343-AMALDIÇÃO DO MAMELUCO-Fato histórico dos bandeirantes

— Cuidado com a gameleira. Num fica debaixo dela. Tem maldição de índio.

Intrigado, Robert quer mais informações, mas o índio velho desaparece por entre as touceiras de capim elefante, cujas folhas afiadas como navalha chegam até à capota da Ranger.

O repórter vira-se para o guia que havia ajustado em Pirapora.

— Que negócio é esse de maldição?

Sentado no banco ao lado do motorista, Romão revira os olhos e faz um esgar de desprezo.

— É mintira dele. Esse índio vive aqui só pra assustar os visitante.

Dá na partida, engata a marcha e prossegue na estradinha estreita, que é pouco mais do que uma picada no meio da mata rala do cerrado.

Robert Duval está na região faz poucos dias. Repórter de revista francesa, encontra-se fascinado com tudo o que vê e fotografa: o rio São Francisco, a vegetação rala de árvores retorcidas, as pessoas e as histórias que correm soltas. Viera para registrar um evento de importante empresa internacional e agora, por conta própria, embrenha-se pelo interior, à cata de fotos e lendas ligadas ao rio. Ouvira falar de uma história dos tempos da colonização, quando um bandeirante mandara enforcar o próprio filho sedicioso. Dirigia em busca das ruínas de uma capela erigida no lugar da tragédia ocorrida há mais de dois séculos.

Na certa, tem aí alguma coisa alem da história. — pensa Robert. E dirigindo-se ao guia:

— Parece que está com medo do índio velho, senhor Romão?

— Não...não é nada. Só umas histórias bestas que o povo conta. Coisas de maldição de gente que já finou faz um tempão. Faz tanto tempo que parece que é mentira.

— O senhor não acredita? Olha que o povo aumenta mas não inventa.

Havia partido cedo de Pirapora, rumo ao local: a barra do rio Guacui, quando desemboca no São Francisco. Indagara ao guia sobre a distância.

— Fica coisa de légua, ou pouco mais.

— E a estrada?

— Com essa camioneta, dá pra passar. Se tiver tração nas quatro rodas.

As chuvas de verão transformavam as estradas de terra em meras sendas de lama. Com dificuldade, Duval mantinha a direção do veículo feito a propósito para desafios daquele tipo. Entre uma sacolejada e outra, ao sair de uma curva, viu a bizarra figura do velho à margem da estrada. Curioso, parou o carro, apesar do aviso do guia:

— Num pára não. Esse velho é macumbeiro.

Acocorado, um porrete na mão, cigarro de palha na boca de beiços largos e vermelhos, os cabelos compridos agitados pelo vento, o velho permanece impassível ante a aproximação da máquina. E impassível fica, ouvindo, sem responder, as perguntas que lhe faz Duval, que filma o homem, sem sair da camioneta. Não fora o brilho intenso dos olhos mergulhados em escuros buracos de órbitas fantasmagóricas, podia ser confundido com uma estátua mal acabada. Quando o repórter, ante a mudez do homem, liga o carro para prosseguir na viagem, ele se levanta e, agitando o bastão na direção de Duval, grita, numa voz roufenha e soturna, como aviso ou ameaça:

— ... debaixo da gameleira... maldição de mameluco.

À contra-gosto e por insistência do repórter, e pensando obter mais algum dinheirinho além do combinado para aquele serviço, o guia, que sabe de tantas quantas histórias e lendas correm pelo sertão, começa a falar.

— Já faz pra mais de trezentos anos, quando ninguém conhecia esse mundão de Deus, que os paulistas vieram com as bandeiras. Teve um mais teimoso e aventureiro, chamado Fernão Dias, que procurava esmeraldas. A mania do homem era achar uma famosa mina de pedras preciosas, pedras verdes, esmeraldas de muito valor. Acontece que, depois de vaguear por esses nortes, o homem perdeu a confiança dos seus próprios amigos, que o seguiam naquela aventura sem fim. Cansados e desanimados, foram deixando o velho bandeirante. No final permaneceram o chefe, seu filho bastardo, Borba Gato, um fiel companheiro e mais uma vintena de homens e mulheres, na povoação que construíra nas margens de São Francisco,

O tal filho de Fernão Dias, se chamava José Dias, mas conhecido como Zé Mameluco, por que era filho do capitão com uma índia, coisa da mocidade do chefe da expedição.

O ânimo do pessoal estava abaixo de zero, mas o capitão não desanimava. Nem mesmo com a desistência de seus melhores homens. Insistia em explorar cada palmo do sertão, pra baixo e pra cima, á procura das pedras verdes, das esmeraldas.

