O BERGANTIM - CAPÍTULO 2
Os dois barcos vagarosamente se aproximavam da praia. Sem pressa. Parecia que não ia chegar nunca. Alguns murmuravam pela demora, outros pelo calor que fazia naquela noite com poucas nuvens. Dos seus rostos escorria suor e podia-se pensar que estavam com medo, mas eles eram os melhores da tripulação. Tinham muita experiência em batalhas. O que iriam encontrar naquela ilha é o que lhes deixavam aflitos. Atacar navios, portos e ilhas em mares conhecidos era bem diferente e de todos ali, só o capitão parecia conhecer aquela ilha.
Finalmente os barcos chegam à praia. Todos desembarcam. Conferem seus pertences e acessórios. O capitão dá mais uma olhada em volta de onde estão e ordena que dois deles permaneçam ali com os barcos. Outros dois começaram a acender as tochas e uma delas ficou com o capitão. Ele pegou um dos cestos em forma de cilindro que parecia pesado e o pendurou no ombro esquerdo. Alguns pegaram caixas. Os outros pegaram cestos e sacos de couro.
Ao adentrar a mata, mal podiam ver seus próprios pés. Nem a luz da Lua conseguia ultrapassar as copas das árvores e suas folhagens. Nem sons de animais que tem hábitos noturnos se ouviam em meio à densa vegetação. A forma como o capitão se movimentava por entre as árvores confirmava o que alguns canhoneiros apostaram em conversas no navio: "o capitão já estivera ali naquela ilha". Estavam andando rápido demais e não dava tempo para desviar dos galhos finos chicoteando em seus rostos. O marinheiro que portava os dois machados na cintura, conhecido como Hakilo, olhou para trás e não viu mais a luz das tochas dos que ficaram na praia.
Muitos passos depois eles pararam. Na frente deles surgia uma enorme clareira que mesmo má iluminada dava para perceber que era perfeitamente circular. O capitão pede sussurrando para que eles fiquem um ao lado do outro na borda e ele começa a andar até o centro da clareira e para. Todos estavam com os olhos bem abertos, atentos, repassando na mente as recomendações que o capitão dissera no navio. Neste instante, uma figura sinistra e de difícil definição surge de dentro da vegetação e para na borda do círculo no lado oposto. “É homem, mulher..., mas o que é isso?” — sussurravam alguns. Como um reflexo de autodefesa, os marinheiros empunham suas armas esperando um ataque da figura sinistra, mas o capitão pede a eles para que se lembrem de não se precipitarem e que se acalmassem, pois estava tudo sobre controle.
— Capitão, quem é ele, ela... essa coisa, sei lá? — perguntou Hakilo.
— Essas criaturas são chamadas de Akr’ombroj. — respondeu o capitão.
— Como assim “essas criaturas”? Só estou vendo uma.
— As outras estão logo atrás de vocês. — apontando com a mão na direção deles.
Todos eles se viraram e viram as outras duas criaturas paradas imóveis atrás deles. Alguns deram um salto de susto. Outros arregalaram os olhos espantados e curiosos por nunca terem visto algo parecido. Por mais que se esforçassem em saber como eles eram não adiantava. Não era possível definir o formato de seus corpos. A única coisa possível de se ver eram os seus olhos. Os olhos deles eram brancos e reluziam à luz da Lua como lobos famintos escondidos na sombra prestes a atacar sua presa. Olhar para aqueles pontos brancos brilhantes em meio à silhueta negra parada ali diante deles era de hipnotizar e causar medo ao mesmo tempo. A admiração pelas criaturas foi interrompida pelo capitão.
— Senhores, não queria estragar este momento de contemplação e admiração destas criaturas, mas temos que prosseguir e evitem olhar de novo diretamente nos seus olhos.
Então, o capitão começou a andar na direção da criatura que estava só e parecia ser o líder dos três porque portava uma lança com um crânio humano e começou a falar na língua deles. Após alguns instantes de conversas Hakilo interrompe o capitão e pergunta:
— Senhor! O que este Akr'ombro está dizendo?
