199 - A CIDADE PERDIDA DE XINGUPARÁ
— Cuidado com essas malas! Não quebrem nada! — O aviso é dado por um passageiro alto, magro, de faces encovadas, cabelos ralos, bigode negro no rosto bem barbeado. Comanda o desembarque da sua bagagem com a desenvoltura de um militar.
O movimento no cais do porto do Rio de Janeiro é intenso, com a chegada de um navio britânico, que trazia o famoso explorador Coronel Fawcett. Alguns jornalistas se adiantaram para conversar com o aventureiro. O súdito britânico, acostumado a dar ordens e ser obedecido, não prestou atenção ao grupo de homens elegantes, bem vestidos, chapéus palhetas e botinas lustrosas. Após responder laconicamente a algumas perguntas dos jornalistas, voltou a atenção para os amigos que o acompanhavam nesta expedição.
— Prestem atenção, não confiem nos carregadores, não deixem sumir nada!
— Fica tranqüilo, pai, estamos atentos.
Acompanhavam o coronel o seu filho Jack e Raleigh, colega de Jack e que viajava pela primeira vez pela América do Sul. Corria o ano de 1920 e era a terceira vez que o Coronel iniciava uma expedição na América do Sul. Desta vez, com o patrocínio de um consórcio de jornais norte-americanos, vinha bem equipado e com direção precisa do roteiro a ser seguido.
O Coronel estava começando mais uma expedição por terras sul-americanas. Percy Fawcett nascera na Inglaterra em 1867. Por mais de 20 anos prestou serviços ao Exército Britânico, como engenheiro, geógrafo e explorador. Após o que, deixou o Exército para dedicar-se ao que mais desejava ser: um explorador de lugares desconhecidos. Sua primeira experiência fora quando estivera engajado na expedição patrocinada pela Real Sociedade Geográfica, de Londres, destinada a verificar os limites entre Peru, Brasil e Bolívia. Percorreu, entre 1906 e 1910, toda a região andina nas proximidades do Lago Titicaca, e descera a encosta leste da cordilheira até o início da planície conhecida como Pantanal. Quando a expedição emergiu das selvas, em 1910, Fawcett era tarimbado em como sobreviver e superar os desafios da selva tropical.
Entre 1911 e 1914, percorreu, por sua própria conta e risco, as terras da Bolívia, Paraguai e Brasil, na região do Pantanal, Planalto Mato-grossense e adentrando-se pelo sul da Floresta Amazônica. Estabeleceu contatos com tribos hostis e até com canibais, habitantes daquela vasta porção desconhecida e misteriosa do continente sul-americano.
As lendas de cidades de ouro, eldorados, cidades perdidas ou civilizações desaparecidas era a mística que norteava os roteiros de os todos que se aventuravam pelas florestas e regiões misteriosas, selvagens, desconhecidas da América do Sul. Embora estabelecesse finalidades práticas para suas expedições, e propalasse o ceticismo a respeito das lendas, Fawcett tinha, sim, informações confiáveis sobre tesouros escondidos ou abandonados em locais recônditos, na selva, nas montanhas, em ilhas fluviais, enfim, em regiões não mapeadas e jamais vistas por exploradores brancos.
Nas expedições anteriores coletara muitas informações e depoimentos. Na Bolívia fora presenteado com uma estatueta de basalto negro, com mais ou menos 25 centímetros de altura, de origem misteriosa. Poderia ser um indício de alguma civilização remota na América do Sul. Alguém lhe falou em submeter a estatueta a um exame por um psicômetro.
— Psicômetro? — Indagou.
— Sim. É uma pessoa que consegue descobrir a origem de um objeto, apenas segurando-o em suas mãos.
Fawcett era um homem de curiosidade ilimitada e absolutamente sem preconceitos. Levou a estatueta a ser examinada pelo especialista.
— Sem nenhuma dúvida — explicou o psicômetro — esta estatueta provém do continente perdido de Atlântida. Evidentemente, foi levada para o interior do continente americano por Atlantes, que, fugindo da destruição, sobreviveram nas selvas da Amazônia, onde construíram uma grande cidade.
— Sabe o nome dessa cidade ou dessa região?
