Uma Brincadeira de Crianças
Quando chegámos a aldeia não tinha ninguém. Deixaram-na morrer assim, aos poucos, fugindo os novos daquela prisão de ermos e pedras, morrendo um a um os velhos, demandando outros pastos as cabras do Afonso, tão logo se aperceberam que, se há dois dias não saiam, com ele ausente nunca mais veriam erva nem o regato, nem as voltas livres da serra que se erguia a perder de vista. Quando vieram por ele fedia já na enxerga sem lençóis. Malhada fez-se líder e arrancou as tábuas da cancela e libertou as demais que ainda andam a monte. Cuidámos das que voltaram. Tudo foi duro e difícil mas já temos abrigo, lume, leite e queijo. Da feira trazemos o que faz falta permutando o que conseguimos da terra e do gado. A casa está acolhedora e as colmeias, dão um mel pálido, aromático, vendável. Quando fazias a mochila com a tua e a roupa do bebé, bem antes do que previu o médico, romperam as águas e ambos nos vimos entre aflições e gritos, sangue, fezes e urina. Aprende-se muito quando não temos quem nos acuda e o desespero dá-nos força e luz. O menino nasceu no dia de Natal e sobreviveu com o que havia. Quando, dois dias depois, chegou o socorro estava o nosso Presépio montado: amamentavas o João deitada nas palhas da loja. Não havia nem vaca nem burro. A necessidade de calor trocara-os pelas seis cabras que nos faziam companhia. Tu não o viste mas eu posso garantir que havia um anjo que soprava as brasas para atiçar a fogueira e um outro que alimentava a talha para que nunca nos faltasse a água. Com eles por perto, viver aqui é uma brincadeira de crianças.