Mas ele não responde. Apenas vira a cabeça olhando furiosamente para o marinheiro e volta a conversar com a criatura. Ele pega o cesto pendurado em seu ombro, desfaz o nó que prende a tampa e o arremessa aos pés da criatura. Parte do seu conteúdo se esparrama na frente do Akr'ombro líder. A criatura se aproxima e pega um pedaço do que parecia ser de carne com pele ainda pendurada e mau cortada. A criatura leva o pedaço próximo ao seu rosto iluminado pela luz da lua e o cheira como um cachorro e abre sua boca onde podia-se ver fileiras de dentes afiados como as de um tubarão. As suas mandíbulas se abriram como as de uma serpente e abocanharam uma grande parte. Após mastigar algumas vezes, ele aponta sua lança para as outras duas criaturas que se aproximam pela lateral do círculo, uma de cada lado e apanham o cesto e o que caiu dele e somem adentrando a mata. Logo depois, o líder, ainda mastigando a carne abocanhada, faz um gesto com a lança apontando para os visitantes e depois na mesma direção onde os outros Akr'ombroj haviam sumido.
— Vamos, peguem suas coisas! — ordenou o capitão.
Enquanto adentravam a mata, Hakilo, intrigado com o que aconteceu, pergunta ao capitão:
— Senhor, agora posso interromper e lhe fazer uma pergunta?
— Diga.
— O que foi aquilo tudo? O que foi que aconteceu?
O capitão explica que Akr'ombroj – do idioma adotado e falado pelos piratas e marinheiros não ligados à marinha real – pronuncia-se acrômbroi quando se referir ao conjunto deles e acrômbro, a um deles. Estas criaturas são guardiões da ilha. Para poderem chegar onde querem, terão que passar por seus domínios. O líder só concorda que passem vivos se pagarem tributos.
Hakilo estava confuso. Sabia que tributos eram pagos com dinheiro. O capitão não pagou com ouro. Quis saber com o que o capitão pagou as criaturas.
— Aquele cesto estava cheio de sal grosso.
— Eles se contentaram com sal grosso apenas? E sal grosso é fácil de se encontrar.
— Junto com o sal grosso tinham pedaços de gatos e ratos. Nesta ilha, gatos e ratos curtidos em sal grosso é raro. Eles comem isto como aperitivo!
— Se os pedaços de gatos e de ratos curtidos em sal grosso são aperitivos... Então, qual é a comida preferida dessas criaturas? — todos param de andar e olham para o capitão temendo a resposta.
— O prato principal é carne humana curtida com água do mar!
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No navio, o imediato fazia sua ronda noturna pelo convés. Passava pelos guardas e verificava se estava tudo bem. Olhou para a gávea no mastro principal e ficou desconfiado de que algo estava errado. Chegou perto do mastro e chamou pelo senhor Gunters. Mas ele não respondeu. Insistiu. Nada de responder. “Esse velho não presta mais pra nada. Acho que está dormindo” — disse consigo e depois ordenou para que um dos guardas pegasse sua luneta e ficasse de olho nos marinheiros que estavam na ilha e que ficasse atento a algum sinal de perigo. Chamou um outro guarda e o mandou subir e acordar o Gunters que provavelmente estava dormindo. Chegando lá em cima o guarda ficou espantado com o que estava vendo:
— Senhor! Aqui só tem uma luneta e pedaços... eu acho que são... de panos. São pedaços rasgados de roupa.
— Raios! Desça daí agora. – ordenou o imediato que agora estava olhando para os lados e correndo pelo convés procurando por algo diferente nas laterais do navio.
— O que o senhor acha que aconteceu ao senhor Gunters?
— Não sei. Vá lá embaixo e acorde a tripulação. Verifiquem cada canto deste navio. Eu acho que temos uma visita indesejada no navio. Rápido. Vai.
— Sim, senhor.
— Ei, rapaz! Algum sinal deles? – perguntou o imediato ao guarda que ficara no lugar do senhor Gunters. Mas para sua surpresa o guarda também sumiu. O imediato procurou por ele no convés, mas não o encontrou. "Talvez ele tenha caído do navio" – pensou, mas não tinha ouvido nenhum barulho diferente. E voltando para o lugar onde estava, olhou para o chão e só encontrou a luneta.