O psicômetro não teve como informar. Fawcett deu como certa a existência dessa cidade perdida, e por motivos práticos, deu-lhe o nome de “Z”.
De índios que se tornaram seus amigos em expedições anteriores soubera de ruínas de uma cidade cujas construções teriam sido feitas de pedras brilhantes que refulgiam sob o sol tropical como milhares de estrelas. A cidade perdida ficaria às margens de um grande lago, no topo de uma enorme queda-d’água. Diziam que “antes da gigantesca cascata, o rio alarga-se para formar o grande lago. Em um plácido remanso do rio, abaixo da cascata, existe a figura de um homem escavada em rocha branca e brilhante. Esta estátua move-se de acordo com a força da corrente, para frente e para trás”. Talvez seja uma coluna de quartzo ou cristal, deduzia Fawcett.
O problema é que, das histórias que ouvira, nenhuma dizia exatamente onde ficava esta cidade perdida. Ninguém sabia informar o local exato do sítio maravilhoso. A informação mais acurada — ou menos imprecisa — era de que esta cidade estaria entre o Rio São Francisco e o Rio Xingu. Uma área de mais de 1.600 quilômetros quadrados.
Nessa expedição, motivada por essas lendas e boatos, Fawcett tinha uma rota prevista: saindo do Rio, dirigiu-se a S. Paulo, atravessando o estado, rumo ao noroeste. Chegaram à pequena cidade de Cuiabá numa tarde ensolarada e quente. Durante todo o dia seguinte os três homens andaram pelas ruas da cidade, procurando guias, recrutando pessoal e comprando animais para a formação da coluna que adentraria pela região mais selvagem do continente.
À noite, cansados e acalorados, sentaram-se displicentemente em torno de uma mesa de um bar, na calçada, sentindo o frescor da tarde chegar com a brisa noturna.
— Então, pai, que falta para partirmos?
— Muito pouco, Jack. Amanhã compraremos mantimentos e algum equipamento que deixei para adquirir aqui, coisa de pequena monta.
— Os guias já sabem para onde nos dirigimos? — A pergunta era de Raleigh, que se interessava mais pelo aspecto aventureiro da expedição.
— Não. Não convém que eles saibam de tudo. Durante o percurso é que...
A resposta do Coronel é interrompida pela chegada de um homem corpulento, mulato forte, cabeça raspada e maneiras grosseiras.
— Quero falar com o Coronel.
— Pode falar, sou eu.
— É sobre a cidade perdida. — O mulato deu ênfase às últimas palavras, querendo impressionar o explorador.
— Well, well…. Eis de novo a mesma história. Já ouvi essa balela muitas e muitas vezes.— Um sorriso de desdém abre-se no rosto fino do Coronel. — Não, my friend, não estou interessado.
— I have a map. — O mulato insiste, brandindo na frente dos três um papel dobrado.
Surpreso mais pelas palavras ditas em inglês do que pela amostragem do mapa, o Coronel manda o mulato sentar-se.
— Seat down. — Com o pé, puxa uma cadeira para a mesa, na qual o estranho senta-se com todo o peso de seu corpo forte. — Como é seu nome? E que papel é esse? Um mapa?
— Obrigado, Coronel. Meu nome é Salustiano, me chamam de Salu. Isto aqui é o mapa para chegar à cidade perdida de Xingupará. — Olhando desconfiado para os dois moços, entrega o mapa ao Coronel.
— Você me conhece? — Indaga o explorador.
— Sim, já ouvi falar do senhor. Quando soube que estrangeiros procuravam guias, tive a certeza, pensei: é esse inglês que vai descobrir a cidade perdida, tenho certeza.
— Esses dois são meus companheiros de expedição. Jack, meu filho, e Raleigh. Se você confia em mim, deve confiar neles também. — O coronel apresentou os moços, mas o mulato ignorou a apresentação.
O mapa foi desdobrado sobre a mesa. O que a principio parecera ser um papel oleado era, na realidade, uma fina pelica, couro de bode ou carneiro, bem trabalhado. Um pedaço de couro de uns quarenta centímetros de lado sobre o qual linhas pretas corriam de um estremo a outro. Salustiano chegou seu corpanzil mais para perto de Fawcett, a fim de lhe explicar o traçado do mapa.
