281-TARZAN O INGÊNUO -

D’Arnot soltou um suspiro de alívio ao receber a mensagem da Agência de Detetives Pinkerton, de Nova York:

INFORMAMOS DESIGNIAÇÃO

AGENTE THOMAS BLAIR

PARA MISSÃO SOLICITADA.

O oficial francês confiava em Tarzan e no que lhe ensinara, durante os poucos meses de convívio. O rapaz tinha uma inteligência acima da média e aprendia rápido. Orgulhava-se de ter ensinado ao selvagem gentleman não só o idioma francês, como falar o inglês, que, paradoxalmente, Tarzan sabia ler e escrever, sem jamais ter ouvido uma palavra do idioma de seus antepassados genealógicos.

Tarzan — aliás, Lorde Greystoke — insistira em viajar para a América, ansioso por rever Jane. Não aguardara o resultado dos exames datiloscópicos que confirmariam sua ascendência inglesa, incluindo-o na linhagem direta da família Greystoke, da qual era o representante legítimo atual.

O motivo da contratação de um detetive da agência de segurança americana constituía apenas uma precaução, a fim de livrar o jovem, de apenas vinte e dois anos, dos perigos de sua permanência no novo país. D'Arnot receava que a inexperiência de seu amigo do “american way of life” pudesse colocar em risco a sua própria pessoa e a missão que lhe fora incumbida.

O tesouro encontrado pelo Professor Porter fora vendido por D'Arnot, e o produto resultante, representado por um documento conversível imediatamente em dólares, fora confiado a Tarzan para ser entregue ao excêntrico pai de Miss Porter. Essa missão preocupava D'Arnot, pois Tarzan, rapaz de elevados princípios morais, era, contudo, muito ingênuo com relação à malícia das pessoas.

Em Nova York, Thomas Blair (ou simplesmente Tomb, como era conhecido e gostava de ser chamado) colocou-se em campo tão logo designado como observador do jovem lorde inglês. Antes mesmo da chegada de John C. Tarzan, havia procurado informações sobre a família que o hospedaria.

O professor Archimedes Porter era um excêntrico catedrático aposentado que estivera recentemente na África, com sua filha Jane e o secretário Mister Phillander, numa viagem à procura de um tesouro. Aventura desastrada da qual nada conseguira senão ficar insolvente devido aos grandes gastos com a expedição. Expedição esta financiada por Robert Canler, conhecido escroque de Baltimore, que tinha em mente casar-se com Jane.

Essa bonita loirinha era, como todas as jovens americanas do início do século vinte, leal ao pai e sabia das implicações do fracasso da expedição na África. A aventura, que resultara no retumbante fracasso, narrada pelo biógrafo de Tarzan, teve o mérito de fazer com que Jane conhecesse o selvagem branco e por ele passasse a ter um estranho sentimento de admiração e amizade, repulsa e ao mesmo tempo, (por alguns momentos) de amor.

Tomb tinha um extenso e detalhado dossiê sobre os Porters. Por isso sabia que, de volta a Baltimore, Jane voltou a ser a moça cujos sentimentos balançavam entre a lealdade ao pai — e conseqüente cumprimento do compromisso com Canler — e as lembranças dos melhores momentos passados na selva, com Tarzan. Sem falar no assédio feito continuadamente por William Clayton, outro jovem inglês, primo de Tarzan e herdeiro presuntivo do título de Lorde Greystoke.

O detetive estava no cais de Nova York, ao aportar o transatlântico “Convair II”, o mais moderno de sua classe na primeira década do Século XX. Não se impressionou com a magnificência do navio, porém não teve como esconder sua admiração pelo homem que iria vigiar. Não teve a menor dúvida de que o rapaz de quase dois metros de altura, porte esbelto, tez morena, longos cabelos negros, era o seu cliente, Mister John Clayton Tarzan, mais conhecido por Tarzan, graças às descrições magníficas feitas pelo romancista Edgar Rice Burroughs, que se encarregara de divulgar, na América, a vida desse intrépido inglês.

Observou-o descendo da rampa. A desenvoltura não traía sua criação, pois vivera até poucos meses atrás nas densas floresta africanas, onde crescera entre orangotangos.

— Well... — pensou Tomb, ao acompanhar o rapaz a boa distância — Well... esse moço pode ser tudo menos um selvagem criado na jângal.