Empunhou a pistola e desceu ao deque inferior. Temia que o invasor tivesse pego alguém como refém. Perguntou aos guardas pelo senhor Gunters e ninguém o viu em parte alguma. Aos poucos, chegavam os guardas de outras partes do navio com a notícia de que estava tudo em ordem. Faltavam os alojamentos, a cabine do capitão e a enfermaria. Então, o imediato lembrou do médico, o senhor Rick Dawkin, que permanecera em seu quarto e desde a tarde não tinha saído. “Pode ser que o Gunters esteja com o médico” – pensou. Chamou dois guardas para acompanhá-lo. Correram até o alojamento do médico. Quando chegaram em frente à porta, o imediato levantou a mão fechada no ar e todos ficaram quietos. Ele olhou para a fechadura da porta e percebeu que estava quebrada. O imediato balançou a cabeça e todos empunharam suas espadas, ele abriu a porta e entraram. Ficaram todos surpresos em ver a bagunça que se encontrava o alojamento.
Neste instante ouviram-se gritos. Um guarda passa apressadamente pelo meio dos homens que estavam parados na porta e quase sem fôlego fala para o imediato que algo de estranho estava acontecendo na ilha.
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No meio da ilha havia um vilarejo formado por embarcações que mais pareciam ter perdido o rumo e atravessado a praia e ido direto para o centro, amontoando-se em várias pilhas de embarcações velhas e quebradas. E o que era impossível de acreditar que em meio àquela confusão visual e quase indefinível de sucatas de embarcações havia uma entrada e parados em frente a ela estava o capitão e os outros marinheiros que surgiram logo atrás. Os marinheiros olharam para todos os lados procurando os Akr'ombroj, mas eles tinham sumido na mata. Hakilo conferiu se seus machados ainda estavam em sua cintura e ficou mais tranquilo em saber que ainda os tinham. O capitão olhou para trás para ter certeza de que todos estavam ali e apontou com a mão para prosseguirem e foram andando até o armazém que era todo branco já amarelado de tão velho e queimado pelo tempo e com os beirais das portas e janelas pintadas de vermelho.
— Senhores, aqui estão os pacotes com o ouro que precisam para comprar os suprimentos. Façam isso o mais rápido possível. Não fiquem negociando preço, descontos, etc., o povo daqui não gosta de gente assim. Não importa o preço que pedirem pelas mercadorias, apenas peça a quantidade de que precisamos, coloque-as nas bolsas e sacos e voltem para a entrada do vilarejo e me aguardem lá. Não entrem na mata sem mim. Aconteça o que acontecer não empunhem suas armas. – falou o capitão e jogou os pequenos pacotes de moedas de ouro para cada marinheiro.
Hakilo não contendo a curiosidade ao perceber que o capitão não os acompanharia no armazém perguntou:
— Senhor, capitão. Desculpa perguntar, mas nós poderíamos saber para onde o senhor está indo no caso de precisarmos procurá-lo?
Os outros se entreolharam com um meio sorriso e também temendo a resposta da ousadia de Hakilo em fazer aquela pergunta para o capitão.
— Não importa para onde eu vou. Quanto menos vocês souberem é melhor. Agora para de se intrometer nos meus assuntos e faça o que lhe mandei! – respondeu o capitão deixando eles para trás e apressando o passo em direção a uma rua escura.
Os marinheiros começaram a rir de Hakilo que estava com o rosto vermelho da mistura de vergonha e raiva. Pediu para que eles parassem de caçoá-lo e fechando as mãos desferiu socos no ar ameaçando bater neles.
— Vocês são uns idiotas! Seus ratos podres! Vocês não perceberam que tem algo de estranho no ar?
— Deixa disso, Hakilo. 'Tá ficando doido? Você enfiou espinha de peixe no nariz? – diziam os marinheiros entrando no armazém, deixando Hakilo ali parado olhando o capitão sumir em uma das ruas estreitas e pouco iluminadas pensando no que o capitão estaria envolvido e qual o verdadeiro motivo deles estarem naquela maldita ilha. “Não era só por causa dos suprimentos para a tripulação e o navio... Pelas barbas do camarão, capitão. Não faça besteiras. Hoje não está uma noite para confusões.” – pensou Hakilo olhando para a Lua que agora estava brilhante bem alto no céu sem nuvens.