Afeito a mapas e roteiros muito mais toscos do que o que ora manuseava, o Coronel longo compreendeu o trajeto indicado. No canto superior esquerdo, um pequeno “x” indicava o final de uma linha grossa, que corria todo o documento.
— Essa marca — apontando para o “x”, explicou o mulato — é o local da Cidade Perdida. — Toda vez que falava na “cidade perdida”, reforçava as palavras e olhava de soslaio, a ver se estava sendo observado.
Fawcett notou logo que o roteiro do mapa era coincidente, em quase toda a extensão, com a rota que ele mesmo havia pré-determinado para sua própria expedição. Mais por curiosidade que por interesse, perguntou ao mulato ao seu lado:
— E o que ganho com isso?
— A gente reparte tudo o que achar.
— Mas já estou com minha tropa organizada. Não dá para incluir você.
— Tenho um cavalo, duas bestas e posso providenciar meu próprio arranchamento. Vou com o senhor sem lhe pesar na manutenção.
O Coronel tinha uma intuição apurada para saber quem lhe dizia a verdade. Por isso, conseguia os melhores guias, gente de confiança e nunca tivera problemas de relacionamento com seu pessoal. O mulato brasileiro inspirou-lhe confiança. Quanto ao mapa...Da mesma forma que parece ser verdadeiro, pode ser falso, ninguém tem certeza de nada, pensou. Parecia ser muito antigo. Talvez tivesse mais de cem anos. Avaliou rapidamente os prós e os contras de tal associação e começou a negociar.
— Se chegarmos a um acordo, o mapa fica comigo. E você pode trazer só o que conseguir carregar em seus três animais. Nada mais.
Salustiano era caboclo afeito a tratos e distratos. Arranjos, acordos, tudo o que fosse de palavra, só na palavra (mesmo porque era analfabeto), contratava e cumpria o trato. Também não demorava nas decisões.
— Negócio feito.
Examinando mais uma vez o mapa, o inglês tirou do bolso uma lapiseira de metal e remarcou o ponto “x”, traçando por cima um “Z”, como que confirmando o local da misteriosa Cidade Perdida.
De Cuiabá, Fawcett e sua companhia partiram direto rumo ao norte. A caravana compunha-se de oito homens: Coronel, Jack, Raleigh, Salu, dois guias mestiços, meio índios; e dois tropeiros, homens para cuidar dos animais, do acampamento, cozinhar e manter as coisas em ordem. A tropa era constituída de onze animais: oito de Fawcett e três de Salustiano.
À medida que avançava no seu roteiro, que em muito coincidia com o mapa de Salu, Fawcett ia se deparando com todas as dificuldades já conhecidas pelas experiências anteriores, mas que constituíam surpresa e desconforto para Jack e Raleigh. As ondas de mosquitos que atacavam durante o dia, principalmente ao entardecer. Os sinais e encontros com animais selvagens: onças, porcos-do-mato, jacarés, cobras, que Fawcett evitava matar, o que nem sempre era possível. As piranhas infestavam os rios e era um perigo sempre que usavam barcos, pirogas ou canoas. As tribos se mostravam agressivas, pois alguns contatos com os brancos tinham sido desastrosos para os selvagens. Os animais da expedição sentiam os longos estirões a que Fawcett os submetia.
Seguiram determinados para o norte, aproveitando, quando possível, os cursos de afluentes do rio Xingu. Passaram pelos contrafortes da Serra Formosa e subiram mais. Chegaram ao Acampamento do Cavalo Morto, local já conhecido do Coronel. Ali, em uma expedição anterior, perdera um cavalo. No local, agora, se viam os ossos brancos do animal morto há tantos anos. .
Ali acampados, Fawcett escreveu à esposa: ...”Aqui estamos no Acampamento do Cavalo Morto — Lat. 11o.43’ Sul e 54o.35’ Long.Oeste — exatamente no local onde meu cavalo morreu em 1920...Podemos tomar banho, mas os insetos são insuportáveis. Não obstante, o tempo está bom: faz muito frio à noite, as manhãs são frescas. O calor e os insetos chegam por volta do meio-dia e daí até escurecer, o acampamento vira um inferno...Raleigh ainda está com um curativo na perna, mas continuará conosco, não voltará sozinho.” A carta datava de 29 de maio de 1925.
