendo a paciência. Suma, antes que o lancemos no calabouço. Não damos comida a vagabundos.

Abdul Aziz perambulou pelas ruas sentindo-se o mais miserável e infeliz dos humanos. Ao olhar-se em um espelho, chorou de desgosto e de dó de si mesmo, pois só então compreendeu porque não deram crédito a si nem as suas palavras. Daquele dia em diante não teve alternativa a não ser virar um mendigo. Perambulava pelas ruas dias e noites seguidas, debaixo de sol e de chuva, implorando a caridade das pessoas.

Dentro do castelo, a vida do falso monarca ia em perfeito estado de nobreza e aceitação. Tão parecido era com o rei verdadeiro que as poucas gafes que cometia passavam despercebidas. Com o passar do tempo adaptou-se a tal modo à rotina de luxo e de glória que já não se lembrava do passado difícil que um dia viveu.

Abdul Aziz tinha esposa, mas a rainha era estéril e nunca pudera lhe dar um filho. O falso rei tratava-a com dedicação e carinho, mas com o passar do tempo, passou a cobrar-lhe um filho, o que a deixava triste e magoada. Essa falta de compreensão foi a única diferença no comportamento entre o rei e o seu sósia que chamou a atenção da rainha.

Em uma das saídas de praxe da comitiva real o falsou rei ordenou que tomassem um determinado caminho, parando em frente a uma casa. Era a casa em que ele morava com a esposa. Matou a saudade dos filhos, contando-lhes o que ocorrera em sua vida e soube da morte da ex-esposa. Ordenou que procurassem o assassino e que o levassem até ele. Todavia era tarefa árdua e quase impossível reconhecer em um mendigo um antigo rei.

Tão miserável estava sendo a rotina de Abdul Aziz que já não mais lhe importava a vida. Passara de um rei próspero e respeitado a um assassino impiedoso e um desprezível pedinte. Em uma de suas noites, jogado no isolamento de uma marquise, martirizado pelo frio intenso, lembrou-se de algo que poderia fazê-lo acertar as contas com seu destino: o médico que cuidara de si e que lhe conseguira o sósia. Não se preocupou desta vez com sua aparência, por não vir essa ao caso para o que precisava fazer.

- Por que não me procurou quando começou a entrar em apuros. O que posso fazer por você agora; olhe para o seu estado? - disse-lhe o médico, chocado pela aparência de Abdul Aziz.

- Falemos com o rei. Digamos a ele que é acabado o seu tempo.

- Não creio que irá aceitar. Quem entregaria assim um reinado? Somente um louco como você para ter esta ideia. Em todo caso precisa voltar ao que era antes em aparência. Não custa nada tentar.

O médico cuidou de Aziz e, em pouco tempo fê-lo retornar para bem próximo do que sempre fora em estado físico e psicológico.

Mas, ao chegarem até o falso monarca, deu-se o contrário do que esperava Aziz. O falso rei mandou-o direto para o calabouço. Acusado da morte de sua esposa, Aziz seria julgado e enforcado por assassinato.

Porém algo ocorreu que fez mudar o rumo dos acontecimentos. Os lances e os momentos da intimidade de um casal só são conhecidos de um e de outro, além das paredes que presenciaram essas intimidades. Sendo assim, ao receber a voz de prisão e de frente para a esposa que, ao lado do falso rei, não parava de encará-lo, Abdul Aziz esboçou um gesto íntimo apenas conhecido dele e de sua adorável rainha.

No momento em que iam levá-lo, ela jogou-se aos pés do falso rei, implorando-lhe o perdão para Abdul Aziz, seu adorado marido, pois ela já não teve dúvida ali de quem ele era. O falso rei não deu ouvido aos clamores da mulher e ainda cresceu em ira ao perceber a razão do ocorrido. Por isso, mandou que prendessem também o médico, o que revoltou os seus conselheiros.

O retorno de Abdul Aziz tirou do falso rei o sossego e a segurança, pois mesmo o executando, ainda restariam o médico e a rainha, os únicos sabedores de toda a verdade. Ela conseguiu convencer os conselheiros do rei da real identidade do prisioneiro, o que não foi difícil dado a enorme semelhança e o testemunho do médico que acompanhou toda a história.

Para desmascarar totalmente o falso rei, submeteram-no a um interrogatório, apresentando documentos e fotos que o deixaram totalmente perdido e sem saída. Mas, como não havia cometido nenhum crime, apenas submeteram-no ao julgamento de Abdul Aziz que, ao contrário do que se esperava, não o puniu, pois cumprira a contento o papel que lhe coubera. E, depois de uma dura e importante lição para Abdul Aziz, a paz e a prosperidade voltou a reinar naquela região da Arábia.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 08/07/2015
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