O BERGANTIM - CAPÍTULO 1
— Norte! Vamos para o Norte. — respondeu o capitão. O bergantim de guerra acabara de ser reformado após duas lutas com corsários do rei. O navio possuía dois conveses suficientemente grandes para dar trabalho por dois dias. Em cada canto do navio via-se alguém fazendo alguma coisa. O capitão era frio com a tripulação; “coisas de capitão” pensavam alguns, mas ele era imponente e inspirava confiança e respeito para todos naquele navio.
— Levantar âncora! — ordenou o capitão e barulho de correntes rompiam o som do mar naquela manhã de verão. Um dos marinheiros que estava preparando a vela do mastro principal começou a cantarolar uma canção muito conhecida entre eles e aos poucos os homens começaram a cantar um refrão que até mesmo o capitão, homem que pouco expressa seus sentimentos, escondido atrás de sua extensa barba negra com duas tranças verdes uma em cada lado do queixo, também começou a cantarolar. Ele andava pelo convés em passos firmes. O modo como conduzia o seu navio e falava com sua tripulação o tornava temeroso, imponente e impunha respeito. Somando a aparência com sua voz rouca, mas audível, podia fazer os seus inimigos tremerem de medo. Apesar de toda a frieza de sua imagem, conferiu a bússola, virou o timão com toda a força para estibordo e depois levantando os olhos, fixou-os o horizonte e continuou a cantarolar a animada canção.
Os primeiros raios de sol começaram a surgir no horizonte que os cercava e enquanto os homens cantarolavam e se movimentavam para lá e para cá, o capitão passou o comando do leme para um dos marinheiros que estava distraído olhando hipnotizado para este mesmo imenso horizonte. Então se afastou e olhou para os lados e retirou do bolso de sua calça um anel prateado com uma caveira entalhada nele que emitia um brilho verde-escuro quando a luz do sol o iluminava. Porém, na sombra ele parecia um anel velho e emitia um brilho indefinido de cobre com prata.
— Podemos liberar alguns homens para descansar, capitão? — o marinheiro que cuidava do timão interrompeu os pensamentos do capitão que de súbito escondera novamente o anel no bolso.
— Sim, pode mandá-los descansar nesta parte da manhã. Vou me retirar à minha cabine e não quero ser perturbado até a hora do almoço.
— Sim, capitão.
“O capitão está de novo com aqueles malditos pensamentos” sussurravam alguns. “Algo de ruim vai acontecer” pensavam outros. Olhares discretos seguiam o capitão que se movimentava pelo convés. Não se ouviam mais vozes, nem o barulho de correntes ou dos barris sendo arrastados. Apenas os passos firmes do capitão que se misturavam com o som das ondas do mar batendo no casco do navio. Quando o capitão fechou a porta, todos voltaram ao que estavam fazendo.
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Depois de algumas horas, o capitão vai até uma parte do navio que, devido a situação em que ficou depois da última batalha, poderíamos chamar de cozinha. Ele encontra o seu amigo de infância Rick Dawkin. Dawkin não gostava de navegar, mas ao saber que seu amigo passaria por mares onde outros navegaram e falaram de animais e criaturas estranhas que não estão escritos nos livros o fez deixar uma noiva semanas antes de seu casamento e partir para esta aventura que talvez fosse a única que teria além da vida em família.
— Bom dia, senhor Dawkin. Algum problema?
— Bom dia, capitão Edvar Berett. Parece que quem está com problemas não sou eu. Aqueles pensamentos estão te perturbando de novo? — enquanto aguardava a resposta, pegou dois copos e um pão enorme que acabara de sair do forno que repousava num cesto e os pôs sobre a mesa.
— Tentei disfarçar o máximo possível. — resmungou o capitão.
— Então não deu certo, pois você está parecendo um enorme farol iluminando uma noite de intensa neblina. Por que você não me conta o que realmente aconteceu? Talvez eu possa te ajudar receitando-lhe um calmante e fazer um tratamento para tirar essa sua dor de cabeça que tanto você se queixa quando está em terra firme.
— Meu caro amigo, você sabe muito bem que eu não quero que mais pessoas próximas a mim morram por causa disto. — sussurrou o capitão enquanto segurava o anel que agora estava num bolso do casaco.
— Mas você tem que se livrar desse objeto que te assombra. Vamos, diga-me: o que realmente aconteceu naqueles anos na ilha do Insularo de Kranio?