Fawcett não dá importância alguma à companhia de Salustiano e seus animais. Tanto assim, que nada menciona em sua correspondência a respeito. Já a perna machucada de Raleigh era muito mais grave do que o coronel relatava. O moço havia despencado por uma ribanceira, coisa de uns quatro ou cinco metros, no fundo do qual sua perna fora perfurada por uma ponta de madeira. Os medicamentos disponíveis na expedição foram todos usados, a febre não passava e agora estavam usando os chás e poções feitos por um dos tropeiros, que se dizia “raizeiro”, isto é, conhecedor das propriedades medicinais das raízes, folhas e cascas das plantas da floresta. Melhorara um pouco, sim, mas caminhava com dificuldade, e deixava-se ficar a maior pare do tempo deitado, queixando-se de dores.
A tranqüilidade que tenta passar à esposa é aparente. Desde o encontro com um grupo de índios cariris, os guias e tropeiros estão assustados. Na ocasião, os índios, anteriormente pacíficos e mansos, como o coronel os conhecera, mostraram-se agressivos e proibiam a passagem da caravana por suas terras. A custo de muita conversa e barganha, a permissão foi dada. Nas negociações foram entregues dois cavalos e algumas bugigangas. As armas de fogo dos brancos eram tão temidas pelos índios que sequer cogitaram de requisitar algumas.
Os quatro contratados também se mostram temerosos à medida que se aproximam da região onde se pensa estar localizada a cidade perdida. A superstição e o temor pelas coisas misteriosas estão entranhados nos espíritos dos homens simples.
O Acampamento do Cavalo Morto é o ponto mais ao norte alcançado por Fawcett em expedições anteriores.
— Daqui pra frente, vamos pela intuição. E pelo mapa de Salu. Esse mapa me inspira confiança, vamos seguir o seu roteiro. — O coronel tenta acalmar os espíritos, mostrando-se bem disposto, sempre animado. — Teremos grandes trechos de caminhadas a pé. Manteremos este acampamento. Vou com Jack e Salu. Raleigh permanece aqui, com os tropeiros e os guias. Levaremos apenas duas bestas com mantimentos e uma barraca pequena.
— Faço questão de levar meus animais. — Salustiano insiste.
— Very well. Faça como lhe aprouver, conquanto que não retarde nossa marcha.
Salustiano tinha seus planos. Quando achar o tesouro, encho as bruacas dos meus animais e volto sozinho, não vou esperar por ninguém. Já sei o caminho de volta e os índios são fáceis de serem engambelados.
Fawcett calculava que dentro de uma semana chegariam ao ponto indicado pelo mapa. Puseram-se em marcha com grande disposição e entusiasmados, após um repouso preparatório de quatro dias no Acampamento do Cavalo Morto. Desceram em uma tosca mas forte jangada pelo afluente do rio Xingu, durante dois dias, até o encontro com o caudaloso rio. Aportaram numa ponta de areia, de onde partiram para oeste, rumo à serraria que se estendia de norte a sul. No segundo dia de caminhada, vislumbraram uma alta cachoeira.
— Veja, Jack! É a cachoeira que procuramos! — Passando o binóculo para o filho, o coronel aponta para a magnífica queda d’água.
Agora, de rumo tomado, a caminhada rende. O terreno é fácil: chegam a um altiplano de campos e vegetação rala, altas árvores isoladas, muitas palmeiras. As palmeiras são como que oásis: cada touceira ou grupo delas indica uma nascente, uma fonte de água fresca.. Chegam ao pé da alta cachoeira. Despencando de uma altura de uns cinqüenta metros, o rio desmancha-se numa cortina d’água. Açoitando as pedras da montanha, abre um vão largo, aparentemente inacessível. Ao chegar ao pé da montanha, a cascata ribomba e a água desaparece na névoa que ela mesma cria. O espetáculo é soberbo. Abaixo das pedras e penhas o rio retoma o curso, formando uma lagoa plácida de águas cristalinas. No centro do lago, uma coluna de brilhantes pedras emerge, com um farol de muitas luzes, emitindo raios multicoloridos em todas as direções.