Àquela hora da noite não se viam muitas pessoas andando por aquelas ruas estreitas. Os amontoados de embarcações se separavam em grandes quarteirões. Algumas tinham placas de madeira com desenhos grafados que indicavam o que vendiam ou faziam. Então, uns seis quarteirões de onde ele deixou os marinheiros, ele entrou à direita numa rua que existia uma placa num arco bem na entrada com o desenho de uma garrafa e um caneco. Algumas tavernas estavam abertas. Podia-se ouvir os barulhos feitos pelos copos batendo nas mesas, músicas e gargalhadas, bêbados brigando ou caindo no chão... tudo que marinheiros à procura de diversão encontrariam por ali, mas esse não era o seu objetivo. Capitão Berett continuou andando, chegou à uma outra taverna muito maior que marcava o final da rua.
O capitão se aproxima da entrada e imediatamente os seguranças que estavam cada um ao lado de um canhão instalado em cada lado da porta, se posicionam na frente dele impedindo-o que entrasse. O capitão estendeu a mão aberta mostrando duas moedas de ouro para eles dizendo que tinha dívidas para acertar com o Blanka Bucanero. Um dos seguranças encosta o rosto na enorme porta e dá algumas batidas. Em seguida a porta revelou uma pequena abertura onde apenas se podia ver um par de olhos. Os dois sussurram algo e o segurança se virou para o capitão perguntando qual era o nome dele. Após o capitão se apresentar, os dois sussurram novamente, a pequena abertura se fecha e uma sequência de sons de fechaduras e ferrolhos soam atrás da porta começando de cima, passando pelo meio e terminando bem próximo ao chão.
A porta se abre e os seguranças acompanham com os olhos atentos a entrada do capitão na taverna. A entrada dava para um corredor estreito todo decorado com panos nas paredes e grandes quadros pintados com cenas de navios em guerra. Ao passar por uma cortina no final deste corredor, ele observa o grande salão. Assistir as belas dançarinas no palco, ao fundo, e a outras atrações menos interessantes como bêbados que tentavam equilibrar copos de cerveja na testa; arremessar dardos em azeitonas presas com os dentes; aguentar por mais tempo a palma da mão sobre a chama de uma vela... tudo isso seria um deleite para qualquer um que tenha acabado de sobreviver à uma batalha como o capitão Berett, mas não era o seu principal objetivo. Ele tinha negócios mais importantes para resolver ali. A diversão terá que ficar para depois.
Do lado direito fica o balcão onde os atendentes retiravam as bebidas. O capitão foi até uma das mesas próxima ao balcão que estava livre e se acomodou. Um atendente da taverna se apresenta e o capitão pede uma bebida que não demorou para chegar.
Antes de terminar de dar mais um gole de sua bebida, uma pessoa desceu a escada que fica do lado do balcão: meia idade com cabelo comprido e branco o deixava à mostra embaixo de um lenço amarrado na cabeça; barba branca; bem-vestido; ostentando anéis de ouro.
A sua presença chamou a atenção de alguns. Ao descer as escadas ele foi diretamente à mesa do capitão e pediu mais duas bebidas.
— Senhor Edvar Berett, ou melhor, capitão Edvar Berett. Seja bem-vindo à minha humilde taverna. Cansou de saquear os navios no Mediterrâneo e veio para o leste à procura de aventuras ou riquezas, capitão...
— Pode parando com este papo. – interrompeu o capitão. — Você sabe que estou aqui apenas para resolver o que foi combinado, senhor Blanka Bucanero.
— Por que tanta pressa? E eu não sou bucaneiro. Meu tio era bucaneiro e famoso por ser um dos criadores dos anéis da caveira. Me chame de Frederico Low, ou simplesmente de capitão Fred Low.
— Conheço a fama de seu tio, o Ned Low. Dizem que ele cortava as orelhas de seus prisioneiros e os forçava a comê-las no jantar.
— Sim. Também tento seguir seus passos... Mas, como estava dizendo: Eu era um corsário e há muito tempo deixei de ser e depois de ganhar muito dinheiro descobri esta ilha, tornei-me o líder e aqui estou desde então para a felicidade de todos que moram aqui.
— Para a felicidade dos que moram aqui? Você os aprisionam aqui!
— Dívidas. Eles não conseguem pagar o que devem, então eu os deixo ficarem aqui sobe meu comando, me servindo como bons trabalhadores até que eu considere pago a dívida.
