407-CICLISTAS CONTRA MINUANO- Autobiográfico

Colegas de trabalho e companheiros nos momentos de folgas, Walter e Ivan eram amigos inseparáveis. Oriundos do interior de Minas, ficaram conhecidos por todos na pequena cidade de Sanga Rasa por serem exímios ciclistas. Passavam os fins-de-semana pedalando pelo interior do município, entusiasmados pela planura da região. Jogavam as mochilas nas costas, amarravam garrafas de água nas grades traseiras das magrelas e sumiam pelas estradas. Chegavam até sítios e fazendas de proprietários conhecidos, pois trabalhavam no atendimento aos ruralistas, clientes do banco onde eram funcionários.A cordialidade dos gaúchos os animava a aceitar os convites de pernoites e, por vezes, o chimarrão da manhã e o almoço no final da manhã.

Numa dessas saídas, foram parar na fazenda do prefeito Adonias Silvério. Chegaram de tardezinha, o sol já se escondendo atrás de uma pequena coxilha, e aceitaram, de bom grado, tanto o jantar quanto o convite para o pernoite.

Qual não foi a surpresa de ambos quando, ao se levantarem antes do raiar do dia, enquanto tomavam o mate, ouviram a voz do “patrão”:

— Pois então, tchê, acertaram em cheio. Hoje vamos ter o maior churrasco da região. — Disse o próprio Adonias, já devidamente metido em vistosas bombachas, botas de meio cano, chapelão dependurado atrás do pescoço. — Vocês estão convidados.

— Não podemos ficar não, seu prefeito. Vamos voltar logo cedo. — Waltinho respondeu. — Temos de descansar, que o estirão daqui até Sanga Rasa é comprido.

— Mas o quê? — A figura impressionante do fazendeiro, um autêntico gaúcho, se tornava mais forte ainda quando falava com voz ponderosa e altaneira. — Não vão ficar para a festa do meu aniversário?

Os dois ciclistas levaram um susto com a maneira naturalmente rude do gaúcho. Abaixando um pouquinho o tom de voz e abrindo um sorriso sobre o bigode cerrado, insistiu:

— Vocês não sabem que isto é uma desfeita?

Desajeitados, Walter e Ivan não tiveram como recusar o convite. E ficaram para o maior churrasco do qual, realmente, haviam participado até aquela data. A comilança teve inicio com o putchero, um cozido de miúdos das reses carneadas para o churrasco, misturados com milho verde, legumes, mandioca e pimenta...muita pimenta. Depois, seguiu-se o churrasco, que foi pela tarde afora.

Mais de uma centena de pessoas chegou da cidade e das propriedades dos arredores. A festa decorreu com brincadeiras, danças típicas ao som de uma concertina plangente, espalhando pelo ambiente a música dos pampas.

Fartos de tanta comida e bebida, Ivan e Walter resolveram sair cerca das quatro horas. Um ventinho frio começava a soprar e tiveram de abotoar as japonas, antes de irem se despedir do prefeito.

— Mas, tchê! Vão deixar a festa no meio? — A cordialidade do anfitrião era insuperável.

— Sim,temos de chegar à cidade ainda com a claridade do dia. — Desculpou-se Ivan.

— Vocês vão pedalando? — Indagou Tobias, um dos filhos do prefeito.

— Sim. Viemos de bicicletas e vamos voltar no pedal. — Respondeu Walter.

— Pois eu não iria. Tão sentindo este ventinho que começa a soprar? É o minuano. Na campina deve estar forte, e é um perigo enfrentá-lo assim, despreparados como vocês estão.

— Temos de ir.

— Por que vocês não esperam mais? Daqui a pouco, vou para Sanga, levo vocês e suas bicicletas na camioneta.

— Não, não dá. — Ivan estava com pressa. — Vamos partir já.

As despedidas, os agradecimentos, etc., e eis os dois ciclistas pedalando pela estrada. O sol ainda estava a duas horas do ocaso, e a luminosidade dos pampas era impressionante. Os diversos tons de verde, todos brilhantes, refletiam a luz da tarde.

