798-O PRISIONEIRO DOS BÉRBERES-

Episódio da vida de Miguel de Cervantes

Para melhor entendimento desta narrativa,

Recomendo a leitura do conto # 789 - Miguel de Cervantes

Miguel de Cervantes e seu irmão Rodrigo, feitos prisioneiros de piratas que infestavam o mar Mediterrâneo, foram vendidos como escravos na grande feira de prisioneiros de Argel, naquele tempo já capital de extensa região dominada pelos berberes (mais tarde conhecida como Argélia).

Ambos foram adquiridos por Selim Ad-Dim, comerciante em Argel e dono de de mais de 100 camelos, que viajavam pelo deserto, levando mercadorias e trazendo alguns produtos (tâmaras, principalmente). As caravanas de Salim iam até Tunis, Marrocos e adentravam-se pelo deserto até Argel e Marrakesh, a oeste, e Tunis e Tripoli, a leste.

Os irmãos foram mantidos juntos, pois fazia parte do comércio negro de escravos o pagamento de resgate. Desta forma, os dois irmãos poderiam render grande soma, quando a família soubesse do destino atroz e da vida miserável dos escravos brancos em poder dos berberes.

Reinava então em Argel o paxá Hassan Al-Din, que havia derrotado os espanhóis do Imperador Carlos V, em 1541.

A história dessa batalha foi contada a Miguel por um combatente espanhol, Dom Alfonso Delano Guante, capturado então.

— Eu era capitão do El Algarve, e nossa frota tinha mais de 1.000 barcos, com cerca de 30.000 combatentes. Fomos atingidos por uma tormenta infernal quase às costas da Beberia, e a maior parte de nossa frota foi a pique. Os que conseguiram escapar à tormenta foram lançados à costa da África. Acho que foram mais de cinco mil prisioneiros.

— E você não tentou fugir, durante todo este tempo?

— Sim, por diversas vezes. Já estou neste cativeiro há trinta e cinco anos, hoje já sou um velho acabado, mas logo depois de ser capturado, tentei, por diversas vezes, fugir, mas fomos (eu contava com muito amigos para a fuga) não escapamos à vigilância dos berberes.

— Pois enquanto eu for vivo, vou tentar sair desta vida miserável. — Falava Miguel, em suas conversas com os outros prisioneiros.

O cativeiro de Miguel era suave. Os árabes, apesar de cruéis, confiavam nos prisioneiros mais inteligentes, e os tratavam com leniência. Miguel logo deu provas de sua capacidade de fazer contas e Selim Ad-Din o encarregou de uma de suas lojas espalhadas pela cidade.

Granjeou a confiança do berbere, com o qual mantinha também longas conversas, pois Miguel aprendeu rapidamente o dialeto árabe usado na cidade e região.

Na sua primeira tentativa de fuga, foi capturado, um ano após o resgate do irmão. Perdeu o posto de confiança de Selim, que o mandou trabalhar nos cercados dos camelos. Sua tarefa: limpar os cercados do estrume dos camelos, conduzidos para uma grande área plantada em mexericas, limas e outras frutas da região.

Trabalho árduo, do qual se livrou quando aprendeu a lidar e a montar os camelos. Hábil na montaria caiu no gosto do chefe dos caravaneiros, que o mandou trabalhar como ajudante de caravaneiros. Passou a acompanhar as caravanas, onde não tinha uma atividade fixa. Tinha que observar os camelos em caminhada, a ver se apresentassem algum problema e quando paravam, era uma lufa-lufa danada: armar barracas, coletar água, limpar a área (os árabes obrigavam os ajudantes a enterrarem todo o excremento dos animais), em seguida desarmar o acampamento e novamente observar os camelos em caravana.

Foi na segunda caravana que acompanhou, quando chegou a Tanger, que Miguel tentou fugir. A cidade era cheia de becos e esconderijos, e por algum dinheiro (ou promessa de serviço a bordo) conseguia-se escafeder-se e fugir em alguma embarcação.

Mas o capitão do navio obteve mais lucro denunciando Miguel antes de partir e entregando-o de volta ao chefe da caravana, Fardi Mulamah.

A cada tentativa de fuga, nova degradação atingia o escravo fujão. Desta vez, a Miguel foi aplicada dura pena: ao passarem pelo oásis El-Ouad, onde Selim Al-Din possuía extensa plantação de tamareiras, lá foi deixado, para trabalhar na coleta e no cuidado da plantação. Não ficou só, pois trabalhadores já habitavam a propriedade. Mas as condições de vida e de trabalho pioraram visivelmente, a ponto de se tornarem insuportáveis ao calejado Miguel.

Nova fuga, passando por El Ouad até Biskra, cujo caminho seguia ao longo da margem ocidental de um grande lago, Chot Menihir. Em Biskra, de novo fracassou e foi preso. Para safar-se de um cativeiro ainda pior, nas galés, confessou ser escravo de Selim Al-Dim e foi reconduzido a Argel.

Quando se deparou novamente com seu proprietário, este lhe deu a notícia:

— Você será recambiado para a Espanha, pois o valor de seu resgate já está em mãos de um judeu, em Almeria, na Espanha.

Miguel compreendeu então que, pra os árabes, era sempre necessário mantê-lo vivo, (por mais castigos que lhe fossem infligidos) pois valia uma impressionante soma para o seu proprietário.

Era o ano de 1580, e Miguel de Cervantes estava com 33 anos. Grande foi a emoção ao ser recebido no porto de Almeria, pelo irmão Rodrigo.

Entre lutas, escravidão, castigos, e prisões, por onze anos Miguel de Cervantes havia passado longe da pátria.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 7 de agosto de 2013

Conto # 798 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/05/2015
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