O SANSÃO DE VOLTA REDONDA.
O SANSÃO DE VOLTA REDONDA.
Muita gente estranha, quando testemunha encontros meus com alguns de meus amigos mais antigos, em geral aqueles dos tempos de volta Redonda, e observa que tais amigos frequentemente me chamam pelo nome de Sansão. Não falta quem pense que Sansão faz parte real de meu nome, ou de meu sobrenome e ficam surpresos com aquela “informação” a respeito de meus dados pessoais. Mas acredito que não preciso mais dizer que isto é um apelido que me foi dado ainda na adolescência, o que explica porque, originalmente, apenas aqueles que me conhecem há mais tempo, e que são de Volta Redonda, como eu, se utilizam desse tratamento. Isto eu já expliquei algumas vezes, e explico sempre que necessário, e com o maior prazer. Porque embora não seja o meu nome, Sansão é um pouco como se fosse. Faz ´parte de quem sou, da minha história, e, numa certa medida, representa um momento especial em minha vida. Não custa contar porque...
Aos 15 anos de idade, eu já tinha 1,75 m de altura e pesava em torno dos 83 kg. Como se pode facilmente imaginar, isto resultava numa figura mais para a rechonchuda do que qualquer outra coisa, e meus colegas, claro, não deixavam passar. Sabe como é estudante... Na escola, então, embora eu me desse bem com todos e fosse muito estimado, não havia escapatória. Meus apelidos variavam de casas das banha , a baleia, gorducho e outros epítetos igualmente jocosos, todos referindo-se à minha silhueta avantajada. Eu levava aquilo na esportiva, mas é claro que, lá no fundo, não gostava daqueles cognomes. Principalmente sendo um adolescente, por estar vivendo aquela fase da vida em que uma série de aspectos da personalidade e da autoimagem começam a se definir e se desenvolver. Nessa idade a gente gosta de aparecer, mas pouco a pouco nos damos conta de que não basta aparecer de qualquer maneira. A gente quer aparecer bem. Ou, como se diz hoje, ficar bem na fita. Assim, eu ia vivendo a vida como podia. Não era o único a ter apelidos. Sempre existiam os “dentinhos”, os “espanador da lua”, os “boca nervosa”, “baixinho” para dividir o fardo com a gente, de modo que a coisa caminhava normalmente.
Até que, mais ou menos por essa época, eu comecei a praticar judô. As aulas aconteciam numa academia instalada no Recreio do Trabalhadores, para funcionários e filhos de funcionários da CSN, em Volta Redonda mesmo. Rapaz, eu me dei bem com aquilo! Adorava praticar o judô, meio que me encontrei naquela prática marcial inteligente, onde força e peso contavam, mas não eram tudo. O principal era a habilidade, a rapidez, as alavancas, e uma estratégia cuidadosamente elaborada para derrotar o adversário. Mas o judô era mais do que isto, como fui aprender na prática, pouco tempo depois de ter iniciado o meu aprendizado no caminho suave (que é o que significa a palavra ju-do)...
Um ano depois de eu ter me iniciado no judô, aconteceu em Volta Redonda o Campeonato Fluminense de Judô Juvenil. Então ainda um simples faixa branca, fui campeão, na categoria meio pesado (até 89 kg), derrotando por ippon – golpe considerado perfeito, que pode encerrar a luta – conquistado com um uchimata (golpe no qual o lutador gira o corpo, encaixa uma perna entre as pernas do adversário, levanta-a e puxa o oponente com os braços sobre o quadril, projetando-o no tatame) sobre David Chanchol, de Niterói. Além de um lutador muito hábil e, principalmente, muito forte, David era um veterano faixa verde. De modo que aquela vitória valeu-me a promoção à faixa amarela, que, além da branca, é precedida pelas faixas cinza e azul. Aquele uchimata (e o ippon conquistado por meio dele) representou muito mais do que uma vitória esportiva e marcial. Pulei duas faixas de graduação, de forma exemplar, e aquilo significou um verdadeiro upgrade na minha autoimagem e na minha autoestima.
Mas outras coisas igualmente importantes ainda estavam por vir. Na segunda-feira, o Professor Carlos Alberto Imbuglia, meu mestre em matemática no Colégio Macedo Soares, iniciou a aula daquele dia com um tom solene:
— Eu quero a atenção de vocês — disse ele, em voz alta, quebrando o burburinho típico dos adolescentes em sala de aula. Quando o silêncio se tornou completo, o Prof Carlos Alberto continuou...