O detetive exerceu a mais estrita vigilância sobre Tarzan. Perito em disfarces e em abordagens às pessoas sob os mais diversos pretextos, não o perdeu de vista por um só momento. De Nova York seguiu-o até Baltimore, por trem, e até à propriedade do Professor Porter: uma linda granja situada além da cidade, um aprazível sítio no meio de densa mataria intocada. Na estação da estrada de ferro tivera notícias — por um colega da Pinkerton — de que um grande incêndio na região ameaçava a granja do professor Porter.

— O incêndio é criminoso. Foi ateado propositadamente. Alguém está interessado em destruir a granja. — Foi a informação passada sub-repticiamente pelo colega de investigações, que lhe passou também a direção do carro no qual seguiria Tarzan.

Ao longe podiam ser vistos, elevando-se da colina, rolos de fumaça que sujavam o límpido céu azul sobre a histórica cidade. Na vigia constante, Tomb guardava uma apreciável distância entre seu carro e o de Tarzan. Em um trecho da estrada tomado totalmente pela fumaça, o calor era insuportável e o detetive quase perde Tarzan de vista. Ao chegar à granja, estacionou o veículo à sombra de um grupo de árvores, pois o incêndio estava longe e o vento soprava em direção oposta, levando as labaredas para o outro lado da colina. Correu para o bangalô e se colocou em posição, a fim de observar, escondido entre moitas de arbustos, o interior da casa.

A chegada de Tarzan foi recebida com surpresa por todos: o professor Porter, mister Phillander, a prestimosa serviçal Esmeralda, e até William Clayton, que visitava os Porters, todos se assustaram com a chegada do homem que pensavam estar na África, entre macacos. Tarzan correu os olhos e não viu a moça.

— Onde está Jane?

— Saiu há meia hora. — Esmeralda informou. — Foi dar um passeio na mata.

— Vocês estão loucos? O fogo está por toda a parte. Jane corre perigo!

O gigante branco não titubeou: saiu correndo — e Tomb no seu encalço — rumo às primeiras árvores que circundavam o bangalô. Tomb admirou-se ao ver que o jovem, sempre correndo, se desvencilhava das roupas e calçados. Assustado, viu quando galgou as árvores com a agilidade de um macaco.

— Hell! — exclamou, ao perder de vista Tarzan, mergulhado na densa folhagem dos galhos mis altos.

Quase ao mesmo tempo, os que estavam na casa abandonaram-na, aboletando-se no espaçoso carro de William Clayton.

— Que gente estranha! Deixam a granja, fugindo do incêndio e abandonam a moça e Tarzan no meio do incêndio. — Fala o detetive com ele mesmo.

No meio da fumaça que lhe ardia nos olhos, Tarzan localiza Jane e em gestos urgentes toma-a em seus braços e a carrega de volta para casa. Usa o meio mais veloz que conhece para vencer as distâncias: corre pelos galhos das árvores, servindo-se da cipoalha para saltar entre as árvores. Jane está inconsciente. Ao chegar ao bangalô, não encontra vivalma. Veste as roupas. Reanima a jovem com panos úmidos sobre sua testa e faces; coloca-a no carro e dispara pela estrada por onde viera. Tomb o segue até chegarem a uma pequena localidade, Janesville, situada entre Baltimore e a granja.

Adentrando-se pela única rua da vila, Tarzan divisa o carro de William, e estaciona logo atrás. Jane já está animada e responde às perguntas de Tarzan.

— Que estava fazendo dentro da floresta incendiada?

— Queria morrer. Não quero me casar com mister Canler apenas por uma obrigação assumida por meu pai. Mas devo...

— Mas você não o ama! = interrompe o jovem.

— Sim. Mas como papai não pode pagar a dívida contraída, o casamento com ele é inevitável. E ele está exigindo isso imediatamente.

Tarzan se cala, Não entende dessas sutilezas das pessoas civilizadas. Estão defronte a uma pequena estalagem. Ajuda Jane a descer do veículo e, de braços dados, ambos entram no edifício. São recebidos com entusiasmo pelo grupo. Entre cumprimentos e explicações, vem à tona o motivo daquela reunião na granja.

— Aguardamos mister Canler para uma conversa séria e definitiva. — Explica Phillander, o secretário do Professor Porter.

— E por falar no diabo... — diz, entre os dentes, William Clayton, ao observar, através da janela, a chegada de seu rival.

Canler adentra-se no salão da estalagem, esbaforido. Vem acompanhado de outras pessoas.

— Este é o reverendo Tonsley, Jane. E estas pessoas (entre as quais encontra-se o detetive Tomb) serão as testemunhas da cerimônia.

