PESCARIA EM DIA ENSOLARADO
— Mãe, deixa eu ir pescar na Lagoa Preta?
— Com quem cê vai?
— Com Natal e com o Orlando. A gente quer ficar lá os três dias de Carnaval.
— Mas vocês vão dormir ao relento?
— Não, a gente já combinou com o Zacarias: vamos dormir na casa do pai dele, que fica na beira da lagoa.
— Vai pedir pro seu pai, se ele deixar...
É sempre assim. Se peço pra mãe, ela manda pedir pro pai. Se peço pro pai, ele me fala pra pedir pra mamãe. Meio temeroso de como o pai iria receber o pedido, usou de uma artimanha que já tinha funcionado anteriormente.
— Pai, posso ir pescar na Lagoa Preta? A mãe já deixou. — A mentira leve não incomodava Carlinhos, pois a falta de uma negativa expressa era tomada com concordância. Quem cala, consente. Se mamãe não proibiu, é porque me deixa ir.
— Sua mãe faz de tudo para te agradar, hein? Ela mima você demais. — O pai queria ser rigoroso mas não conseguia. Não percebia que fazia parte de um jogo bem armado pelo filho a fim de conseguir o que queria. Primeiro, pedia à mãe, depois ia ao pai. Sempre conseguia o que desejava, o que, aliás, não ia além de coisas como este pedido.
— A gente vai aproveitar os dias de Carnaval. Vamos ter folga a semana inteira no ginásio e diz que na Lagoa Preta tá assim de carás e papa-terras. Vou trazer muito peixe pra casa!
— Tá bom, tá bom, mas agora me ajuda aqui na limpeza da oficina.
Era o final da tarde de sexta-feira, véspera do carnaval, e seu Argemiro dava os últimos arranjos na sua pequena oficina de alfaiate, num cômodo da sua casa, com porta aberta para a rua. Carlinhos, animado pela concordância do pai, se pôs a limpar as mesas, fechar as máquinas de costura e, em seguida, varrer a sala.
Carlinhos saiu no sábado cedo, para a pescaria combinada com os primos. Dona Januária preparara muitos sanduíches de pão com salame, que colocara no bornal, junto com pedaços de goiabada e queijo, embrulhados separadamente em papel grosso. A matula pesava na sacola, dependurada no ombro esquerdo do garoto. Numa das mãos levava a vara de pescar e na outra, um pacote com seus objetos pessoais.
— Cuidado com o sol, procura ficar sempre na sombra. — É a última recomendação da mãe.
As pernas eram curtas mas o ritmo de seu caminhar, rápido, quase acelerado, contrabalançava e fazia render a caminhada. Entrou pela Avenida Braz Cúrcio e saiu no Largo da Igreja do Rosário. Atrás da igreja ficava a casa do Tio Aldrovando, onde Natal e Orlando já o aguardavam.
— Então, tudo nos conformes?
— Claro! Não teve problema, papai e mamãe deixaram quando falei que nós três vamos dormir na casa do Zaca.
Desceram os três pela viela lateral à igreja e logo estavam caminhando pela estrada, rumo ao Morro Vermelho, região onde ficava a Lagoa Preta.
— Vamos pela estrada ou pelo atalho? — Carlinhos queria chegar logo à lagoa.
— Melhor ir pelo atalho. Além de chegar mais cedo, a gente passa pelo sítio do seu Sinfrônio. O pomar tá carregadinho de fruta. — Orlando vive vadiando pelos sítios e fazendas e conhece bem toda a região.
— É, mas temos de passar pelo pasto. Tem sempre vaca parida e boi brabo. — Natal é precavido, não gosta de passar perto de animais soltos nos pastos.
— Num tem perigo, a gente passa margeando o corguinho. Se for preciso, a gente corre e passa pro outro lado, pela pinguela.
— Puxa, mas que calor! — Carlinhos reclama, passando a mão na testa. Usa um chapéu de palha, parecido com os chapéus dos exploradores da África e da Índia, que protege o rosto sardento do sol. Tem a pele muito branca, deve evitar o sol a todo custo. Com treze anos, é bem menor que os primos, molecotes de onze e doze anos. Logo, tira a camisa e prossegue caminhado com as costas e o tórax exposto aos raios do sol inclemente.