— É aqui mesmo! Ai está o “gigante de luz” que vigia a cidade perdida. — Salustiano se entusiasma, ao lembrar-se das referências feitas a um “vigia”, um guardião do local secreto. Corre para entrar na lagoa, no que é seguro por Fawcett.
— Stop! A lagoa pode ter piranhas!
Bem em tempo. As terríveis habitantes dos rios e lagos da Amazônia estão ali, aos milhares. Tão somente ao pressentir a presença dos homens e animais, já saltam acima da superfície, numa demonstração ferocidade inaudita. Os homens observam, estupefatos, que algumas são vítimas da voracidade do cardume: saltam, e ao caírem na água, são dilaceradas pelas companheiras. Logo, a placidez e a beleza do pequeno lago estão transformadas num enorme poço de sangue e das piranhas que se debatem, num processo inacreditável de autofagia.
— Vamos procurar um jeito de subir até o topo da cachoeira. — Fawcett grita por entre o estrondo das águas. Estendendo a vista de um lado a outro da muralha de granito, entrevê uma estreita senda, bem ao sul, seguramente um caminho para o alto. Para lá se dirigem. Verificam que se trata de um caminho antigo, com degraus entalhados na rocha, indícios de uma passagem muito usada. É um percurso apropriado tanto para os homens quanto para os animais: as mulas sobem sem dificuldade. A trilha fora protegida por um calçamento, de tal forma que permanece inalterada, apenas algumas gramíneas cresceram nos interstícios das pedras. Ao longo da subida, espaçados sistematicamente, pedras em forma de grandes cunhas ou estacas, com gravações, pareciam marcar o percurso.
— Evidentemente, são marcos de distâncias. O povo que construiu essa escada tinha noção de medidas e certamente o que vemos gravado são símbolos de uma escrita. — O Coronel constata, com satisfação, que estão no caminho certo. — Lá em cima está a cidade que procuramos.
Dizer que ficaram surpresos aos chegarem ao topo do caminho escavado na rocha, é muito pouco. Fawcett, afeito aos mais bizarros encontros e achados, quedou-se de boca aberta. Literalmente sem palavras. Jack emitia urros e gritos de alegria, correndo e pulando de um lado para o outro. Salustiano ajoelhou-se e se pôs a murmurar uma ladainha que só ele entendia.
À frente dos três estava um lago que se entendia por alguns quilômetros. As margens de areia cristalina e a água plácida do lago fulguravam e refletiam os raios do sol. Doía aos olhos tanto esplendor.
— É uma cidade de cristal! — Gritou Jack.
Aparando a claridade com as mãos em concha sobre os olhos, o Coronel tentava desvendar as figuras que o resplendor escondia. Aos poucos, foi descobrindo as diversas formas debaixo dos reflexos: torres, minaretes, abóbadas, telhados inclinados, agulhas e colunas, enfim, uma diversidade de formas arquitetônicas que constituíam a fabulosa “cidade perdida”. Ruínas, na verdade, mas tão bem conservadas, que falavam com clareza da capacidade e inteligência dos construtores.
— Vamos, vamos ver de perto! — Salustiano levanta-se de sua posição de prece e se dispõe a contornar o lago, indo na direção do sítio de brilho inusitado. Puxa seu cavalo e as duas mulas, em passo picado. Fawcett e o filho demoram-se um pouco mais, examinando toda a região e arranjando a carga nos lombos de seus animais. Maravilhados com o espetáculo de luz e cor.
Enfim, tomam a direção seguida por Salustiano, que vai por um caminho batido, calçado, coberto por fina areia. Cerca de duzentos metros separam o mulato de Jack e o pai. O caminho se eleva ao longo da margem do lago. As marolas batem no barranco — chap, chap, chap.
— Olhe pra baixo, Jack. Veja como as águas estão cheias de peixe.
— Piranhas!? — exclama o moço, ao ver os reflexos alaranjados e violáceos das escamas.
— Certainly! Cuidado para não escorregar....