Numa de suas saídas, quando se fez acompanhar de Borba Gato e apenas dois ajudantes, Zé Mameluco convocou os homens que ficaram na povoação para uma conversa séria.

— Meu pai está caducando. Se a gente ficar aqui, acaba tudo morrendo de fome, de doença ou comido pelos bichos. A munição está acabando. Temos de pensar numa maneira de sair deste grotão.

— Vosmecê tem alguma idéia do que pode ser feito? — Pergunta um dos participantes, acrescentando: — O Capitão está entestado que nem mula velha.

— O jeito é acabar com ele.

— O que vosmecê tá dizendo?

— É a única maneira de podermos voltar para nossas casas. Para nossas famílias.

— Cruz em credo! — persignando-se, um dos participantes se levanta e sai do casebre. Do lado de fora, topa com Guaianã, uma das índias que, colada à parede, ouvia o que se tramava lá dentro.

A conspiração continuou noite adentro. Mas os incautos conspiradores foram denunciados assim que o capitão da bandeira regressou de sua incursão, como sempre, sem, resultados. Guaianã nem esperou que Fernão Dias descansasse para lhe relatar o que ouvira.

A reação do velho bandeirante foi de estudada calma. Armando-se, passou a noite em vigília, para não ser surpreendido enquanto dormia. Quando amanheceu, convocou todos os homens para uma reunião, na qual comunicou ter ciência de tudo o que ocorrera. Zé Dias levantou-se e jurou inocência, mas o velho mandou Borba Gato prender os sediciosos. Fez uma rápida inquirição, da qual resultou a verdade: Zé Dias, seu filho, era o líder, o autor da intriga que resultaria na sua morte.

Diante das provas, Fernão Dias olhou com profunda raiva o filho e explodiu num grito insano.

— Miserável! Vosmecê irá morrer por isso!

Borba Gato intervém, tentando acalmar o irado pai.

— Releve o moço, Dom Fernão. Está descabeçado. Deixe que ele volte para São Paulo.

Um sorriso que mais parece ser um esgar de cólera aparece nos lábios, sob a rude barba do chefe.

— Voltar para São Paulo? Nunca! Para um crime deste tipo, só há um castigo: a morte!

— Zé Dias é seu filho! — insiste Borba Gato.

— Zé Dias não é mais meu filho. É um renegado. Vai pagar pela sedição.

E antes de nova argumentação de seu fiel amigo, determina:

— Borba, enforque o culpado!

Dada a fatal ordem, Fernando Dias entra para seu rancho, descendo a grossa pele que fecha o recinto, à maneira de uma rústica cortina.

O veículo salta sobre buracos, poças d´água e troncos caídos no meio da picada. Duval não se abala, está acostumado a rodar por locais assim.

— Pior do que isso, só as areias de Dakar. — Disse mais para si mesmo, lembrando as diversas vezes em que havia participado, como repórter, do famoso rally pelo deserto de Sahara.

Romão faz intervalos precisos na narrativa. Sabe contar uma história e não se afoba. Tem tempo até para acender um cigarro de palha, que pita enquanto conta a lenda.

Ao fazer uma curva, Duval puxa o veículo para a esquerda, na tentativa de desviar-se de uma enorme pedra. A Ranger salta para a margem a picada e avança pelo matagal ralo. No percurso fora de controle, vai arrasando os arbustos quebrando os galhos das arvores retorcidas.

— Merde! — Exclama Duval, tentando dominar a besta em que se transformara a camioneta, que só para quando bate de frente com um tronco de enorme pequizeiro.

Além do susto, não houve danos. Mas Duval estranhou que o veículo pudesse escapar ao seu controle. É como se ele tivesse ganhado vida própria, pensa.

De volta ao caminho, Romão retoma o fio da história.

Contrariado, Borba Gato prende Zé Dias, amarrando-o ao tronco de uma palmeira ao centro do povoado.

— Você fique quieto aqui, não tente fugir. — Recomenda Borba Gato a Zé Dias. — De tarde, vou conversar com seu pai, a ver se ele muda de idéia a seu respeito.

Borba Gato entrou em conversa com Fernão Dias por horas a fio. O capitão estava irredutível na sua sentença. Quando deixou o capitão, saiu desanimado. Já era noite fechada. Determinou que o enforcamento seria ao alvorecer do dia seguinte, e mandou dois fiéis servidores ficarem de vigia, não fosse o prisioneiro libertado por algum dos comparsas.