O capitão Edvar Berett retirou o anel de seu bolso e colocou-o numa pequena caixa de madeira pintada de preta que por dentro era revestida de um tecido da mesma cor. Rapidamente guardou os dois no bolso logo que o cozinheiro apareceu trazendo um jarro com uma bebida. Edvar esperou o cozinheiro voltar à dispensa onde pegaria mais mantimentos para o preparo do almoço. Então começaram a comer e beber tentando disfarçar o nervosismo e continuaram a conversar, mas sussurrando temendo que outro alguém ouvisse a conversa.
— Você conhece a história, já te contei umas trezentas vezes.
— Não! A história inteira! Eu quero ouvir a história inteira. Vai amigo, deixe-me saber o que realmente aconteceu. Só assim poderei te ajudar.
— Você não entende! Isto é perigoso demais. Só de ter contado a você já estamos correndo riscos. É melhor você saber pouco. Depois de muito tempo reencontrá-lo e ter aceitado o convite de ser o médico da minha tripulação em meu navio você já está ajudando muito. Bem, eu tenho que ir e conferir as munições antes de atracarmos num porto mais próximo e cometer o erro de não comprarmos o suficiente. Com licença.
Antes que Rick insistisse novamente em convencer o amigo a contar-lhe toda a história, Edvar levantou-se e foi até o depósito de munições. Rick continuou ali sentado tentando terminar o seu café da manhã. Mas não conseguia, pois essa história o perturbava muito. Ele sabia que não ia adiantar ficar insistindo. Queria muito ajudar o velho amigo. “Não vou desistir e pensar em uma outra forma dele me contar toda a história daquele anel!” — pensou consigo enquanto se dirigia ao seu consultório improvisado mordendo o último pedaço de pão.
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No depósito de munições, Edvar Berett conferia cada item minuciosamente. Passando pelos barris empilhados cheios de pólvora. Com um pequeno martelo dava pancadas leves neles ao mesmo tempo em que aproximava o ouvido prestando a atenção nos diferentes sons produzidos pelas batidas na lateral do barril começando da parte de baixo até próximo da borda. Algumas vezes repetindo as batidas umas três vezes. “É só para ter certeza!” — pensava. Não estava muito satisfeito com a quantidade de pólvora. Receoso de que aquela quantidade não era suficiente para aguentar um outro ataque de um corsário. Enquanto escrevia em seu bloco de anotações ia desviando a cabeça dos muitos objetos pendurados e nunca esbarrava neles e alguns marinheiros consideravam isto uma habilidade que chamava a atenção, inclusive para um capitão que descia poucas vezes aos paióis.
Alguns tripulantes já trabalhavam para o capitão há muitos anos e nunca o viram mandar alguém fazer a conferência dos paióis, nem mesmo o contramestre. Depois de fechar as portas dos paióis, guardou suas anotações num bolso que ficava na parte interna de seu casaco. Decidiu subir até o convés para ver se terminaram de arrumar as partes danificadas do último ataque.
No convés, o capitão apoiou suas mãos na amurada e inclinou o corpo para ver a lateral direita do navio que mais sofreu com o ataque trinta dias atrás. Ele confere os calabres, passa em torno de algumas pilhas de caixotes e para embaixo da gávea e com a sua voz imponente chama o marinheiro Gunters que está no cesto atento a qualquer sinal de terra firme. Gunters era um dos marinheiros mais velhos da tripulação e mesmo contrariando as orientações do senhor Dawkin, ele continuava a subir até o cesto da gávea. Dizia ele que era o que mais gostava de fazer num navio como este. A sua visão, diziam alguns, não é mais como antigamente. Porém, mesmo não tendo uma visão tão boa assim, outros dizem que ele tem a estranha capacidade de sentir o cheiro de terra. Os que gostavam de brincar com Gunters diziam que a experiência dele dependia das titicas que as gaivotas deixavam em seu nariz. Seja qual for o seu truque, o capitão ainda confia nele. Contudo, hoje é o dia de duvidar de tudo e de todos...
“Estamos navegando há trinta dias rumo ao Norte e nenhum sinal de terra. Conferi os mapas. Não posso ter errado” — pensou o capitão pegando a luneta e mirando-o para o horizonte.
— Senhor Gunters! Está me ouvindo?
— Sim, senhor capitão!
— Consegue ver a montanha a estibordo?
— Tem muito nevoeiro. Não consigo ver mais nada além do nevoeiro.
— Então prossiga na missão. — respondeu o capitão inconformado e recolhendo a luneta no casaco.