Passam pela propriedade do seu Sinfrônio, onde mangueiras retardatárias ainda exibem alguns frutos temporões. Chupam mangas à vontade. Quando passam pelas bananeiras, já estão cheios, mesmo assim cortam um cacho que Orlando, o mais forte dos três garotos, põe nas costas. Prosseguem passando pelo pasto onde algumas vacas estão pastando. Sem bezerros à vista nem touros. Mesmo assim, passaram longe dos animais, que pastavam mais pelo alto, enquanto eles seguiam margeando o córrego, que deságua na Lagoa Preta.
— Olha, a água aqui é até bem clarinha. Dá pra gente nadar. — Acalorado, Carlinhos já está tirando as calças para um banho no regato. Orlando e Natal, sem mais tardança, aderem à idéia do primo, e logo os três estão brincando nas águas limpas do riacho. Espadanam água, brincando, com gritos álacres, jogando água reciprocamente. Nem percebem quando uma figura humana assoma do outro lado do córrego, por entre as árvores.
— Aí, seus ladrões de bananas! Sujando a água do gado beber! Peraí que já pego oceis!
Um rapaz, alto, magro, queimado de sol, gritava do alto do barranco para os três garotos. Assustados, olham na direção de onde vem a ameaça. Não podem ver direito, pois a figura está sob as árvores, na sombra, e parece-lhes coisa sobrenatural. Orlando, o mais velho dos três e muito mais atrevido, grita para a figura:
— Vai à merda!
— Vou descer aí, vocês vão ver só. — Fala o rapaz, com voz esganiçada.
— Vamos fugir! — Carlinhos já está vestindo as calças, o corpo pingando água.
— Vem, desce aqui, vem tirar a gente daqui! — Orlando enfrenta o rapaz. E dirigindo-se ao irmão e ao primo, acalma-os: — Fiquem calmos, é o Nequinha do seu Sinfrônio. Ele é capenga, não agüenta nós três juntos.
A figura identificada por Orlando é realmente o filho do proprietário daquelas terras. Orlando está certo: o rapaz, já com mais de vinte anos, é manco e corcunda, e obviamente retardado. É uma figura esquisita e assustadora, mas é inofensivo e não inspira maiores temores a quem o conhece.
— Não enfeza ele, se ele ficar bravo, vira uma fera. — Natal avisa o irmão.
— É um cagão, isso sim. Vem, vem cá, corcundinha. Vamos te quebrar a cara. — Orlando levanta os braços e faz gestos ameaçadores.
Carlinhos já está pronto para correr. Natal e Orlando continuam no córrego, sendo que Orlando chegou até a se dirigir ao lugar onde a figura está semi-escondida na folhagem. Ante tamanha demonstração de coragem, o rapaz desaparece nas sombras.
— O songamonga fugiu ! — exclama Natal.
Seguem ao longo do córrego, que desembocará na Lagoa Preta. Passam por locais acidentados, profundas cavas. Num dos pontos, têm de atravessar uma pinguela.
— Xíiii, olha quem tá lá do outro lado! — Carlinhos, que continua sem camisa, foi o primeiro a ver.
— O Nequinha, de novo! — Natal pára quando igualmente vê a figura do outro lado.
De pé, na outra ponta do estreito tronco de eucalipto atravessado sobre o vão da profunda vala, empunhando um forcado, plantado firme sobre os pés descalços, o corcunda é uma figura ameaçadora.
— Vem aqui, se ocêis for home. — Enquanto fala, brande a ferramenta, como arma, ameaçando os três garotos.
— A gente só quer passar.
— Num pode. Ceis comeram manga e roubaram banana no pomar do pai. Agora, vão tê de pagá. Se num pagá, num passa.
— Pagar com o quê? Se quiser, toma de volta a penca de banana. — Orlando é destemido, avança alguns passos na direção da pinguela.
— Não, cêis já comeram muitas bananas, só tem a metade. Quero uma vara de pescá.
Os três garotos confabulam. Cada qual traz sua vara, sendo que a de Orlando é a melhor, mais forte, as outras são pequenas, só pra pescar peixe miúdo.
— Dá a sua, Natal. Quando a gente chegar na lagoa, corto uma vara nova no bambuzal. — Orlando vai ordenando, mais do que sugerindo.
