605-NO GROTÃO NEGRO - 1a. parte- Carvoeiros do Norte de Minas

1A. PARTE

— Maldição! Mais um dia de chuva, exclamou João Grande, enquanto virava goela abaixo o café misturado com cachaça.

— Se continuar assim, não vamos ganhar nada nesta semana, replicou Corinto, a boca cheia de mandioca cozida.

— Desde segunda, não fizemos nada. Nunca vi um inverno desse jeito. Chuva em abril, ce já viu, Corinto?

— Faiz muito tempo, muitos anos, vi sim. Mais eu trabaiava na lavoura, e foi um despropósito de água. Perdi a prantação de feijão e larguei de mão de prantá. A única coisa que tinha pra faze era trabaiá na carvoaria.

— Puis eu tô aqui indesde criança. Num conheço outra vida, não. — Tião Pina entrou na conversa, com desânimo.

A chuva caia pesada. Os serviços da carvoaria estavam praticamente parados. A estrada usada para trazer a madeira estava encharcada, o caminhão atolara diversas vezes até que decidiram não sair mais enquanto o tempo não melhorasse.

Os fornos estavam úmidos e não podiam ser acesos. Como era um serviço ajustado, isto é, todos ali ganhavam pela produção, aqueles dias de chuva significavam que nada ganhariam.

Abrigados da chuva na barraca improvisada, os quatro trabalhadores da carvoaria bebiam café, tomavam cachaça o dia inteiro, e comiam única coisa que tinha ali como alimento: mandioca.

Duas crianças também rodeavam por ali. Sabiá, um garotinho de uns 10 anos, filho de Raimundo; e Nicinha, fraquinha e miúda, de idade indefinida: tanto podia ter oito como 14. Ela vinha com o pai, Corinto, passava a semana ali. As duas crianças ajudavam os pais e eram obrigadas a fazer serviço de gente grande. Não tinham tempo para brincadeiras e viviam cobertos com a fuligem de carvão, que se estendia sobre tudo e sobre todos, ali na carvoaria do Grotão Negro.

O desânimo campeava entre os homens. Sem poder trabalhar, não tinham nada para fazer, nem uma distração, nada. Apanhados de surpresa pelo mau tempo, que começara na segunda-feira, não tinham condições nem de deixar o local, ir para a vila mais próxima, distante duas léguas, cerca de 12 quilômetros.

Ali tudo era negro: o chão da barraca, a lona que os abrigava, os poucos utensílios, as roupas, os corpos. Tudo coberto da fuligem que sai dos fornos ou do pó causado pelo carvão ao ser ensacado e colocado no caminhão. Um negrume impregnado nos corpos, que não saia nem quando se lavavam, coisa que acontecia com pouca freqüência.

Os oito fornos, formas semi-esféricas, feitos de barro assentado manualmente, alinhavam-se num extremo do campo. Nos dias de trabalho, eram quase invisíveis sob a fumaça que exalavam. Agora, debaixo da chuva, se apresentavam como misteriosas construções de um mundo estranho e miserável. A degradação e desolação do ambiente eram contagiosas, entranhava-se nos trabalhadores. A poeira e a fumaça entrava pelas narinas, bocas, poros, e minava-lhes a saúde. Quem não conseguia safar-se daquela vida, morria cedo, não chegava nem aos cinquenta anos.

Nenhum dos três homens presentes, como todos os trabalhadores em carvoarias espalhadas pelo interior, desde o norte de Minas até a Amazônia, queria permanecer naquele serviço, mas eram como que escravos da situação. Nada sabiam fazer senão encher os fornos com a lenha, fechar as bocas dos fornos com tapumes de barro, depois retirar o carvão (muitas vezes ainda quente), amontoar em grandes pilhas, enquanto outros ensacavam; levantar os sacos até o caminhão, em altos carregamentos aparentemente precários.

Constituíam verdadeiras dinastias de carvoeiros: os pais haviam trabalhado ali, os filhos estavam ali e os filhos dos filhos também prosseguiriam naquela vida de miséria extrema. Uma seqüência que não se interrompia nem era quebrada, a não ser pela morte.

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Sabiá, o garoto, filho de Raimundo, era esperto demais para seus dez anos. Prestava atenção na conversa do pai com os outros e imaginava como seria viver uma vida diferente.

Não conhecera a mãe, era como se não tivesse tido uma. O pai jamais falava nela, não sabia nem se era viva ou se tinha morrido. Ele e o pai viviam ali e poucas vezes tinha ido com o pai à vila, para comprar coisas necessárias à sobrevivência.

Ouvia as histórias contadas por Nicinha, que vinha com seu pai, Corinto, passar a semana trabalhando, e voltava ia para a vila todas as sextas-feiras à tardinha. Quando chegava às segundas-feiras, para nova semana de trabalho, trazia novidades e às vezes, até comida, que repartia com Sabiá.

— Lá na vila é que é bom. Tem muita gente e posso brincar com a Clarita e com o Luiz. Mamãe queria que eu fosse pra escola, mas papai não deixa. Diz que tenho de ajudar ele aqui na carvoaria.

Sabiá foi sendo tomado de sonhos pelo mundo lá fora.

— Como a gente faz pra ir pra escola? Eu posso ir? E de lá, eu posso ir pra outros lugares?

Nicinha respondia como podia. E sempre a imaginação de Sabiá se inflamando com as poucas informações.

Resolveu que tinha de ir à vila. Tanto amolou o pai, que este deixou, uma vez, que o filho fosse, passasse lá o sábado e o domingo e voltasse com Corinto e a filha. Fez com que ele se lavasse no córrego que corria no fundo da grota, e tirou duma caixa de papelão uma roupinha limpa. Foi descalço, pois não tinha sequer uma chinela para calçar.

— Fique descansado, que trago o minino são e salvo na segunda. — disse Corinto.

Viu, com tristeza, o filho partir na tarde de sábado. Quando abanou a mão pro menino, ao desaparecer na curva do caminho, teve a estranha sensação de que o filho se fora para sempre.

Bobagem, pensou. E foi cozinhar a mandioca para comer naquela noite, com café e cachaça.

CONTINUA

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 4 de maio de 2010 –

Conto # 605 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS – 1ª. parte –

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/12/2014
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