Neste instante, o capitão retirou de seus bolsos internos vários sacos de moedas e os colocou em cima da mesa. O capitão Fred Low pegou um dos sacos, esparramou o seu conteúdo pela mesa; pegou uma das moedas e a mordeu para verificar se era mesmo de ouro e disse:
— Você pode me dizer a quem devo libertar com estes míseros saquinhos de moedas?
— A filha do comodoro espanhol. – o capitão já suspeitando da resposta negativa de Low, insiste: — E quero voltar ao meu navio com ela antes do amanhecer.
Low deu uma longa gargalhada, empurrou todo o dinheiro de volta e respondeu:
— Eu não acredito no que meus olhos viram e meus ouvidos ouviram: o temível capitão Edvar Berett veio pagar a dívida de seu... inimigo? Você quer comprar a liberdade da filha do comodoro espanhol com isto. Ah... espere um pouco.... já sei! Se eu aceitar a proposta você a leva até o comodoro espanhol que lhe pagará mais pelo resgate ou você usará o golpe do resgate e pedirá mais que o que ele deve aqui, pois ele vai ter a garantia de que ela vai ser libertada... blá, blá, blá...
— Será que vale tanto assim se arriscar por uma garota que você nem conhece? – continuou o capitão Low. — Já lhe passou pela cabeça que pode ser um truque dos espanhóis para te prender assim que descobrirem que você a tirou daqui? Já olhou para as mesas e percebeu que podem ter espiões espanhóis aqui esperando só o momento de lhe darem a ordem de prisão e seu maravilhoso plano de ganhar mais dinheiro ir para o fundo do mar? É bem possível que estejam infiltrados entre nós. Como sou considerado o líder desta ilha e não quero problemas com os espanhóis, deixarei eles levarem você e ficarei muito contente.
O capitão já estava ficando impaciente com a conversa. Olhou para os lados e percebeu os seguranças de Low se posicionando em todos os cantos da taverna. “Se ele continuar falando, eu não conseguirei sair desta ilha antes que amanheça. Preciso fazer alguma coisa” – pensou o capitão. Então, ele enfiou a mão no casaco, mas foi interrompido pelo capitão Low:
— Nem pense nisso, capitão Berett! Como você pôde perceber, cada canto desta taverna tem um segurança meu. Qualquer movimento errado, capitão... você morre. Eu sei que o que você quer usar e está aí no seu bolso vai, de certo modo, resolver o seu problema e causar outro. Eu sei de seus passeios por Córsega e Sardenha há alguns meses.
— Eu acho que você está enganado, meu caro capitão Low. Faz uns meses sim que estive navegando, mas apenas transportando mercadorias nos portos da América do Sul.
— Não minta pra mim capitão Berett! Meus informantes não erram. – capitão Low retira um mapa do casaco e o abre sobre a mesa na frente do capitão que ainda estava com a mão no casaco. — Veja, você reconhece o mapa?
Capitão Berett observa o mapa cuidadosamente e procurando por um código que costuma fazer nas bordas de seus mapas que só ele conhece o significado. Ele gostaria de dizer ao capitão Low que ele estava tentando enganá-lo, porém após algumas olhadas pelo mapa, ele encontra o código ali com tinta vermelha desbotada, bem no canto superior direito na parte de trás.
— Como conseguiu isto?
— Não importa como. E, sim, que saiba que tenho informantes espalhados pelo mundo afora. É uma forma de me proteger dos inimigos de meu pai que ainda insistem em se vingarem.
O capitão Berett não conseguiu esconder a raiva nos olhos. Voltou a mão para debaixo da mesa e ao mesmo tempo os seguranças do capitão Low recuaram.
Neste mesmo instante, uma moça apareceu parada no alto da escada. O capitão Berett, desconfiado, fixou seu olhar nela tentando enxergar mais detalhes que confirmem que aquela moça poderia ser a filha do comodoro. Detalhes que lhe chamavam a atenção eram seus olhos verdes e cabelos negros bem lisos caídos pelos ombros.
Quando o capitão Berett estava com o comodoro para negociar o resgate de sua filha, ele lhe mostrou um quadro feito por ela. Um autorretrato. Ela o pintou quando tinha quinze anos de idade. As moças de famílias nobres são tão bem tratadas que não mudam muito e nem aparentam a idade que tem, mesmo após dez anos.
Olhou novamente para ela. Agora estava descendo as escadas. Viu os seus olhos. Lindos olhos verdes, porém tristes.
