A GARRAIADA
A GARRAIADA
Naquela manhã de outono, em novembro de 1969, lá estava eu, de mala e cuia, acompanhado por meus pais – Washington Luiz Silveira, conhecido em Volta Redonda como “seu Woston”, e Maria Yolanda de Jesus Silveira, ou “Dona Mariazinha” — pronto para pegar um ônibus, com eles, para o Rio de Janeiro, e da Rodoviária Novo Rio ir até a Praça Mauá, tomar o navio para Portugal, onde cursaria a faculdade de medicina, na famosa e centenária Universidade do Porto. E assim foi. Eu tinha, então, 19 anos de idade, e jamais me afastara tanto de casa. Na verdade, nunca havia saído de Volta Redonda! Mas, ironicamente, ao sair de lá pela primeira vez, eu o fazia não para outra cidade, ou outro estado. Mas para outro país, outro continente! De minha pacata e amada Volta Redonda, quase direto para o Velho Mundo!
Jamais esquecerei de meu pai, emocionado, sem dizer nada, mas me segurando pelo braço, com força, sem perceber o próprio gesto, com o que parecia tentar impedir-me, inconscientemente, de partir. Minha mãe, mais explícita em suas emoções – como em geral são as mães – chorava muito, e me abraçou um instante antes de eu embarcar:
—Vá meu filho — disse, entre um soluço e outro — Vá ao encontro do seu sonho e que Deus o guarde e acompanhe... Nós te amamos muito... Não se esqueça de voltar para nós...
Eu já vinha com um nó no peito desde a Rodoviária de Volta Redonda, e nesse momento de despedida, logo antes de embarcar no navio, após um abraço apertado e silencioso de meu pai, uma grande emoção tomou conta de mim. Cheguei a pensar em desistir de tudo ali, naquele momento, mas aguentei firme, e se não chorei também, primeiro foi porque que homem não chora e depois porque achei que iria piorar as coisas pra Seu Woston e Dona Mariazinha, que já estavam mexidos demais com aquele adeus, mesmo temporário. Jamais me esquecerei dos dois, ali no cais, os lenços acenando em minha direção, minha mãe falando alguma coisa que não dava mais para eu escutar, meu pai enxugando, o mais discretamente possível, algumas lágrimas furtivas. Uma vez dentro do navio, e já longe do cais, soltei o choro (homem chora sim!) e me entreguei discretamente a um pranto o mais silencioso possível, só interrompido pelo reencontro brusco com dois colegas que haviam embarcado também, com os mesmos objetivos que os meus. Eram Norberto Pereira — o mais velho de nós três, com 24 anos de idade, ex-funcionário da Companhia Siderúrgica Nacional, como eu — e o Cláudio Umberto, o “do meio”, com 22 anos. Eu era o caçula do grupo, com 19 anos. Não os notara, durante o embarque, mas sabia que eles haviam sido classificados para o curso, e fiquei muito alegre em encontrá-los. Havíamos reservado uma cabine para quatro pessoas, mas éramos mesmo apenas os três naquele espaço, que acabou ficando um pouquinho mais confortável do que ficaria se fôssemos realmente quatro.
Aquele encontro e a companhia dos dois me sossegaram um pouco, mas eu mal imaginava que estava prestes a sofrer o primeiro trote, a primeira garraiada, muito antes de chegar a Portugal e à Universidade. Garraiada, uma expressão que eu, na verdade, só viria conhecer em Portugal mesmo, equivale mais ou menos ao que no Brasil chamamos trote, ou brincadeiras com que que os veteranos recebem os calouros que chegam às universidades. No Brasil, raspa-se a cabeça dos infelizes e pinta-se seus corpos inteiramente, com tintas coloridas (as meninas têm os cabelos pintados e não raspados). Depois, tanto os meninos, quanto as meninas, de canecas na mão, são obrigados a mendigar alguns trocados nas ruas da cidade, para a cerveja e petiscos dos veteranos. Em Portugal, os pobres coitados dos calouros são colocados dentro de uma praça de touros, sentados, vestidos com jalecos brancos, como se fossem assistir às aulas. De repente são soltos os garraios, novilhos de touros Miúra, já bem grandinhos, agressivos, com cerca de 250 a 500 Kg, sem chifres desenvolvidos, mas com dois poderosos “brotos de chifre” começando a crescer. Os calouros correm para os muros da arena, para tentar saltar sobre eles e escapar. Mas do outro lado desses muros há touros adultos, aguardando os fujões... Ao final de tudo, depois dos novos estudantes terem enfrentado os garraios, um toureiro profissional domina os animais e os calouros finalmente escapam daquele suplício.
Bem, de volta ao navio que me conduzia a Portugal, durante aqueles nove dias de viagem acabei arrumando uma namorada, no navio mesmo, e isto, aparentemente, foi o começo de tudo. A questão é que se colocava um problema bastante objetivo: como poderia eu ter alguma privacidade com minha namorada, se dividia a cabine com mais dois galalaus? Acertamos, então, um esquema que, a princípio, seria altamente favorável para mim: sempre que eu estivesse com a amada em meus braços, na cabine, colocaria no vão da porta (que obviamente estaria fechada) uma meia, que ficaria como a nossa sinalética de “não perturbe”, até que fosse retirada. E assim foi feito. Mas, claro, o que valia para um, deveria forçosamente valer para os três. Nada mais justo. De modo que, depois de alguns dias me sentindo muito confortável para namorar com privacidade, comecei a encontrar a porta de minha cabine fechada por dentro... e com uma meia acima, sinalizando o nosso “do not disturb”. Não esperava por aquilo e fiquei muito surpreso. Mas, fazer o que? Era uma questão de justiça, e respeitei a privacidade de cada um dos dois. Não tinha outro jeito. Ficava zanzando pelo navio, às vezes passeando com a minha namorada, até tarde, quando, então, voltava à cabine, na esperança de ter minha entrada franqueada... o que algumas vezes demorava a acontecer.
Foi só no oitavo dia, véspera da chegada ao nosso destino, que os dois me confessaram que jamais estiveram com garotas na cabine. Eles colocavam a meia só de molecagem e saiam passeando pelo navio, mas escondendo-se de mim — que também fazia hora nos “arredores” — ou então iam dormir, deixando a meia na porta, até que um deles resolvesse se levantar, retirar o sinal e deitar-se novamente. Minha primeira reação foi de raiva, xingá-los e tal, mas acabei levando na esportiva. Não posso negar que foi um trote bem bolado, uma garraiada ainda em alto mar, que acabou me preparando para a garraiada à vera, que eu iria provavelmente ter de enfrentar no Porto. Além do mais, no frigir dos ovos, quem saiu ganhando fui eu. Afinal, nos meus momentos de privacidade, eu estava realmente em boa companhia. Enquanto eles, que não pegaram nem resfriado durante a viagem, não usufruíam dos carinhos de uma dama, nos períodos de meia na porta, e toda alegria que podiam ter era a de me pregar uma peça.
A garraiada que meus amigos improvisaram serviu também para que eu me desse conta, que realizasse em mim mesmo, que estava longe de casa, e que assim seria por um longo período. Olhando para trás, tudo parecia irreal, esfumaçando-se na saudade de meus pais, minha terra, meu país já agora tão distante. Pela frente, um mundo novo que eu ainda não via, mas que pressentia fortemente, e que viveria logo e por um bom tempo. Por ora, no entanto, apenas a companhia de dois moleques muito queridos e o horizonte ainda insondável, silencioso, mas cheio de promessas e esperança...