717-VADINHO E O TREM DE FERRO - 3o. da Série "Vadinho"

Continuação de:

004 - Vadinho Vai à Venda

605 - Grotão Negro

O caminhão ia devagar, com a elevada carga de carvão balançando-se perigosamente ao passar pelos buracos da estrada de terra ou nas curvas fechadas. Na cabine, além do motorista Euzébio, estavam Otero e sua filha Nicinha e Vadinho.. Por sorte, todos eram muito magros e se acomodavam como podiam.

Vadinho estava sentado entre o motorista e Nicinha. A noite caiu tão logo saíram da carvoaria, e os faróis iluminavam a estrada, os barrancos e os galhos das árvores que pendiam e, por vezes, roçavam a carga alta do caminhão. O garoto ia conversando com Nicinha mas adormeceu antes da metade do caminho.

Quando chegaram à vila já era noite fechada. Euzébio parou o caminhão rente às casinhas que estavam construídas ao longo da estrada, como se esta fosse uma rua. Através das janelas abertas podia-se ver a simplicidade – ou miséria – dos habitantes. Luzes fracas iluminavam as salinhas ou quartos. Pessoas esquálidas assomavam-se às janelas ou se colocavam de pé às portas das pequenas habitações, para ver o caminhão chegar. Os meninos da estrada/rua correram ao lado do caminhão, fazendo algazarra..

Cutucado por Nicinha, Vadinho acordou. Esfregou os olhos e ainda zonzo desceu do veículo, de mão dadas com a menina. Alguns moradores chegaram para cumprimentar Otero e Euzébio. Os meninos rodearam Nicinha e Vadinho. Tudo numa algazarra que indicava a popularidade tanto do motorista e do pai de Nicinha, como da própria menina.

Vadinho assustou-se. Arregalou os olhos. Era tudo tão diferente, pensou. Mas em seguida, vendo que todos eram realmente amigos, se deixou levar.

A casa de Otero era uma daquelas pequenas, feita de barro e coberta com pedaços de telhas de amianto. Entraram. Na salinha estavam duas crianças, um engatinhando e outra que já andava, mas bem pequena.

—Vem cá, Teco. — Nicinha levantou o menorzinho, aconchegando-o. O outro se aproximou e puxou a saia da menina.

—Oi, Quinzin. — Ela disse. E virando-se para Vadinho:

—São meus dois irmãozinhos.

Foram todos para o outro cômodo, a cozinha. A mulher de Otero estava mexendo panelas no fogão e mostrou surpresa com a chegada do marido. Ao olhar o menino, perguntou:

—Esse, quem é?

—Vadinho —- respondeu, lacônico.

—Vai ficar morando com a gente, pra poder ir pra escola.— ajuntou Nicinha.

—Otero, cê num tem jeito. — Falou a mulher, sem deixar de mexer nas panelas.

O homem não respondeu. Nicinha largou Teco no chão e pegou Vadinho pela mão:

—Vem. Vou te mostrar o quarto.

No quarto tinha uma cama grande e uma pequena.

—A gente dorme aqui. Mamãe e papai na cama grande. Eu e Quinzin na outra. O nenê dorme com eles, na cama grande.

—Eu vou dormir aqui?

Nicinha, dando um risinho banguela, respondeu:

—Não, seu bobo, num ta vendo que num cabe? Ce vai dormir na sala.

—No chão?

—É, no chão, mas tem uma esteira e um acolchoado ..

Comeram antes de dormir: arroz, feijão, mandioca e couve. Para Vadinho, foi um banquete. E depois, deitado no acolchoado, as lâmpadas apagadas mas não totalmente escuro, ele dormiu como um rei.

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No dia seguinte, todos acordaram muito cedo. O sol nem tinha aparecido e Vadinho acordou com o movimento das pessoas na casa. O café já estava pronto. Lavou as mãos e o rosto numa bacia onde alguém já tinha se lavado. Comeu devagar, mastigando bem o pão, como que querendo prolongar o prazer de comer.

Nicinha fazia tudo muito depressa, inclusive comer e beber a caneca de café com leite. Chamou Vacinho antes que ele terminasse de tomar

—Vem, vamos passear.

Os dois saíram de mãos dadas.

