FORGÉA
O barco se apequenava ao se aproximar do imenso navio-tanque. Os tripulantes manejavam com cuidado o rebocador. O mar ao largo das costas do Havaí, sempre muito agitado, nunca é confiável, devido às ondas imensas, que fazem a alegria dos surfistas nas praias das ilhas .
— Atenção, atenção. Vamos fazer a aproximação a boreste — O aviso do comandante, transmitido através dos alto-falantes, põe os tripulantes em estado de alerta. — Cuidado com os guindastes!
Dois botes infláveis, motorizados, são lançados ao mar. Equipados com cordas e cabos de aço, aproximam-se do imenso casco do navio abandonado. Em movimentos precisos e oportunos as equipes conseguem subir até ao convés. Os sinais da grande tragédia são visíveis por todos os lados.
— Vamos lançar os cabos de atracação. Muito cuidado com as cordas. — O chefe da equipe dá ordens com determinação. O mar encapelado em nada contribui para diminuir a dificuldade da operação. A perícia de todos e a agilidade nas manobras do rebocador fazem com que em menos de uma hora os cabos de aço estendam-se entre o rebocador e o navio-tanque..
— McGregor, dê uma vasculhada geral no convés, veja se há equipamento solto, em risco de cair ao mar quando rebocarmos o navio. — Ordena o comandante do rebocador.
— OK, Capitão.
O navio-tanque estava abandonado em alto mar há mais de três semanas. Um grande incêndio, que teve início no alojamento dos tripulantes, estendeu-se por todo o navio, destruindo todo o sistema de navegação e de comunicação. Um navio de cruzeiro, que passava pelas imediações, recolhera a tripulação.
— Temos apenas duas perdas na tripulação: os marinheiros John Cassavate e Kevin Krammer. Ficaram presos no alojamento e morreram carbonizados. Não tivemos como evitar. — O relatório do capitão Chung Chin Po foi sucinto. Esqueceu-se de mencionar o desaparecimento de Forgea.
Forgea era a cachorrinha de estimação que ele havia adotado em Honolulu quando era ainda filhote. Com dois anos, Forgea, uma terrier mestiça (com predominância genética do pai, um vira-lata) de pelagem malhada, era a alegria e motivo de entretenimento não só do capitão mas também de toda a tripulação.
Durante o período em que o navio-tanque “Hong-Chuan” ficara à mercê das ondas do mar, foram feitas três abordagens. A primeira foi pela equipe de um avião da guarda costeira norte-americana, que primeiro localizou a cadelinha. Os vigilantes deixaram o conteúdo de suas lancheiras (que tinha barras de cereais e até pedaços de pizzas) no convés do navio para ajudar a manter a cadelinha viva.
A notícia da sobrevivência de Forgea correu o mundo e emocionou os amantes dos animais. Enquanto as providências de resgate do navio estavam sendo tomadas, fizeram-se necessárias medidas mais urgentes no sentido de resgatar o animal abandonado no navio. Mas as condições de pouso de helicópteros no convés eram por demais arriscadas. Duas tentativas foram feitas, inutilmente. Em ambas, foram deixados mais alimentos e até água potável.
Alguns pescadores havaianos tentaram também socorrer o animal, mas ele se escondia em lugares inacessíveis, abaixo do convés. Estranhamente, arrastava para seu esconderijo todos os alimentos e frascos de água que eram depositados no navio. Ninguém conseguiu chegar ao local onde a bichinha escondia os víveres — mesmo porque todos queriam retirá-la do navio e ela insistia em ali permanecer, esquivando-se a qualquer tentativa de ser resgatada.
— Capitão, aqui é McGregor. Localizamos o esconderijo de Forgea. Está num lugar de difícil acesso, teremos de arrebentar uma porta para chegar até onde está.
— Faça isso. Vá com cuidado. O mundo inteiro está de olho nessa bichinha. Não deixe escapar, nem machuque o animal.
O capitão do rebocador tinha razão nos seus cuidados para resgatar Forgea. A situação da cadelinha animal havia cativado a atenção do público ao redor do mundo. As frustradas operações de resgate, patrocinadas por ONGs ecológicas ou de proteção aos animais, haviam custado algo em torno de cinqüenta mil dólares. A pequena mascote do navio tornara-se celebridade internacional, personagem de um realty show transmitido em todos os noticiários de televisão.
Com sua equipe de três homens, McGregor arrebentou a porta da cabine na qual se escondia Forgea. A surpresa do encontro foi eletrizante.
— Capitão, temos um sobrevivente do incêndio. Um homem está vivo aqui. Aparentemente desmaiado. Mas vivo. Preso debaixo de ferragens. Mande urgente alguém que saiba lidar com acidentados.
— Positivo, McGregor. Enviarei o Dafoe, que sabe lidar com esse tipo de situação.
Mcgregor e seus ajudantes verificaram os detalhes da situação da cabine onde um homem jazia deitado no chão, as pernas escondidas debaixo de uma barra de ferro, que por certo havia quebrado suas pernas e, imobilizado, parecia impossibilitado de se safar da opressão.
As feições inchadas e sombrias mostravam o lastimável estado do acidentado e as penúrias pelas quais estava passando. Ao lado dele a cachorrinha estava sentada, atenta. Ao redor da cabeça do homem, ao alcance de seus braços, estavam diversos frascos de água, os sanduíches e as lancheiras deixadas anteriormente pelas diversas equipes de resgate.
Forgea não se deixou ser arrastada do local. Arreganhou os dentes, latiu e escondeu-se ainda mais para o fundo da cabine. Enquanto aguardavam a chegada de Dafoe, os quatro homens a observavam.
— Ela trouxe os alimentos e a água para o acidentado. Ela praticamente o manteve vivo.
— Se não fosse ela, o homem estaria morto de inanição. Já faz 24 dias que este petroleiro está à deriva.
Forgea reapareceu dos escombros, e se pôs a lamber, com toda a delicadeza, as pernas feridas e o rosto do homem deitado, imóvel.
— Veja só como ela cuida do homem! Como se fosse de sua própria espécie!
Dafoe chegou com mais homens e material de atendimento médico de urgência. Quando conseguiram livrar a vítima de todo o peso do grosso vergalhão, foi constatada a gravidade da situação: as duas pernas estavam esmigalhadas à altura da canela. Os ferimentos, todavia, apresentavam-se com bom aspecto, alguns já em processo de cicatrização.
Dafoe, de experiência no atendimento de acidentados, foi conclusivo:
— Não fora o cuidado de Forgea, em trazer alimento e água, e lamber as feridas, certamente este acidentado já estaria morto.
Removida a vítima, soube-se, posteriormente, tratar-se de Kevin Krammer, um dos dois tripulantes dados como desaparecidos na tragédia. Quanto a Forgea, acompanhou com fidelidade o acidentado Kevin, que a adotou, com a aquiescência do capitão Chung Chin Pó.
— Fico feliz em saber que Kevin adotou Forgea, pois foi ela, sem dúvida, que o salvou da morte certa.
ANTONIO ROQUE GOBBO -
Belo Horizonte, 17 de maio de 2001.
Conto # 159 DA SÉRIE MILISTÓRIAS