— Está aqui, entre nós, o atual campeão fluminense do judô juvenil, na categoria meio pesado. Com a força e a coragem que Deus deu a Sansão, ele merece uma salva de palmas de todos nós!
Foi aquela ovação, todo mundo batendo palmas, com toda força, o que, para mim, era uma experiência nova. Eu nunca fora aplaudido assim na minha vida. Ato contínuo, o Professor me chamou ao quadro negro, para resolver uma longa equação matemática, que destrinchei e resolvi sem maiores problemas. Ao final da operação, o Prof. Carlos Alberto aproximou-se do quadro, examinou meu trabalho e deu um sorriso de satisfação. Depois apontou a equação no quadro negro, com uma das mãos, enquanto que, com a outra, puxou a pontinha da própria orelha, no gesto clássico de quem se delicia com alguma coisa, e não resistiu a um infame, mas divertido trocadilho:
— O nosso Sansão tem uma equação dali-la...
A turma veio abaixo com as gargalhadas e bateu mais palmas, divertida. Eu ri muito com aquilo, mas no meio daquelas minhas risadas, escondia-se, disfarçada, uma pontinha de emoção. Apesar de muito jovem ainda, pude notar que, naquele dia, e naquele momento morria o casas das banha , o baleia, o gorducho, e nascia o Sansão. Este ficou sendo o meu apelido em Volta Redonda, e no judô.
Levei adiante o caminho suave, evoluindo nele por toda vida, enquanto progredia também em meus estudos acadêmicos. Enquanto progredia na escola, rumo à universidade, aperfeiçoava-me na minha atividade marcial. O apelido de Sansão acompanhou-me também no judô, e eu me dediquei à arte, tanto quanto aos estudos, sempre com muito bons resulados em ambos. Nas atividades escolares, tornei-me o primeiro aluno da turma, título que conservei até o final do segundo grau. No caminho suave, dei duro, de faixa em faixa, até atingir a faixa preta, em 1968. No percurso, sagrei-me bicampeão brasileiro de judô e alcancei o quarto lugar no Campeonato Brasileiro, ocasião em que recebi a faixa marron. A preta viria com muita dedicação, treinos e participação nos campeonatos, e exames extremamente exigentes, que eram constituídos por duríssimas provas práticas e orais, e era chancelada pela Academia de Judô e Cultura Física de Volta Redoda, e pela Dai Nippon Budokukai da America Latina. Nos anos seguintes, participei de todos os campeonatos no Rio e em São Paulo, pela Liga de Desportos de Volta Redonda, obtendo muitas vitórias, sempre entre o primero e terceiro lugares. Durante meus estudos universitários, na Universidade do Porto, em Portugal, fui professor de judô, no Centro Desportivo Universitário do Porto. Continuei treinando e ensinando, ao voltar ao Brasil, então formado em medicina. Abandonei as competições, quando vim de Volta Redonda para o Rio de Janeiro, porque aí já era neurocirurgião e precisava preservar as minhas mãos. Mas abracei a arbitragem e fui médico da Federação Fluminense de Judô, absorvida posteriormente pela Federação Brasileira de Judô, da qual sou membro até hoje.
O apelido Sansão integra toda essa trajetória e continua sendo um referencial em minha vida. Todo mundo conhece a história bíblica do nazireu, dedicado a Deus, que liderou os israelitas contra os filisteus, e só foi derrotado quando deixou-se seduzir pela linda Dalila, que cortou os seus cabelos, fonte de sua força, entregando-o assim aos inimigos. Para mim, essa história transformou-se num ensinamento, que o apelido mantém sempre vivo em minha consciência. Considero o simbolismo extremamente rico, e vejo os cabelos do Sansão que sou como as minhas raízes, uma manifestação de pureza de consciência, dedicação e força de espírito, que a bela e vaidosa Dalila — o meu ego — só pode cortar se a pequenez, o orgulho e o lado sombrio que todos possuímos em nós mesmos, fazer-me baixar a guarda e levar Sansão a acreditar unicamente em seu mérito, esquecendo-se de que, por si só, ninguém pode ir muito longe.
O restante é descoberta. Estou sempre (re) descobrindo o mundo, as pessoas e a mim mesmo. Decifrando pouco a pouco cada enigma — ou as “equações” da vida — superando cada obstáculo e, sobretudo, vencendo a cada dia o adversário mais poderoso que o judô me ensinou a superar: a mim mesmo.