— Sim, capitão Berett. É ela mesma. – disse Low enquanto Luna se aproximava deles. — Vamos sente-se aqui nesta cadeira, minha cara. Tragam uma bebida para a moça!
A moça permaneceu calada. Estava olhando para todos os lados do salão como se estivesse procurando alguém ou uma saída. Parecia esperar por um descuido do capitão Low e de seus guardas para sair correndo. Capitão Berett percebeu e não queria que ela cometesse alguma idiotice, então tentou um diálogo com ela.
— Qual o seu nome senhorita? – perguntou o capitão Berett.
— Posso saber primeiro quem é o senhor?
— Perdão. Este lugar não me inspira gentilezas... Sou o capitão Edvar Berett.
— O que vai adiantar o senhor saber o meu nome? Aqui nesta ilha o meu nome é o menos importante... O meu pai lhe deve dinheiro também? Veio aqui me cobrar pelas dívidas de meu pai? Estou aqui para ser comprada e vendida novamente como "escrava"?
— Não, senhorita. Não precisa ficar com tanta raiva assim. Estou aqui para levá-la ao seu...
— Chega de apresentações! – interrompeu o capitão Low. — Você está muito nervosa moça. Acalme-se. O plano dele é pagar a dívida que seu pai me deve e levá-la de volta para ele. Veja que plano magnífico este do capitão Berett! O que o capitão não sabe é que você só sai daqui quando o seu pai pessoalmente vier aqui e acertarmos as contas!
Capitão Berett percebendo que o comentário do capitão Low era uma resposta negativa a sua petição, voltou a insistir no seu pedido de pagamento da dívida do comodoro em troca de sua filha de uma forma agora mais ameaçadora. Mas, o capitão Low continuou não aceitando e nervoso com a insistência do capitão Berett, ordenou para que dois dos seus seguranças se aproximassem da mesa. Capitão Low se levantou e disse, em tom ameaçador, que lhe dá mais uma chance de estar vivo, porém que volte para o seu navio com sua tripulação e suprimentos.
— Desista também do plano de resgatar a filha do comodoro. – disse o capitão Low se retirando da mesa.
— Não irei embora sem a garota. As suas ameaças não me assustarão e nem me farão mudar de ideia. Só saio desta ilha com ela, pagando ou não a dívida que seu pai lhe deve.
Capitão Berett levantou-se e antes mesmo de qualquer outro movimento, os seguranças apontaram suas espadas para a sua direção quase que ao mesmo tempo. Silêncio. Os frequentadores já estavam acostumados à verem brigas com marinheiros bêbados apontando armas, mas naquela taverna, não. O capitão Low não permitia esse tipo de coisa na sua taverna e punia severamente os que desobedeciam suas regras.
— Vamos, capitão Berett. Aceite a minha proposta e assim pouparemos derramamento de sangue. Não quero ver um velho amigo que vive se escondendo do seu verdadeiro destino: conquistar o mundo como um dos possuidores dos anéis da caveira!
Agora todos se espantaram mais ainda após o capitão Low ter falado do anel da caveira. Capitão Berett pegou o anel disfarçadamente e o segurou, temendo que Low soubesse que estava com ele. Então o capitão Low continuou:
— Você vai se arriscar por uma mulher que acabara de conhecer e seu pai, um oficial da marinha espanhola, ganancioso, bêbado e que não sabe perder em jogos de azar?
Neste mesmo instante, ouvia-se barulhos de objetos se quebrando vindos do corredor à entrada da taverna. Estava ficando mais alto. O capitão Low faz um sinal com a mão e um dos seguranças que estava próximo da porta retira um trinco de uma pequena abertura. Antes mesmo que pudesse ver o que estava acontecendo do outro lado, a porta e o segurança são arremessados. Ambos caem sobre uma mesa. De imediato ninguém conseguiu entender o que estava acontecendo e permaneceram parados. Aguardaram por quem ou o que fez tudo aquilo. O corredor estava escuro. Outro segurança surgiu no ar pelo corredor pousando sobre outra mesa. As batidas no chão continuaram mais rápido e mais alto. Ao sair do corredor, a figura estranha permaneceu em pé na entrada do salão. O responsável por aquela bagunça se anunciou com um urro.
— É um Akr'ombro! – começaram a gritar e a correria se iniciou. Pessoas subiam pelas escadas, pulavam atrás do balcão, procuravam desesperados por janelas...