A Vila de Monjolinho ficava margens do rio Sereno. Na planície, quase não se enxergava o rio, que seguia preguiçosamente pelo espraiado, cheio de meandros. Apenas umas poucas e mirradas árvores às suas margens davam notícias do curso das águas. Não muito distante da vila, colocando um final na planície, erguia-se uma modesta serra, ainda coberta de vegetação nativa, as árvores distorcidas de troncos rugosos. Ao pé da serra, corriam os trilhos da estrada de ferro, deitados ao sol qual duas serpentes de aço, sem cabeça nem rabo, sem começo nem fim.

A vila tinha duas ruas: uma que era a própria estrada de caminhões e outra que cruzava a primeira. Uma capelinha, um armazém e não mais do que cinqüenta casas, que pareciam agachadas, acachapadas, escondendo-se, pouco aparecendo na planície. É tão desimportante a vila que nem mereceu uma estação da estrada de ferro.

Entre a vila e a linha, um campinho de futebol, onde os moradores se distraiam no único jeito que podiam. .

O trem passava ao entardecer, pelas seis horas, sem parar. O maquinista diminuía a velocidade e acionava o apito algumas vezes, pretendendo, talvez, tirar a vila do marasmo. Os meninos deixavam o jogo de bola e iam para a beira da estrada de ferro, para ver o trem passar. Alguns colocavam pedras sobre os trilhos, que eram esmagadas pelas rodas ou atiradas ao longe. Outros, mais afoitos, corriam atrás da composição, pretendendo persegui-la, com gritos e agitando os braços acima das cabeças. Brincadeira diária das crianças, num dos momentos de folguedo. Vadinho ficou observando

—Um dia vou agarrar esse trem – Vadinho gritou para os outro garotos.

—Cê é bobo,

No domingo, foi dia de ir à missa, e depois, o dia inteiro para brincadeiras. Vadinho aproveitava cada instante. De tarde, de novo no campinho jogando bola até que o trem apitou, anunciando a passagem.

Vadinho correu mito: tinha canelas finas e pernas compridas. No principio, foi correu com os mais rápidos. Correu com vontade e adiantou-se dos outros da turma. O trem de ferro parecia que ia aumentando a velocidade, mas os meninos conseguiam emparelhar-se com os último vagão. Vadinho esforçou-se e correu mais rente ao vagão.

— Num adianta, ele num ispera! — um dos garotos gritou. Vadinho aproximou-se perigosamente do último vagão, correndo velozmente. Levantou a mão direita e tocou o vagão, a mais de um metro de altura. Procurou manter-se ao lado do vagão, as pernas correndo em passadas rápidas. Sua mão tocou a extremidade inferior de uma barra de ferro presa verticalmente no fim do vagão. Agarrou –se à barra Primeiro a mão direita, e logo em seguida, a outra. Segurou com força. Suas pernas ainda se movimentavam numa corrida frenética, mas sentiu que estava perdendo contato com o chão, pois o trem aumentava a velocidade.

Os outros garotos gritavam e desistiram de correr atrás do comboio. Vadinho ouviu os gritos ao longe, cada vez mais fracos.

Se largar agora, levo o maior tombo — pensou. Segurou com as duas mãos a barra, com todas a força que seus braços podiam suportar. Então, firmemente agarrado ao vagão com as mãos, procurou levantar as pernas, que já não tocavam mais no chão. Aterrorizado, viu os trilhos passarem debaixo do vagão, a velocidade aumentando cada vez mais.

Instintivamente, tentou elevar o corpo e foi puxando o corpo para o alto, uma mão acima da outra. O ferro era liso e escorregadio. Uma mão após outra, cada vez mais alto, sungando-se lentamente.Sentia a dor dos braços, cujos músculos estãvam estirados ao máximo. Havia um espaço entre a barra e a parte externa do vagão suficiente para apoiar os pés. Vadinho foi se elevando e puxando o corpo, até que encontrou um jeito de firmar os pés. O vento zunia na cabeça e fazendo o pano fino da camisa se agarrar ao corpo magro do garoto. Sentia frio. Ficou ereto, com as mãos agarradas e os dois pés apoiados na extremidade inferior da barra Olhou para trás e viu os outros meninos, que eram pequenas manchas desaparecendo na distância e na escuridão da noite que descia rapidamente.

CONTINUA...

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 2 de março de 2012

Conto # 717 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/03/2015
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