Edvar Berett era minucioso na leitura dos mapas e cálculo das rotas. “”Será que dessa vez eu errei e deixei passar algum detalhe? Vou conferir”. Edvar virou-se e andou a passos largos de cabeça baixa fazendo os cálculos antes mesmo de ter os mapas em suas mãos. Desviando de um marinheiro que limpava o chão e de objetos deixados no convés tentando lembrar das anotações que fizera. Quando lá de cima na gávea, Gunters grita:
— Capitão! Estou vendo a montanha.
Com a luneta em mãos, Edvar tenta com muito esforço enxergar algo no meio daquele intenso nevoeiro. Todos que estavam no convés pararam e ficaram boquiabertos ao verem surgindo no meio do nevoeiro a alta montanha que ficava no meio da ilha. Era ao mesmo tempo belo e misterioso.
— Lançar âncora! Recolham as velas, seus tolos! — ordenou o capitão e todos começaram a se movimentar. — Imediato, cuide para que os canhoneiros estejam prontos para o imprevisto. Peça para um dos oficiais avisarem os dez homens mais experientes se arrumarem com armas e prontos para carregarem peso, pois iremos à ilha comprar mantimentos e munições. Partiremos em trinta minutos.
— Sim, senhor capitão. — respondeu o imediato que se virou rapidamente e quase derrubou o senhor Dawkin que estava chegando para falar com o capitão.
— Eu ouvi gritos. O que está acontecendo? Seremos atacados?
— Meu caro amigo, tanto tempo neste navio e ainda não se acostumou?
— Eu acho que nunca vou me acostumar a toda esta agitação.
— Vamos até o tombadilho para ver melhor. Está vendo aquela ilha? Eu e alguns homens vamos lá comprar suprimentos como munição, comida e também remédios para os feridos da última batalha. Precisarei deles em breve.
— Sabemos que eu não entendo muito de navegação, mas por que estamos tão longe da ilha? Esta ilha não tem um porto?
— Não podemos nos arriscar. Estamos seguros desta distância de qualquer ataque de canhões.
— Mas você conhece esta ilha, não? Seremos atacados? Não quero morrer tão cedo e tão longe de casa!
— Não se preocupe. Não seremos atacados... ainda. — o capitão tenta acalmar seu amigo e deixa escapar um sorriso. – Tudo vai depender de quem está na ilha. Se for amigo... voltaremos com tudo o que precisamos e sairemos o mais rápido possível daqui. Se for inimigo... é melhor o senhor preparar a sua mesa com as ferramentas, pois teremos muito sangue que vai pintar o navio e tingir toda esta água a nossa volta!
O senhor Dawkin tinha experiência em lidar com feridos de guerra, porém não pôde disfarçar a preocupação. O capitão não se deixava abalar, já sabia o que estava por vir e ficaram ali parados no tombadilho. O capitão apontou com a luneta a ilha e sua incrível montanha que surgia do nevoeiro que agora se dissipava revelando sua beleza sombria.
— Mas insisto em saber se o senhor capitão já esteve aqui antes.
— Sim, senhor Dawkin. Já estive aqui, mas faz algum tempo. — respondeu o capitão não muito contente com a insistência do amigo. — Acho melhor nos prepararmos e ir até lá quando anoitecer.
— Como queira. Vou preparar a mesa... — disse o senhor Dawkin se afastando do capitão e sumindo no meio dos marinheiros se movimentando no convés.
O capitão faz um gesto e o imediato se aproxima rapidamente.
— Verifique se o navio está totalmente arrumado e os dez homens que pedi estão prontos?
— Sim, senhor capitão. – respondeu o imediato que depois deu um assovio chamando o grupo. – Aqui estão eles.
— Muito bom. Pode se retirar.
Os dez homens que o imediato escolheu estavam perfilados e o capitão passou por eles fazendo uma revista procurando por algo errado nas armas, nos sapatos, nas calças, nas camisas, coletes, chapéus..., mas logo percebeu que pareciam ter sido mastigados e cuspidos por uma baleia e depois deixados na praia para secarem ao sol. O capitão insatisfeito com suas aparências, mandou-os se lavarem e que os oficiais levariam para eles uma vestimenta mais descente. Um dos marinheiros que carregava em sua cintura dois machados ergueu a mão direita até a altura do queixo esperando chamar a atenção do capitão para falar com ele.
— Diga, marinheiro.
— O senhor disse para estarmos prontos em trinta minutos...
— Eu sei, mas tive que mudar os planos — interrompeu o capitão — e partiremos para a ilha assim que anoitecer e, antes que eu esqueça, os senhores receberão também com suas vestimentas alguns lenços pretos que deverão cobrir todo metal reluzente de suas roupas e armas...