Diferentemente dos frequentadores desesperados da taverna, capitão Berett, capitão Low, Luna Dellmar e os seguranças ficaram ali esperando o próximo movimento da criatura.
— Mas que ousadia! Invadir a minha taverna... – capitão Low continuou falando na língua da criatura, mas ela não respondeu. Ficou ali parada olhando para o local como se estivesse procurando por algo. Então, o capitão Low percebeu algo de errado com a criatura: ela não tinha olhos brilhantes e possuía cinco dedos como os humanos.
— Ataquem homens! Ele não é um Akr'ombro!
Os seguranças relutantemente começaram aos poucos a atacar a criatura que com socos e golpes com a lança jogava-os pelos ares. Corpos inteiros e partes deles voavam pela taverna. Um dos corpos caiu na mesa onde estavam e Luna foi puxada pelo capitão Berett: — Vamos garota, eu vou te salvar. Venha comigo.
— Peguem eles! – ordenou o capitão Low a três seguranças que estavam perto dele. Antes que desse o primeiro passo, dois outros seguranças caíram em cima destes.
— Seus imprestáveis. Vou ter que fazer isto sozinho? – capitão Low pegou sua espada e correu atrás do capitão Berett e Luna que ainda estava no chão. Quando a criatura viu, pulou na frente do capitão Low e lhe deu um soco no peito. Ele foi jogado para trás do balcão onde já estavam escondidas algumas pessoas que trabalhavam na taverna.
Luna se levantou e os dois começaram a correr para o corredor que agora estava pegando fogo por causa das velas caídas no chão. Capitão Berett retirou o casaco e o passou pelo ombro de Luna cobrindo com ele a cabeça dela e a sua enquanto corriam. O fogo lambia o teto e as paredes que já não tinham mais os grandes quadros que mostravam as batalhas de outrora; apenas molduras queimadas.
Agora, já fora da taverna, os dois pararam em frente e viram pedaços dela caírem e o fogo tomando as paredes externas e o teto.
— Esta rua vai ficar cheia de gente. Temos que nos encontrar com minha tripulação na entrada da vila e irmos para o navio. – disse o capitão Berett.
— Por aqui é mais rápido. Vamos! – disse Luna apontando para um beco no quarteirão próximo.
No beco, Luna e o capitão andavam rápido e silenciosamente. Luna espiou para ver se não tinha mais ninguém. Um grupo de pessoas que corria gritando ordens para pegarem água para apagar o incêndio.
— A entrada do vilarejo fica a alguns metros por aquela direção. – disse Luna. — Mas, antes de continuarmos. Por que deveria confiar em você, senhor Berett?
— Apenas confie. Não vou forçá-la a vir comigo, mas você escolhe: fica aqui e passa o resto da sua vida pagando pela dívida de seu pai ou retorna comigo para sua casa; viver sua vida maravilhosa no luxo. O meu objetivo é tirá-la daqui desta ilha e devolvê-la ao seu pai, o comodoro.
— Não gostei da forma como você está se referindo a mim com essa coisa de viver sua vida maravilhosa! Por um acaso você sabe como é ser filha de um oficial da marinha e viver numa mansão sozi...
— Não. Não sei como que é viver assim. Só sei é que devemos sair daqui agora. – interrompeu o capitão.
Luna, que estava com muita raiva, virou-se com tudo e deu de cara com algo na sua frente e o baque a fez cair dura no chão daquele beco úmido e escuro. Tonta, levantou a cabeça e mesmo no escuro percebera que havia trombado com o que ela menos esperava encontrar naquela hora: um Ark'ombro. Ele estava ali parado na sua frente e não pensou mais em nada, desesperadamente foi se afastando da criatura até se esbarrar nas pernas do capitão que a impediu de continuar.
— Calma, calma. Ele não vai lhe fazer mal. – o capitão tentou ajudá-la a se levantar, mas ela continuava a gritar e se agitar muito. — Fique quieta! Calma! Calma. – depois de muita insistência, ela se levantou e ficou atrás do capitão tentando se proteger.
— Ainda bem que você está aqui. – falou o capitão com a criatura. — Vá na frente e veja se os seguranças do capitão Low não estão no caminho.
