O libertador de almas
José Givanildo era um vaqueiro valente conhecido como o melhor amansador de touro brabo do Nordeste. Era macho de palitar os dentes com faca, limpar os ouvidos com espinho de cacto e dizem que matava onças apenas com socos – de murro.
O fazendeiro Zé Pereira da cidade de Juazeiro do Norte no Ceará, sabendo da fama de Givanildo, mandou o contratar para que este dominasse um suposto touro que à noite vinha a sua terra matar seus animais. Trinta vaqueiros já tinham morrido tentando fazer o serviço. Desesperado, Zé Pereira não sabia mais o que fazer. A sua única esperança era Givanildo.
Cabra macho, Givanildo dizia que não era homem de fugir da raia, que dava um boi para entrar numa briga, mas dava uma boiada para não sair. Ainda afirmava: “tá pra nascer nesse mundo algum caba ou assombração pra me botar medo”. Ele aceitou a proposta do fazendeiro sem pestanejar e pensou: “agora eu tenho uma boa oportunidade para mostrar quem é o vaqueiro e cabra mais macho da região”. Acordou às 5h da manhã, calçou suas botas, pôs o chapéu, pegou sua mochila, colocou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, cigarros de palha, uma corda, uma peixeira entre calça e o bucho, um facão amarrado à calça, um cantil com água e outro com cachaça, arreou o cavalo, beijou seu crucifixo e saiu de sua casa, que ficava na cidade de Catolé do Rocha, na Paraíba, rumo à terra de Zé Pereira.
Depois de um dia de cavalgada, Gilvanildo chegou ao seu destino quando já estava anoitecendo. Na porteira da fazenda, bateu palmas e gritou: “ô de casa”. Um dos empregados de Zé Pereira foi receber o vaqueiro.
Bastante esperançoso, o fazendeiro falou: “José Givanildo / Vaqueiro destemido / Te chamei para uma missão / Tem um boi safado / Matando meu gado / Dando-me perturbação.// Sei que és homem de valor / Muitos touros dominou / És um vaqueiro valente / Peço-te esse favor / Amansa esse touro agressor / Serei grato a ti eternamente”.//
Givanildo respondeu: “Seu Zé Pereira / Aceito de primeira / Este belo serviço / Sou homem de labuta / Nunca fugi da luta / Nunca me aconteceu isso.// Quando o touro encontrar / Vou lhe dominar / Deixá-lo bem mansinho / De um jeito domável / Vai ficar muito amável / Igual a um garrotinho”.//
Depois da prosa, os dois fecharam um valor para o trabalho, e Givanildo pediu água para matar a sede, macaxeira, fubá, carne de bode para se alimentar e uma rede para cochilar. Após duas horas de cochilo, ele se levantou e, antes de sair para a caçada, pegou a imagem da santa, beijou-a e orou: “Rogo a te Nossa Senhora Aparecida / Santa por mim demais querida / Dê-me a sua proteção / Com você ao meu lado / Não tem como ser derrotado / Venço até o maldito cão”.//
Era 8h da noite quando Givanildo saiu. Após vinte minutos de cavalgada, chegou ao local onde o gado ficava. Desceu do cavalo, deu uma tapa na bunda do animal para afastá-lo do eminente perigo – não queria que o seu cavalo querido sofresse algum dano – abriu a porteira do cercado e ficou agachado, esperando o touro brabo chegar.
Depois de três horas de espera, oito cigarros de palha fumados e 15 goles de cachaça, Givanildo viu algo estranho surgir no céu. Coçou os olhos para ver melhor – não conseguia acreditar no que via. Uma criatura muito estranha voava em direção ao gado que estava próximo a ele. Ela tinha o tronco de onça, cabeça de cão, chifres grandes, afiados e pontudos, asas de morcego e rabo de tatu – Givanildo o apelidou de Cabeça de Cão e Asas de Morcego.
Quando a estranha criatura estava descendo do céu rapidamente, já com os chifres apontados para um dos animais, o vaqueiro pegou a sua corda e arremessou na criatura. Profissional de mira singular, Givanildo acertou nos chifres da criatura, que foi levada ao chão de maneira brusca. Logo após, ele beijou o crucifixo, fez sinal da cruz, colocou a peixeira na mão esquerda, o facão na mão direita e correu em direção ao ser estranho.