Antes mesmo de terminar o aviso, vêem o desastre iminente com Salustiano: as patas de seu cavalo deslizam pelas lápides lisas do caminho e o animal cai ribanceira abaixo, escorregando inapelavelmente para o lago. As rédeas estão emaranhadas nas mãos do mulato, que segue o animal em sua queda.
Fawcett e Jack correm para o local. As duas bestas, paradas no caminho, impedem por um momento que os dois cheguem a tempo de salvar Salustiano. As águas tingem-se de vermelho, enquanto o cavalo dá coices a esmo, contra o atacante desconhecido. Salustiano tenta, desesperadamente, desembaraçar-se das rédeas. Grita de dor e de pavor, pois já está sendo mordido pelas centenas, milhares de piranhas. Inexoravelmente, é arrastado para o fundo. Em minutos, homem e animal desaparecem da superfície, transformada num lençol rubro de sangue.
— My God! Oh, my God! — Jack grita, levando as mãos ao rosto, pretendendo não ver o terrível desfecho da tragédia.
Abalados pela morte de Salustiano, pai e filho se põem a caminhar na direção da fulguração. O calor do entardecer, a fulguração constante e o cansaço do dia pesam sobre os dois aventureiros. Chegam às ruínas desanimados e sem entusiasmo.
— Vamos descansar um pouco à sombra dessas paredes. Mais tarde continuamos.
Tiram a carga e os arreios dos animais, que ficam soltos para pastar o capim ralo que cresce entre as ruínas. Os dois se acomodam em um lugar fresco e logo adormecem.
Quando acordam, o sol já está se pondo. Rapidamente, como sói acontecer nos trópicos, a noite cai, mergulhando a região na noite estrelada mas, ainda assim, escura. As ruínas, esplendorosas, radiantes, fulgurantes durante o dia, transformam-se num lugar lúgubre, sem vida, imersa num silêncio profundo e triste. Nenhum pio, nenhum som além dos ruídos feitos pelos cavalos pastando: batem as patas no chão e bafejam de tempos em tempos.
— Que lugar tétrico. Me mete medo. — Jack reclama.
— Também a mim. Vamos armar a barraca. — Depois do que, ingerem uma parca refeição e preparam-se para passar a noite.
No dia seguinte, acordam quando o sol, refletido nas ruínas, inunda tudo com uma claridade insuportável. Levantam-se e, ainda estremunhados, mastigam alguma coisa do farnel. Num acordo tácito, põem-se a caminhar entre as ruínas.
— Eis a razão de tanto brilho. As construções foram feitas com rochas de quartzo. O material por certo mais abundante na região.
— Talvez o único material de construção disponível.
— Certamente. Mas é difícil pensar como conseguiam suportar tanta claridade, durante o dia. Chega a ferir os olhos.
— Mais um mistério para ser acrescentado a essa misteriosa cidade morta.
— De qualquer forma, não se trata de nenhum tesouro. Esse cristal tem pouco valor. Salustiano teria as bruacas cheias de pedras sem valor.
— Sure! Isto aqui só tem interesse arqueológico.
— Estranho que não se encontrem vestígios de pessoas ou de animais.
— A cidade foi abandonada. Talvez um período prolongado de fome tenha obrigado os habitantes a abandonar a cidade.
Os dois aventureiros caminharam por toda a manhã, vasculhando tudo o que lhes despertava a atenção. Numa praça, descobriram construções maiores.
— Aqui temos prédios administrativos e religiosos. Salas grandes. Aquelas pedras ali são, com certeza, restos de um altar.
Por mais que procurassem, não encontraram um objeto que pudesse dar a pista do tipo de civilização que erguera aquela cidade.
— Nem mesmo um cemitério encontramos. Não é estranho?
— Sim. Mas pense nisso: aquela pirâmide na praça, com o topo quase vitrificado pelo calor, certamente foi o local de cremação de corpos. Os habitantes dessa cidade não enterravam seus mortos, queimavam-nos.
— Um ritual religioso?
— Quase certo que sim.
Não tinham muito a ver. Na manhã e tarde daquele único dia que passaram entre as ruínas da cidade perdida, viram, observaram e anotaram tudo o que tinha para ser visto e registrado.