A criatura sumiu num piscar de olhos. Luna não conseguia entender. Pegou um pedaço de madeira que estava jogado no chão e se afastou do capitão apontando-lhe o pedaço de madeira.
— Mas o que está acontecendo aqui?
— Não se preocupe, ele está do nosso lado.
— Como pode?
— Depois eu te explico.
A criatura reaparece atrás dela e ela se vira, agora apontando o pedaço de madeira para a criatura. A criatura balança a cabeça positivamente e o capitão toma a garota pelos braços.
— Depois você brinca com isto. Agora nós temos que correr. – disse o capitão.
Os três saíram correndo o mais rápido que podiam descendo aquela rua mau iluminada. O grupo de batedores do capitão Berett já os aguardavam na saída do vilarejo.
— Vejam! É o capitão. Espera! Quem são aqueles que estão com ele? – disse Hakilo olhando espantado para a criatura Akr'ombro.
— Homens, não se preocupem! Eles estão conosco. Peguem os mantimentos e corram para dentro da floresta. – ordenou o capitão que passou no meio deles e sumindo na densa floresta sendo seguido por Luna e o Akr'ombro. Os olhares de espanto e medo que os batedores faziam enquanto a criatura passava os fez paralisarem por um momento.
Ao fundo descendo a rua em que eles estavam, uma multidão dos comparsas e seguranças do capitão Low esbravejavam com tochas, armas de fogo e espadas.
O silêncio aumentava assim que eles chegavam perto da floresta. Todos eles estavam pasmos olhando para os pontos brancos brilhantes escondidos na escuridão da floresta. O silêncio é quebrado quando o capitão Low ordena que todos parem de olhar para os pontos brancos e que se afastassem da borda.
— Seus idiotas! Querem virar comida dessas criaturas repugnantes! – exclamou o capitão Low que enquanto via todos acordarem, pegou um anel do bolso de seu enfeitado casaco vermelho e o colocou. De repente algo de estranho estava acontecendo com o capitão Low. Neste mesmo instante, os olhos famintos e brilhantes dos Ark'ombroj na escuridão da floresta foi diminuindo. Não havia mais nenhum deles.
Segundos depois, o capitão Low percebendo que não estava mais sendo vigiado pelos Ark'ombroj entrou correndo na floresta atrás dos fugitivos.
No meio do caminho o capitão Berett para e ordena que os outros continuem e o esperem no navio. Antes que alguém se manifestasse contra a sua ordem ele já havia sumido. Começaram a ouvir barulhos de árvores se partindo. Todos ficaram parados por um instante. Até ensaiaram movimentos com as armas, mas ao perceberem que Hakilo arregalou os olhos puxados e saiu correndo o mais rápido que pôde. Os outros ficaram se entreolhando como se esperasse que algum deles desse a ideia de voltar e ajudar o capitão e desobedecesse suas ordens.
Porém os sons estavam mais altos e o grupo voltou a correr em disparada em direção aos barcos na praia. Hakilo pensou que chegaria primeiro na praia, sua baixa estatura não lhe dava esta vantagem, foi logo alcançado pelo outros.
Os marinheiros já foram jogando as cargas nos barcos e empurrando-os para fora da areia.
— Ei! Esperem! Olha lá do outro lado. – Hakilo gritou.
Ao longe se viam duas luzes de tochas se aproximando deles. Os que não estavam ocupados pegaram suas armas. Hakilo pegou uma das tochas que estava fixada na areia e fez movimentos no ar. As luzes distantes responderam com movimentos semelhantes.
Era o senhor Montis. Um pouco mais calmos, todos voltaram a arrumar os barcos.
— Quem é o senhor Montis? – perguntou Luna.
— É o contra-mestre. – respondeu Hakilo fixando novamente a tocha na areia.
Os dois homens se aproximaram. Montis perguntou pelo capitão Berett que não estava junto deles, mas antes que respondessem, um barulho que parecia com um assovio estava vindo do alto fez todos olharem para cima.
— Protejam-se! – gritaram todos. Uma árvore cruzando o céu caiu bem próximo deles. A queda apagou as tochas. Agora eram iluminados pela luz da Lua.
— É melhor vocês me explicarem tudo quando chegarmos ao navio. Não sei o que está acontecendo, mas ser morto por uma chuva de árvores não é uma boa ideia. – disse Mortis subindo em um dos barcos.