Ao chegar frente a frente com o Cabeça de Cão, Givanildo ficou ainda mais horrorizado e pensou: “Vixe Maria, Nossa Senhora, isso só pode ser obra do cão”. Depois olhou novamente para a criatura e falou: “Ser amaldiçoado / Que mata gado / Vou te dar uma lição / Te matarei rapidamente / Sou vaqueiro valente / Não brinco em serviço não”.//
Puxou a besta fera, que ainda estava com os chifres presos à corda, em sua direção e tentou dar-lhe uma peixeirada. Só que Asas de Morcego, com suas garras, aparou o golpe. Givanildo, admirado com tamanha rapidez, desferiu uma rasteira no seu oponente que novamente caiu no chão desengonçado. Em seguida, o vaqueiro fingiu que ia desferir outra peixeirada, mas quando a criatura foi defender o golpe, tardiamente percebeu o truque. Givanildo, rapidamente, com a mão direita, cortou a garganta dela com o facão.
Sentindo o sangue jorrar na garganta e vendo a morte se aproximar, Cabeça de Cão falou para Givanildo: “Há muito tempo atrás / Eu vivia em paz / Até da força de Deus duvidar / Dizia a todos que era valente / E que nem Deus pessoalmente / Era capaz de me derrotar.// Como castigo perdi sua proteção / Dei brecha para o cão / Em besta me transformar / Me tornou essa criatura estranha / Que se alimenta de entranhas / Até você me libertar.//
Depois que essas palavras foram ditas, a criatura que era horrenda se transformou em um belo jovem e alto rapaz. Givanildo mais uma vez impressionado, orou para o nosso senhor: “Deus Santo Misericordioso / Tu que és o todo poderoso / Perdoa esse sofrido rapaz / Do que fez já se arrependeu / Nas minhas mãos ele morreu / Deixas a alma dele em paz.//
Assim que terminou de proferir suas palavras, o vaqueiro viu um clarão surgir no céu e algo como se fosse um anjo desceu até o corpo do falecido. Mais uma vez Givanildo ficou impressionado, coçou os olhos, e viu que a sua frente estava o Espírito Santo, que levou a alma do ex sofrido monstro para o céu.
Feliz por ter feito algo digno de um verdadeiro herói, Givanildo pensou: “estou feliz demais, consegui salvar o gado do seu Zé Pereira, matei a estranha criatura e ainda salvei uma alma perdida”. Sorriu satisfeito, colocou o corpo do jovem rapaz no cavalo, montou no animal e foi em direção à casa grande da fazenda.
Assim que chegou ao destino, o fazendeiro veio correndo para o vaqueiro e com lágrimas nos olhos disse: “Quero que possas me perdoar / Não queria te enganar / Mas fui obrigado / A missão que tu completasse / E a alma que salvasse / É a do meu filho amado.// Pelo capeta ele foi condenado / A viver desalmado / E a mim me atormentar / Sou a ti grato eternamente / Pois apenas você foi o valente / Que conseguiu ele salvar”.//
Apesar de ser enganado, o vaqueiro se sentiu orgulhoso com tamanha homenagem e não conseguiu ficar com mágoa do fazendeiro. Viu nos olhos deste a sensação de alívio em ter o filho salvo das mãos do satã. Compadecido com a situação, respondeu a seu Zé Pereira: “Não fiques preocupado / Pois estou lisonjeado / Em ter feito essa missão / Com apenas uma facãozada / Livrei uma alma aprisionada / Isso me deu satisfação.// Enterre o seu filho querido / Que antes estava perdido / Mas não está mais / Sua alma agora está no céu/ Livre daquele ser cruel / Conhecido como Satanás”.//
Encerrada a conversa, Givanildo pegou o seu pagamento, guardou suas coisas na mochila e regressou a sua terra. A sua história hoje esquecida / Já foi muito conhecida / Em nossa grande região / Em qualquer lugar do Nordeste / Todos conheciam esse cabra da peste/ Givanildo, o herói do Sertão.// Depois de salvar o filho do fazendeiro / Andou pelo Nordeste inteiro / Até o capeta ele intimidou / Do tinhoso virou inimigo / De Deus íntimo amigo / E muitas almas sofridas, ele libertou.//