Mas à medida que os dois ciclistas avançavam, começaram a sentir a força do vento. A brisa foi aumentando de intensidade e se transformava em forte vendaval, que levantava a areia da estrada , jogando-a contra os dois aventureiros.

Quem já pedalou contra o vento, por comum que seja, sabe da sua força. Agora, enfrentar o minuano é coisa muito pior. O vento, que vem do sul, aumenta de intensidade, deslizando por sobre as águas da Lagoa dos Patos e atinge fácil, fácil, os cem quilômetros por hora. É tão forte que chega a empurrar a água da lagoa, fazendo subir o nível do Rio Guaíba e das sangas, pequenas correntezas que deságuam na lagoa.

— Não adianta, não agüento mais. — Ivan gritou, após meia hora de jornada. — Vamos parar um pouco.

Pararam. Os rostos estavam ardendo pela areia que lixava a pele. As bocas secas e os olhos, queimando. Tomaram um pouco da água que traziam nas pequenas garrafas amarradas nos quadros das bicicletas.

— Puxa, e nem chegamos à metade do caminho. Não conseguiremos chegar na cidade antes de anoitecer.

— Deus nos livre! No escuro então é que estaremos no mato sem cachorro.

Cansados e desanimados, foi com surpresa que viram, no meio da nuvem de areia levantada pelo vento, um veículo se aproximando. Uma camioneta, flamante de nova, parou quando o motorista viu os dois à beira da estrada. Abriu um pouco o vidro da cabine, o suficiente apenas para falar com os dois.

— Caramba, muchachos! São vocês dois? Eu não falei pra vocês me esperarem?

Era Tobias, o filho do prefeito, que voltava para Sanga Rasa. E sem esperar resposta, ordenou:

— Vamos, ponham as bicicletas e entrem na cabine.

Sem mais falar, fechou o vidro. Ivan e Walter criaram alma nova. Sem pestanejar, colocaram as bicicletas dentro da carroceria da camioneta, e correram para entrar na cabine.

— Ufa! Se não aparecesse esta ajuda, a gente iria ficar aí, na estrada, até o vento passar. – Disse Ivan, assim que se assentou ao lado do motorista.

— Moço, o minuano quando começa, leva três, quatro dias, assoprando sem parar. Vocês iam mas é morrer por aí, debaixo da areia.

Seguiu-se um longo silêncio. Então, Walter começou a falar apressado, arrependido de não ter aceitado a carona quando ainda estavam na fazenda, mas foi cortado por Tobias.

— Mas que nada! — Abriu um sorriso largo, de gozação. — Sabe, vendo vocês dois pedalando nestas geringonças, me lembrei de uma ocasião em que vi dois camaradas conversando ao lado de suas bicicletas, no Parque Farroupilha, lá em Porto Alegre.

— Eles também estavam pedalando contra o minuano? — perguntou Ivan.

— Não, estavam descansando, como vocês aí na beira da estrada. Examinando as bicicletas. Então, um perguntou ao outro:

— Manuel, conde arranjastes esta magnífica bicicleta?

E o outro respondeu:

— Ora, Joaquim, foi fácil. Imagina que eu estava a tomar um bocado de sol, na beira do Guaíba, ali na prainha, quando chegou, de bicicleta, uma mocetona linda de morrer, e muito gostosa. Ela olhou para um lado, olhou para o outro, desconfiada, a ver se havia alguém nos observando. Então, deixando a bicicleta no chão, tirou todas as roupas, os mocassins e, completamente nua, aproximando-se de mim, disse: “Olha, bacanudo, podes pegar o que quiseres.” Então peguei a bicicleta e saí pedalando.

O homem que se chamava Joaquim então disse:

— O Pá, escolheste bem. Provavelmente a roupa não te serviria...!

Com esta e outras histórias, Tobias encurtou o caminho para Sanga Rasa, aonde chegaram no início da noite. O minuano ainda soprava forte, mas agora era como se fosse um lamento por não ter vencido os dois desavisados ciclistas

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 26 de junho de 2006

Conto # 407 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/09/2014
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