No dia seguinte, descansados de mais uma noite de sono tranqüilo, os animais repousados e de pança cheia, voltaram pelo caminho que vieram. Uma pancada de chuva tropical molhou homens e animais até os ossos.
— É o início de uma pequena “invernada”. — Explicou o Coronel. — Aqui nos trópicos não tem inverno nem verão. É o tempo da seca e o tempo das chuvas. Quando chove muito, chamam de “invernada”.
A curta estação das chuvas despejava muita água por sobre a floresta, engrossando os rios. Ao chegarem no local onde haviam deixado a jangada, não encontraram sequer a barra de areia: o rio subira e levara tudo. Decidiram seguir ao longo do rio, de margens arenosas. Ora cavalgando, ora caminhando, o percurso de volta lhes tomou quinze dias de caminhada firme, apesar das pancadas ocasionais de chuvas pesadas.
De surpresa em surpresa, de tragédia em tragédia, a expedição ia chegando ao seu final. A surpresa maior tiveram quando chegaram ao Acampamento do Cavalo Morto. Ao se aproximarem, notaram um silêncio inusitado no sítio. Apenas uma barraca permanecia armada, ao invés das três que abrigavam todos os homens. A fogueira, que devia ser mantida sempre acesa, estava apagada.
— Jack, cuidado! Está tudo muito quieto! Pode ser uma emboscada! — Sussurrando, o coronel apeou de seu cavalo. — Você fica aqui. Quieto. Segura os cavalos. Vou verificar o que está acontecendo. .
Deu alguns passos, adentrando-se no acampamento, empunhando o fuzil. Jack ficou sob as árvores, agachado, com seu fuzil apontado para a barraca. Ao passar pelo centro, o Coronel agachou-se para verificar o calor das cinzas. Há muitos dias não havia fogo ali.
Ao levantar-se, foi varado por uma certeira flecha que o lançou ao chão.
— Jack! Cuidado!Os índios!. — Foram as últimas palavras do Coronel.
Sem ver nada, numa reação instintiva, Jack descarregou sua arma na direção de onde saíra a flecha. E ainda agindo sob forte emoção, deixou correndo o abrigo das árvores, na direção do pai. Atirando com o seu pequeno revólver, sem mirar em nada.
— Pai! Pai! — A grossa flecha atravessara o peito do Coronel. Jack quebra a vara pela ponta, e num gesto desesperado, puxa-a por trás, retirando-a do corpo inerte. Só então percebe que o pai está morto.
Assustado, olha ao redor. Observa tudo com uma nitidez incrível. É como se estivesse vendo uma fotografia com todos os detalhes: das árvores pinga a água da chuva, o local da fogueira está molhado, não há sequer carvões. A lona da barraca pende frouxa, batida pelo vento — plaft, plaft, plaft. Desolação total. O terror toma conta do jovem, que corre até a barraca. Dentro está escuro. Nada vê e sente um fedor nauseante de carne putrefata. Desorientado, em pânico, volta para o local onde jaz o pai, deitado de costas. Ajoelha-se e prostra-se sobre o corpo, abrindo-se num lamento e num choro descontrolado.
O tempo passa. Minutos, horas, quanto tempo Jack ficou ali? Apenas as árvores chorosas testemunharam a dor e o seu desespero. E as árvores não têm medida de tempo. Apenas permanecem. Chorando com o moço a morte do grande aventureiro.
Enfim, voltando à realidade como que acordando de um pesadelo, Jack encara a situação. Primeiro, enterrar o pai. O que fez numa cova rasa, ao pé de gigantesca árvore. Uma cruz tosca, dois paus amarrados com cordas, marcam o local. . Só então ele se dá conta do cheiro nauseabundo vindo da barraca e espalha-se por toda a área do acampamento. Com as mãos tapando as narinas, entra na barraca. Sobre o acolchoado,o corpo putrefato e roído por animais e vermes exala o odor nauseabundo. É Raleigh! Pobre amigo! Mas, e os outros, o guia, os tropeiros, onde estão?
Sai da barraca. Procura por todo o acampamento, pelas trilhas que partem de um e de outro lado, não encontra vestígio de nada. Os bandidos fugiram e deixaram Raleigh aqui. Será que já estava morto quando os miseráveis foram embora? Ou será que o abandonaram em sua agonia? Resolve não enterrar o amigo. Não agüento esse fedor. Vou queimar a barraca.