— Mas esses lenços poderão atrapalhar na hora de usar as armas, capitão! — interrompeu o outro marinheiro que segurava uma pistola Flintlock que conseguira na última batalha.
O capitão se aproximou a passos largos e todos já sabiam que o companheiro tinha errado por ter falado com o capitão sem antes levantar a mão. Costume que o próprio capitão criou para que houvesse uma certa disciplina a bordo.
— Minhas desculpas, capitão. Isto não acontecerá mais. — falou o marinheiro retirando o chapéu e abaixando a cabeça.
— Nós todos estaremos armados naquela ilha, mas devo avisá-los de que não precisarão disparar uma arma sequer a não ser que eu tenha mandado. A ordem é não se precipitarem. Estejam atentos ao que eu mandar fazer e não se afastem do grupo. Por enquanto é só. Dispensados.
Todos os dez homens fizeram um gesto batendo com a mão fechada no peito e se retiraram. O capitão ficou ali parado olhando para o céu por algum tempo e depois chamou o senhor Gunters gesticulando para que ele descesse. No convés, os dois se afastam e o capitão dá ordens para que ele volte a subir até a gávea quando estiver escurecendo; com uma luneta vigiar o lado leste da ilha e aparecendo algo diferente avisar sem alarde com uma pequena lanterna o imediato e alguns canhoneiros que estarão de guarda. Depois de ter passado as instruções, pediu ao senhor Gunters que fosse se alimentar e descansar e se preparar para a noite. Gunters não gostou muito do fato de ter que usar uma luneta para vigiar, mas sendo à noite e com a visão um pouco falha é melhor usá-la! Mesmo não sabendo o que o capitão espera que seja visto.
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A noite chega e na cabine o capitão, um pouco nervoso, pega um pequeno saco de couro e guarda nele algumas moedas de ouro de um baú que estava trancado por dois cadeados. “Isto deve ser o suficiente” — pensou o capitão voltando com a mão no baú e pegando mais um punhado de moedas. Neste instante, ouviram-se batidas na porta. O capitão guardou rapidamente o saco de moedas no casaco e com um golpe com sua bota fechou o baú.
— Entra!
— Com sua licença, capitão? — disse o canhoneiro que estava iniciando sua ronda. — O Gunters viu algumas luzes se acendendo na margem.
— Obrigado, marinheiro. Pode voltar ao seu posto.
— Sim, capitão.
Assim que o marinheiro fechou a porta, o capitão trancou o baú com os dois cadeados e o guardou num fundo falso logo abaixo de sua mesa. Conferiu nos bolsos do casaco negro se ali estavam o saco com as moedas, sua luneta, sua bússola e o mais importante de todos: a caixa com o anel. Pegou a chave da porta da cabine e a trancou. Já no convés, apenas com gestos ele chamou a todos e eles foram chegando o mais próximo ao capitão que falou:
— Boa noite, senhores. Vou alertá-los novamente de que é importante que não hesitem ao que vocês forem ver ou ouvir naquela ilha. Mantenham-se atentos ao que eu fizer e disser. Não exponham suas armas. Cuidem para que as partes metálicas de suas vestimentas estejam sempre cobertas. E mais uma coisa: não comam e nem bebam do que oferecerem. Alguém tem alguma pergunta?
— Sim. E se acontecer algo ao senhor ou a alguns de nós, o que deveremos fazer, já que não poderemos usar as armas? — perguntou o canhoneiro dos dois machados cobertos com os lenços pretos pendurados na cintura.
— Se algo acontecer com um de vocês ou com alguns a ordem para quem não estiver envolvido é largar as mercadorias, sair correndo para os barcos, retornar ao navio e esperarem aqui até o amanhecer. — respondeu o capitão olhando para as luzes acesas na ilha. — Mais alguma pergunta? Não? Então vamos.
Apesar de parecerem nervosos e curiosos por não saberem o que encontrarão na ilha, ninguém ousou encher o capitão com perguntas e talvez fazê-lo pensar que estavam com medo. Porém, eles até pensaram que seria bom um pouco de atividade em terra firme para aliviar o cansaço de não terem entrado em uma outra batalha. “Finalmente um pouco de diversão” — pensou um dos canhoneiros.
Depois que todos desceram do navio em dois barcos, o capitão fez um sinal com a mão, os pares de remos foram colocados na água e com movimentos suaves, para não fazerem tanto barulho, começaram a se movimentar em direção à ilha.