582-A TRIBO PERDIDA DE PETRO-HUÉ - Viagem e Lenda

A TRIBO PERDIDA DE PETRO-HUE

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Sentado à margem do rio Petro-hué, senti a grandeza do mundo que me rodeava. O alto da montanha, que eu via em perfeito contraste contra o céu de puro azul, era o pico do Vulcão Osorno, erguendo-se a mais de 2.600 metros, seu cone perfeito destacando-se contra o céu de um azul como nunca havia visto até então. A água, correndo sobre o leito de pedras e cascalho, ainda que transparente, tinha uma coloração notável, uma mistura de azul e verde. Podia ver o fundo com as pedras de diversas cores.

Meu guia, um jovem de origem índia, da tribo dos Araucanos, que habitaram o sul do Chile, sentou-se também ao meu lado. Tirou as botinas e mergulhou os pés na correnteza do rio. Riu, deliciado. Quando enfiei as mãos, fui envolvido pela sensação de estar metendo as mãos em gelo derretido.

=Que gelado! = exclamei.

Mengo-chué, o guia, sorriu para mim, usufruindo do refresco que era para seus pés, talvez pouco acostumados às grosseiras botas de caminhar.

Olhei ao redor. Por toda a extensão que margeava o rio, a vegetação exuberante de araucárias e outras árvores da região, era entremeada por uma cortina verde que tornava a mata fechada, impossível de ser explorada. Fiquei curioso e perguntei:

=Que vegetação é essa entre as árvores?

=E a quilla. Uma planta que invade as mata e toma conta de tudo. Venha, vamos ver de perto.

Calçou as botas com os pés molhados e, levantando-se, me deu a mão para que eu também me levantasse. Andamos pelo capim ralo até chegarmos à beira da mata, onde não se podia penetrar.

Mengo, que era estudante em Santiago e trabalhava como guia de tempos em tempos, explicou-me:

=É uma planta da família das gramíneas, um tipo de bambu fino que cresce nas terras secas. Brota em moitas, e seus ramos, com espinhos e gavinhas, que são pseudo-folhas, vão aderindo às árvores próximas, formando então este carrascal impenetrável.

Passei a mão por um caniço. Era parecido ao nosso bambu fino que usamos no Brasil para varas de pesca. Coberto por uma penugem macia.

=Ao secar, o que acontece anualmente, vira uma macega muito propícia a incêndios. Esta penugem é altamente inflamável. Por isso é que no parque é expressamente proibido fumar. Turista ou qualquer pessoa que fumar dentro deste parque (referia-se ao Parque Nacional Vicente Perez Rosales, conhecido também como Parque Petro-hué) ou no Nahuel-Huapi, que é continuação deste, mas do lado da Argentina, é multado e pode até ser preso.

Quando mostrei maior interesse pela quilla, da qual nunca ouvira falar antes, o jovem desdobrou-se em informações.

= O caniço da quilla era muito usado pelas tribos que habitavam estas bandas: faziam cestas, utensílios e móveis e até paredes de pequenas habitações. Entrelaçada em duas camadas, fica muito resistente e era usada como divisões e até paredes externas das casas dos índios.

= A floração é muito peculiar: ocorre a cada 35 anos e produz então, em abundância, um pequeno fruto que é comido por uma espécie de rato, que providencia, assim, a propagação da quilla por toda a região. Nessa ocasião, devido à abundância do fruto, ocorre também uma explosão da população de ratos. Ao terminar a “safra” dos frutos da quilla, os ratos, sem outra alimentação na floresta, saem em busca de alimentos. Chegando às regiões povoadas, às aldeias dos índios ou mesmo às vilas e cidades, causam verdadeiro pânico nos moradores. Os índios viam essa invasão como castigo dos deuses. Os araucanos temiam quando a quilla começava a florescer. Para eles, era prenuncio de tempos de fome, miséria e desgraças.

= Ainda bem que ela só floresce a cada 35 anos. = Comentei, pensando que a narrativa havia terminado.

= Sim = prosseguiu Mengo-chué, em sua linguagem cantada e harmoniosa = mas já causou, sim, tragédias e desgraças. Como o fim da tribo do grande cacique Cobina-haun.

=O fim de uma tribo? Devido à quilla? Como isso aconteceu? = Não consegui esconder minha curiosidade.

=Foi numa dessas ocasiões de invasões de ratos e de incêndios nas florestas. Ano seco, muito estio. A comida escasseava e os ratos estavam por toda a parte. A tribo do cacique Cobina-haun vivia às margens deste rio, mas bem para o leste, nas faldas do Osorno.

O vulcão batizado de Osorno pelos colonizadores europeus é chamado de Hueñunaca, que significa o lugar onde mora o demônio. Pois, a tribo do cacique Cobina habitava margem este rio, Petro-hué, que significa lugar de fumaças. Era uma tribo grande, mais de 50 habitações, construídas de quilla trançada e barro. A do cacique era de pedra, mas coberta de quilla.

Então, depois da praga de ratos veio a fome e em seguida, o fogo. Era como se o mundo estivesse acabando para os araucanos.

=Fome e fogo... que desgraceira! = Comentei.

=Então foi assim. A tribo já não tinha mais o que comer. Até os ratos foram caçados pelos araucanos, que os comiam, mas foram devorados ou fugiram. Ninguém sabe como o fogo surgiu. Pode ter sido uma fagulha das fogueiras da aldeia, ou pode ter vindo do mato. Foi numa noite fria, a tribo inteira dormia e quando foram acordados pelo clarão ou pelo calor das chamas, já era tarde para qualquer providência. Os araucanos correram na direção do rio, pois a mata também queimava. Correram, entraram nas poucas canoas e desceram o rio, afastando-se das margens, onde o fogo se alastrava.

O fogo foi implacável, queimando tudo e matando muitos habitantes. Muitos morreram queimados, outros afogados, ao tentarem pegar as canoas.

Ao entardecer, os índios voltaram ao sítio da aldeia. Nada mais restava, senão as pedras enegrecidas da choupana do cacique Cobina-Haun.

Os índios viram nesta tragédia um aviso do deus da floresta. Não se sabe muito dos detalhes, mas entre as tribos corre a história de que o cacique determinou que todos os sobreviventes da tragédia o acompanhassem, numa caminhada montanha acima, rumo ao pico do Hueñunaca, ou Osorno. Nunca mais foram vistos.

=Desapareceram?

=Sim, nunca mais ninguém viu qualquer sobrevivente da tribo do grande chefe Cobina-Haun.

Um silêncio caiu entre nós dois. Era como se eu e Mengo estivéssemos, cada um à sua maneira, prestando um uma homenagem silenciosa à tribo desaparecida de Petro-Hué.

Antônio Gobbo

Beco Horizonte, 30 de dezembro de 2009

Conto # 582 da Série 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/12/2014
Reeditado em 17/12/2014
Código do texto: T5072385
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