— Cê besta! A minha não! Por que você não dá a sua?
Ante a recusa do irmão, nem tenta falar com o primo. Sabe que é inútil argumentar com os dois. Destemido, logo toma uma atitude.
— Tá bem, te dou a minha vara. Mas cê tem de largar esse forcado aí na beirada, e tem que pegar a vara no meio da pinguela. Só lhe dou a vara se você vier sem nada nas mãos, e tem de ser no meio da pinguela.
— Tá bom. Já tou indo. — O mentecapto responde. Deixa a ferramenta no chão e caminha, mancando e equilibrando-se precariamente pela pinguela, a fim de encontrar com Orlando, que também se adianta sobre o tronco roliço.
Quando estão próximos, Orlando estende a sua vara de pescar, feita de bambu curado, forte, resistente. Oferece o punho da vara. Nequinha segura com firmeza, com a mão direita. Orlando dá um tranco na vara, puxando o manco, com violência. Este, assustando-se, solta da extremidade da vara, perde o equilíbrio e escorrega do tronco, despencando-se e caindo no riacho, uns quatro ou cinco metros abaixo.
— Corre, gente! — Orlando grita e ele mesmo se põe a correr, atravessando a pinguela.
Natal e Carlinhos correm por sobre o tronco. Lá embaixo, Nequinha se refaz da queda, levantando-se todo encharcado. Carlinhos, que vem atrás, pega o forcado e o joga longe, nas moitas de capim que crescem pelas margens do córrego. .
Dali pra frente, os três correm como nunca, até colocarem boa distância entre eles e o local do entrevero.
— Bom, a gente já pode parar de correr. Afinal, nem que o manco corresse atrás de nós, não conseguia alcançar mesmo.
Sem parar, mas caminhando a passo moderado, os três chegam, finalmente, às margens da Lagoa Preta.
— Pela altura do sol, deve ser umas quatro horas. — Orlando comenta.
— Vamos arranchar ali na sombra daquele pau d´óleo? — Natal se encaminha para a alta árvore, de copada muito verde, as folhas pequenas tremelicando suavemente, brilhando intensamente. A sombra é fresca e o terreno está limpo. Nem bem haviam depositado as tralhas e os embornais no chão, chega Zacarias.
— E aí, turma? Vão pescar ainda hoje?
— Claro, Zaca, agora mesmo vamos ter uns peixinhos para a janta. — Natal está entusiasmado, lidando com a tralha de pescar. Carlinhos conta para Zacarias as peripécias dos três e a queda do Nequinha da pinguela.
— Isso é bom pra ele deixar de amolar a gente. — Zacarias já conhece o rapaz há mais tempo e tem opinião formada. — É um chato, vive perturbando a vizinhança. Depois dessa vergonha, ele não vai aparecer por aqui tão cedo.
Zacarias fica ali com os amigos. Orlando vai pescar sem mais delongas. Ao anoitecer, Natal acende uma fogueira. Carlinhos se queixa do calor.
— Puxa, mas como está quente! Minhas costas estão pegando fogo!.
— Também, pudera! Cê andou o dia inteiro sem camisa! — Natal comenta.
— Bom, gente, acho que tá na hora de pegar a palha. — Zacarias se levanta, batendo as folhas secas da roupa. — Venham, vamos lá pra casa. Mamãe já arrumou um quarto pra vocês dormirem.
Dona Filomena está na varanda da casa, esperando os garotos com o lampião aceso.
— Venham pra cozinha, tomem café antes de irem dormir. Zacarias, você ainda tem de se lavar, antes de dormir. E não faz muito barulho no quarto, que seu pai já tá dormindo.
No dia seguinte, acordam todos muito cedo. Os galos nem bem cantaram e a turma já está de pé. Carlinhos está com forte ardor nas costas. A pele está vermelha, quase roxa.
— Acho que você deveria ficar aqui dentro de casa. — Dona Filomena aconselha Carlinhos.
— Que nada, vou mas é pescar com os primos.
Na beira da lagoa, novamente os quatro amigos se dedicam à pescaria. Bagres, papa-terras, lambaris aos montes, carás, e até cascudos mordem as iscas e são pescados. Passam o dia pescando, na maior camaradagem.