Zé Dias permaneceu quieto, sinistramente silencioso. Guaianã apareceu com uma cabaça com uma beberagem doce e fresca, que deu ao prisioneiro. Após bebê-la, Zé Dias caiu num torpor profundo. Do qual não saiu nem quando, alta madrugada, foi desamarrado e carregado para beira do rio.

Projetando-se sobre o rio uma gigantesca maçaranduba, sombria na noite sem lua, foi o suporte para o corpo de Zé Dias, que, amarrado por sob os braços, foi erguido sobre o rio.

— Tira as botas dele. Deixa amarrado aí, só com os pés mergulhado na água. — Houve uma ordem sussurrante.

A correnteza levou o cheiro do homem dependurado, inconsciente, e trouxe as piranhas. Às primeiras mordidas das ferozes predadoras, a consciência voltou. Cada picada era uma navalhada na carne. Zé Dias começou a gritar. Seus uivos estendiam-se por sobre as águas e se perdiam pela mataria. De meio aos uivos de dor, praguejava e esconjurava a todos.

— Malditos! Malditos! O Diabo virá queimar todo mundo.

No povoado, ninguém ouvia os gritos do mameluco. Filho de índia, conhecia os mistérios e rituais de sua tribo. Suas invocações tinham a força de Tupã e outros deuses tribais .

— Maldição para vosmecê, Fernão Dias! Vai morrer sem achar as esmeraldas. Tudo o que tocar, vai virar pó. Vai apodrecer no sertão...

As piranhas pulavam acima da superfície da água, abocanhando o que podiam. Os pés desapareceram, desfazendo-se os ossos das articulações, desprovidos de carne, músculos, nervos e ligaduras.

— ...e vou ficar aqui para castigar vosmecês. — As últimas palavras morrendo-na garganta, antes de desmaiar.

Bem de manhãzinha, Borba Gato aprestou-se para cumprimento da terrível missão de morte. Mas ao chegar ao tronco onde Zé Dias fora amarrado, ficou basbaque.

— O bandido fugiu! — Gritando, chamou os homens que havia deixado como sentinelas. Os quais não souberam explicar como o prisioneiro havia escapado.

— Vamos procurar na beira do rio. Ele deve ter fugido de piroga.

Correm para a margem do rio. Um preto alforriado aponta para a árvore, onde está o mameluco. Borba Gato fica estarrecido com o que vê: Zé Dias dependurado pelos braços, as mãos amarradas nas costas, balançando levemente. Olha para baixo. As canelas desnudas de carne eram o testemunho da terrível tortura infligida ao condenado. Sangrando pelas pernas, exaurido, o infeliz desmaiara.

— Santa Virgem! O que fizeram com ele? — Borba Gato, entre surpreso e condoído, manda baixar o condenado. Para, em seguida, vendo que ainda estava vivo, terminar a missão de carrasco.

— Passem a corda no pescoço e suspendam de novo. Ele tem de morrer enforcado. — Borba Gato não se eximia do cumprimento da ordem de Paes Leme.

Romão fica calado. Criando suspense ou finalizada a história? E durante o silêncio, a picada termina numa clareira no meio do arvoredo. O sol se esparrama, destacando os detalhes do cenário. No centro do grande circulo de solo arenoso, sem grama nem mato ou arbusto, a bizarra associação de uma tapera enlaçada pelas raízes de gigantesca gameleira.

Rodeada de altas árvores, a gameleira se altana, ultrapassando em altura e imponência a todas as outras. Exibe sua folhagem verde lustrosa, ao mesmo tempo em que sombreia a ruína. Um grosso galho seco lança as garras para o céu.

Os dois homens descem da Ranger, estacionada na beira da clareira. Duval, com diversas máquinas dependuradas ao pescoço, vai clicando e filmando, extasiado com a cena.

— Taí a capela que foi erguida para o Zé Paes. Foi o próprio pai quem mandou construir. De certo, pra aliviar a consciência. — Explica Romão. — Mas nunca foi acabada: quando tava quase terminada, um vendaval descomunal, nunca visto por essas bandas, destruiu o telhado. Sobrou só as paredes peladas. Adepois, nasceu essa gameleira, que foi se enraizando até enlaçar o que ficou de pé. Dizem que a gameleira é a alma do filho meio índio, meio branco, que lançou a maldição sobre o pai.

— E que fim levou o bandeirante? Achou o tesouro? — Indaga o repórter, sem parar de fotografar a ruína, a árvore e o arredor.