Todos estão surpresos. Jane, como sempre, está indecisa. Ali estão os homens de maior importância em sua vida. Seu pai, a quem devota amor e fidelidade. William Clayton, futuro Lorde Greystoke, pretendente de há muito tempo, que a corteja com insistência. Tarzan, um selvagem sem eira nem beira, por quem está (agora tem certeza) realmente apaixonada. Ah! Sim, e Canler. O insidioso Roberto Canler, que exige sua mão em pagamento da dívida contraída pelo pai.

Ao notar a indecisão de Jane, Canler se exaspera. Deseja a realização do casamento naquele momento. Clayton está ansioso pela resposta de Jane. Tarzan mostra-se indiferente, pois Jane lhe havia deixado claro que jamais poderia ser feliz casando-se com um selvagem africano. O professor Porter também aguarda o casamento da filha com Canler, a fim resolver definitivamente seus problemas financeiros.

— Não podemos aguardar alguns dias? Agora estou tão exausta, quase morri no incêndio e...

Canler fica zangado. Toma Jane pelo braço e a conduz para perto do reverendo. Tarzan lê o desespero nos olhos da moça. Sem querer, agindo mais por instinto — na defesa de um fraco animal sendo coagido pela força de outro mais forte — segura Canler pelo braço e pelo pescoço, elevando-o alguns centímetros do solo. Jane se volta e vê no rosto de Tarzan toda a fúria de um animal ferido — profundamente ferido em seus sentimentos — e teme pela vida de Canler, como também pela situação de Tarzan, se este completa o gesto que levará o outro à morte.

— Por favor, solte-o. — Ela pede.

Tarzan finge que não a ouve, mantendo Canler sufocado.

— Pelo meu amor. — Suplica a moça.

Tarzan afrouxa o aperto. Troca curtas frases com Jane e pergunta a Canler, que ainda se debate sob as fortes manoplas do gigante:

— Você libera Jane de sua promessa? É este o preço de sua vida.

Canler acena com a cabeça, em sinal positivo. Tarzan libera o pretenso noivo. Mas o professor sai em sua defesa. Dirigindo-se a Tarzan, o recrimina:

— Você arruinou minha vida! Agora, sou um homem falido, pois ele — aponta para Canler — não me perdoará um só centavo do que lhe devo.

— Ao contrário. — Tarzan entrega um envelope ao professor. — Aqui está o produto da venda do tesouro que o senhor tinha como perdido. Foi reencontrado e vendido por D’Arnot. Com isto poderá não só pagar a dívida como proporcionar uma vida de milionária à sua filha Jane.

Assim dizendo, retira-se inopinadamente da estalagem. Sente-se aborrecido com tudo aquilo. Com a manipulação de pessoas e de seus sentimentos, com as encenações e a hipocrisia das pessoas ditas civilizadas. Está decepcionado principalmente com Jane, a quem ama e que, tem certeza, corresponde ao seu amor.

Dirige-se à estação da estrada de ferro de Baltimore, onde tomará o trem da tarde para Nova York. Tomb o segue, pois agora sabe como o rapaz é impulsivo e capaz de fazer coisas jamais imagináveis. Tarzan aguarda com paciência a chegada do trem expresso, quando chega Jane. Sente que, finalmente, vem para aceitar seu pedido.

— Quer se casar comigo?

Após confirmar, mais uma vez, seu grande amor, aguarda a resposta da moça.

— Vim apenas me despedir, pois sei que você voltará à sua vida na selva. — Friamente, ela põe um ponto final em toda a relação de ambos.

Ainda em estado de choque, Tarzan recebe do chefe da estação um envelope.

— Telegrama para o sr. John C. Tarzan. Estou certo de que é o senhor, ok?

Tarzan abre o envelope, lê a mensagem, que amassa e joga ao chão. Mostrando-se mais irado que nunca, dirige-se, sem despedir de Jane, ao trem que se aproxima.

Tomb assiste, intrigado, a esse incompreensível diálogo e observa o rosto de Tarzan ao ler a mensagem. A cicatriz que corre em sua testa tornara-se rubra e os olhos faíscaram. Antes de embarcar na mesma composição, no último vagão de passageiros, o detetive abaixa-se e apanha a bolinha de papel amassado, a mensagem que Tarzan jogara fora. Lê o telegrama:

“IMPRESSÕES DIGITAIS PROVAM

VOCÊ É LORDE GREYSTOKE

FELICITAÇÕES D’ARNOT”

ANTONIO ROQUE GOBBO-

BELO HORIZONTE, 27.ABRIL.2004

CONTO # 280 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/07/2014
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