De tarde, Carlinhos está que não agüenta mais de tanto que suas costas ardem. Quando chegam de volta à casa-sede, para dormirem, dona Filomena passa um líquido marrom nas sus costas.
— É arnica, você vai ver como refresca.
Carlinhos sentia, sim, o frescor do líquido, sendo passado suavemente com algodão, pelas mãos dedicadas de dona Filomena.
— Amanhã, você não vai sair no sol, não senhor. Vai ficar aqui em casa, na sombra.
— Mas, dona Filó...
— Não tem mas nem meio mais. Faça o favor, hein, seu Carlinhos!
Segunda feira: o sol aparece vibrante num céu de azul puro, sem nenhuma mácula de nuvem. Carlinhos é o primeiro a se levantar.
— Não dormi direito, dona Filó. Minhas costas arderam toda a noite.
— Puxa, Carlinhos, que esquisito! — Dona Filomena examina as costas do garoto. — A pele está estufando, parece que estão se formando bolhas. Ah, hoje você vai ficar mesmo é aqui dentro de casa. Nada de sol.
Carlinhos concorda. Ele não agüenta o caloraço, tanto nas costas como no peito. Os três amigos partem para nova pescaria.
Ao almoço, quando chega seu Norato, vindo das roças de milho, a mulher fala das costas de Carlinhos.
— Deixa ver.
— Carlinhos, vem cá. Deixa o Norato ver suas costas.
Carlinhos não conseguiu sequer vestir a camisa naquela manhã. As costas agora já estão literalmente cobertas de bolhas, queimaduras de sol.
— Puxa vida, Filó! Olha só como estão queimadas! Cê tem alguma pomada pra passar?
— Não. Ontem passei arnica, mas vejo que não adiantou nada.
— Vou te levar pra cidade, garoto. Apronta suas coisas, vamos no jipe.
— Mas eu queria pescar mais, seu Norato.
— Cê tá louco? Do jeito que você tá, precisa cuidar sem tardança das costas. Vamos logo.
— E os outros?
— Deixa eles pescando, eles tão acostumados a tomar sol.
Carlinhos pega sua tralha e seu bornal. Quando se assenta no jipe, uma das bolhas começa a vazar, manchando a camisa.
— Tiáu, dona Filó. Muito obrigado!
— Vai com Deus, Carlinhos!
Ao chegarem em casa, Dona Januária assusta-se ao ver o filho descer do jipe, ajudado por seu Honorato. Corre na calçada.
— Que foi? Que aconteceu com Carlinhos?
— Ficou muito no sol, queimou as costas.
Ao entrarem em casa, o pai vem de sua oficina. Ao ver o filho, agora já sem camisa, assusta-se.
— Santa Maria! Que foi isso, meu filho?
— Fiquei sem camisa... tomei muito sol nas costas... — O garoto está também assustado e temeroso. Na certa, vai receber muito pito e, com certeza, algum castigo.
— Argemiro, corre até a casa da Rosa, fala pra Beatriz vir aqui, rápido!
Beatriz é enfermeira na Santa Casa e sabe como tratar emergências. Chega alguns minutos após, pois mora a dois quarteirões. É prima de Carlinhos, pelo qual tem uma estima especial.
— Calma tia, a gente dá um jeito aqui mesmo. — Vendo a casa em polvorosa, procura amenizar a situação de desespero da família.
Com muito cuidado e carinho, vai tratando das bolhas, secando-as com gaze e passando pomada. Enquanto isso, vai conversando com todos.
— É assim mesmo, quem tem a pele tão branquinha não pode tomar sol, tem de ficar na sombra. Tá aprendendo a lição, Carlinhos?
Quando termina, as costas, os ombros e os braços de Carlinhos estão totalmente emplastrados de fina pomada branca contra queimaduras. O menino está tranqüilo, quase não sente dores.
— Sabe, tia, deixa o Carlinhos quieto, não zanga com ele não. Isso acontece. — Beatriz está preocupada com a possibilidade de o garoto sofrer represálias.
— Pode deixar. — Seu Argemiro se adianta. — Ele já tá bem castigado. Não teve pescaria, não teve carnaval e agora vai ter de passar o resto da semana em casa, pra pensar na burrada que fez. Tá de bom tamanho.
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Antonio Roque Gobbo = Belo Horizonte, 6 de abril de 2002
Conto # 153 da série milistórias