— Qual o quê! Achou umas minas ai pras bandas do Jequitinhonha, pensava que eram de esmeraldas, mas quando mandou pra capital, viram que eram pedras verdes, sem nenhum valor. E o velho acabou morrendo por aí, nessas brenhas, atacado de malária. A maldição do filho mestiço pegou mesmo, sem dó nem piedade.

Quando o fotógrafo procurou adentrar-se pelas ruínas dominadas pela árvore foi advertido pelo guia:

— Cuidado, seu Duval, não chega muito perto. Òia o que o índio falou.

O repórter finge que não ouve. Vai por sob a gameleira, entra pelas ruínas, clic, clic, clic, não para um instante de fotografar. Usa também a minúscula câmera.

Satisfeito com as tomadas, pede ao guia:

— Agora,. vamos ver a árvore onde o mestiço foi enforcado.

Romão sente um arrepio. Já esteve no lugar maldito diversas vezes, mas agora está com medo. Contudo, se faz de forte. E vão, atravessando a clareira e seguindo, a pé, uma picada estreita. Percurso curto, de uns duzentos metros, até a margem do rio.

Também é impressionante a velha maçaranduba, com séculos de existência. Parece tombada sobre a margem do rio, os galhos quase tocando a superfície da água. Mais cliques e mais filmes. Enfim, voltam à clareira.

— Vamo depressa. O tempo tá mudando. Vem chuva. — Romão vai à frente, passos miúdos e rápidos.

Em poucos minutos, a manhã clara e ensolarada se transforma. O céu se tolda com nuvens escuras. Um vento forte começa a soprar, vindo do rio, encrespando a correnteza. Quando chegam á clareira, o vendaval está no auge, agitando as árvores, uivando o passar pelas folhas das palmeiras. A manhã fica escura. Os homens têm de correr, atravessando a clareira, para chegar à camioneta. Quando estão no centro, sob a gameleira, um raio atinge o alto da árvore. A luz e o barulho cegam e ensurdecem os dois homens. O galho seco é estilhaçado, pegando fogo e cai estrepitosamente, atingindo, na queda, o fotógrafo e o guia. Duval sente a pancada no braço esquerdo, como uma martelada, ao mesmo tempo em que é atirado longe, por uma onda de calor quase insuportável, e tomba semi-inconsciente.

Romão é pego por uma lasca da madeira seca, que atravessa a perna, cortando a panturrilha e colocando exposto o osso da canela. Seus urros de dor se juntam aos gemidos do fotógrafo, que vagarosamente volta a si.

— A maldição... é a maldição... — Romão grita. — Vamo fugir.

Zonzo, Duval se levanta. Vai à direção de Romão, que, ajudado, se apruma como pode. Arrastam-se até a camioneta. um apoiado no outro,. Com dificuldade, sobem no veículo. Aguarda alguns instantes, pois ainda sente a zoeira do estalo fortíssimo que acompanhou o raio.

— E a perna?

— Tá doendo pra caramba. Já tá parando de sangrar. Mas tá um cheiro de carne queimada...tá sentindo?

Duval tira do pescoço a parafernália de maquinas e câmeras. Observa que as partes de plástico estão retorcidas e as correias estão chamuscadas.

— O raio desceu pela árvore e pegou a gente. — Passa mão pelos cabelos. — Meus cabelos também estão queimados.

Enfim, se recupera e consegue por em marcha o veículo. A volta foi penosa, debaixo da chuvarada que piorava ainda mais o caminho. Ao se aproximarem da cidade, o fotógrafo dirige a Ranger para o hospital, onde foram medicados. A perna de Romão mereceu atenção especial, pois tivera de ser suturada com vinte e cinco pontos. Ficaram no hospital até a manhã seguinte.

De volta ao hotel, Duval inspecionou seu equipamento fotográfico. Desanimado, constatou que a faísca elétrica havia não só retorcido e chamuscado as partes não metálicas, mas também inutilizara, todos os filmes e chips, devido à fortíssima energia magnética que por eles passara,. As partes eletrônicas das máquinas estavam todas queimadas. Não aproveitou um clique e sequer um centímetro de filme usado na documentação daquele trágico local..

Quando, mais tarde, relatou ao guia o que acontecera com suas máquinas e filmes, o homem, na sua sábia simplicidade, tentou explicar:

— Foi a maldição do mameluco. Num queria que a história fosse espalhada. O índio velho na estrada bem que avisou. Acho melhor o senhor esquecê que teve lá. Por mim, num sei de nada.

ANTÔNIO GOBBO —

Belo Horizonte, 12 de maio de 2005

Conto # 343 da série Milistórias —

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/07/2014
Reeditado em 01/08/2014
Código do texto: T4904647
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