Nada de útil foi deixado para trás. Não vê sinais de luta, de violência. Fugiram, sim, com certeza. Mas de quê? Por quê? Perguntas que jamais serão respondidas. Jack agora está sozinho, com dois animais, alguma comida, uma barraca e totalmente desesperançado. Tem consigo o mapa de Salustiano.
Jack leva dois dias para cumprir suas obrigações de filho e de amigo, para um repouso e para arrumar toda a tralha, reduzida ao mínimo necessário para sair, o mais depressa possível, daquele sítio, daquela região de terror. Na manhã do terceiro dia, se põe a caminho, seguindo a trilha por onde viera, há pouco mais de dois meses.
Os cariris, tendo exterminado os quatro homens que se adentraram pelo seu território, apossaram-se dos animais e de tudo o que transportavam. Como sabiam que ainda outros brancos estavam lá pelas bandas da “cidade brilhante”, organizaram um grupo, a fim de verificar o destino do resto do grupo. Iam raivosos, pois no entrevero com os brancos, dois índios haviam sido mortos pelos intrusos. Agora, além de curiosidade, um espírito de vingança impregnava todos os índios do grupo. Ao chegarem ao acampamento, sentindo o cheiro de carne podre, não entraram. Supersticiosos, adivinhavam a existência de gente morta dentro da cabana. Estacaram à margem do acampamento dos brancos e resolveram esperar. Colocaram sentinelas nas copas das árvores e retiraram-se para o interior da mata, onde, por sua vez, acamparam.
A chegada dos dois homens brancos foi observada pelos dois índios de guarda. Quando o branco mais idoso adentrou pelo acampamento, Krone-kiran sentiu a vista toldar-se de ódio. Ali estava um dos brancos responsáveis pela morte do pai. Havia de pagar com a sua vida. Esquecendo-se das ordens do chefe da tribo, disparou certeira flecha que atingiu o branco no peito.
O que se seguiu no acampamento não interessou mais às duas sentinelas. Descendo lépidos e silenciosos, correram a dar a notícia ao chefe.
— Krone-kiran não agiu conforme nossas ordens. Agora, fica aqui enquanto vamos olhar o acampamento dos brancos.
Quando chegaram, observaram, ocultos pela densa mata, o jovem branco chorando a morte do pai. Respeitaram a dor do homem branco. Nos dois dias de observação, viram o branco enterrar o corpo do morto, atear fogo na barraca e preparar-se para partir.
— Jovem homem branco é muito valoroso. Vamos deixar partir. — O chefe determinou.
Quando soube da permissão dada pelo cacique para a saída do “jovem homem branco”, Krone-Kiran não se conformou. Nas suas veias ainda corria o veneno da vingança. Desobedecendo às ordens do chefe tribal, partiu no encalço do solitário viajante.
Jack tinha já uma semana de caminhada. Estava exausto e faminto, pois a ração chegara ao fim. Mastigava um pedaço de couro a fim de mitigar a fome, velho artifício aprendido com o pai. Também a água escasseara e bebera de uma poça suspeita. Nos últimos dias estava em estado febril, sentia cãimbras por todo o corpo, as pernas falseavam, e tinha períodos de visões, alucinações. Dois animais haviam ficado para trás, sem que Jack percebesse.
Ao chegar à margem da lagoa, sedento e febril, lança-se de bruços na água cristalina. Bebe em grandes haustos. Sentindo-se saciado e refrescado, apóia-se nos cotovelos para se levantar. Sente um grande peso nas costas, não consegue sequer se virar. No espelho da água vê o reflexo da carranca ameaçadora de um índio, pintado de vermelho e preto. Estou mesmo mal. Agora dei para ver coisas. A febre...
Num golpe certeiro de lança, Krone-Kiran amassa a cabeça de Jack. O sangue turva a água cristalina. Sem esforço, o índio, com o pé, rola o corpo do branco para o fundo da lagoa.
Antonio Roque Gobbo —
Belo Horizonte, 31 de dezembro de 2002.—
CONTO # 199 DA SÉRIE MILISTÓRIAS