A PRAIA DE AREIAS DOURADAS

— Então, Romário, vamos comprar a fazenda do Comendador Camargo?

— Ara, Altamiro, acho que não vale a pena, não. Aquilo lá é um carrascal sem fim, só tem barba-de-bode. Região muito montanhosa. E ouvi falar que o governo vai transformar a área em reserva, parque ecológico, sei lá.

Os irmãos estão descansando, refestelados em redes de trama larga, arejadas, armadas na ampla varanda do segundo pavimento do palacete de Romário. A tarde é quente e convida à preguiça, ao ócio. O ar está parado, sêco, típico do verão do norte de Minas, onde começa a região semi-árida que se estende por milhares de quilômetros na direção do nordeste, até as praias do Ceará e Maranhão. Numa mesinha entre as duas redes, a jarra e copos com refresco de pequi, que os dois tomam em largos goles.

— Luzia, traga mais refresco! — Grita o dono da casa.

— Já vai, sinhô! — Uma voz feminina responde do pavimento inferior. Logo aparece a morena trazendo outra jarra cheia, que troca pela vazia. Altamiro espicha os olhos sobre a moça, enquanto ela sai. Êta cabrocha bunita. Merece coisa melhor do que aquele traste do seu marido, merece um homem de verdade. Homem que nem eu...

Romário parece que lê o pensamento do irmão:

— Num adianta se engraçá pela mulata, Miro. Ela é séria e o marido é perigoso.

— Hê-hê-hê...Tá bão. Mas que ela é boa, lá isso é. Voltando à vaca fria, quer dizer que o mano acha que num é negócio comprar a Fazenda do Chapadão do Gibão?

— É como eu falei. Ademais, mano, já temos pra mais de dois mil alqueires, pra quê mais terra?

A pergunta fica no ar, sem resposta. O mormaço toma conta de tudo. Altamiro puxa uma tragada de seu cigarro de palha, apaga a ponta com os dedos e coloca o pito atrás da orelha, guardando-o para mais tarde. Fecha os olhos, como num cochilo, mas o que vem mesmo são as lembranças. A pergunta do irmão ...pra que mais terra?... martela seu pensamento, levando-o em pensamento a um tempo em que nada possuía, não tinha sequer onde cair morto.

Há alguns meses os dois desciam o Rio São Francisco. A viagem tivera início pelo Rio das Velhas, até que este desembocou no Velho Chico. Navegavam numa canoa rasa e larga, leve, do tipo usado naquelas paragens ribeirinhas. Na canoa estavam todos seus pertences: pouco mantimento de boca, três espingardas “Flaubert” e uma garrucha de curto alcance.A munição também era pouca. Roupas, só tinham as do corpo. Chegaram ao povoado de São Romão, onde tiveram notícia de um local de “areias douradas”.

— De certo que são areias de ouro. Mas ninguém trouxe uma amostra. Dizem que o local é morada de gigantes cruéis. — As informações vagas não atraíam a atenção nem mesmo dos garimpeiros da região, gente supersticiosa, temente de tudo o que há de misterioso. Mesmo porque o informante não inspirava a mínima confiança. Um pobre coitado que vivia mergulhado no torpor da bebida e cujas afirmações eram levadas à conta de seu estado de embriaguês permanente.

— Onde fica essa praia de areias douradas? — Quis saber Altamiro, insistindo em obter mais informações do bêbado.

— Sei lá... hic! Subindo o rio.

— Que rio?

— O Paracatu,o Preto... é por aí.Hic! Mas tomem cuidado ...hic!...É vigiada por gigantes cuéis, que não deixam ninguém se aproximar. Hic! Meus companheiros foram mortos por um gigante...Hic!

Nada mais conseguiram Altamiro e Romário do homem à beira do delirium tremens. Mas, aventureiros que eram, arriscaram. Voltaram a proa da canoa rio acima, subindo pelo São Francisco até a embocadura do Paracatu. Rema que rema, dias, semanas, esforçando-se e esgotando-se, as mãos calejadas endurecendo-se cada vez mais no manejo dos remos. Por três vezes encontraram remansos do rio onde as águas batiam em serenas praias... de areias brancas e brilhantes, de doer nos olhos, tão claras eram.

Fazia tempo, Altamiro se recorda. Antes de partirem na aventura, tiveram notícias de que uma guerra estourara na Europa devido a um assassinato de um rei daquelas lonjuras. Mais tarde, muitos anos depois,viria saber que se tratava da Primeira Guerra Mundial. Mas nada disso interessava aos dois aventureiros. A necessidade começava a rondar: os mantimentos estavam no fim, comiam o que pescavam ou caçavam.

— Já estou enjoado de comer peixe. Tou até ficando escamoso. — Romário era mais de reclamar; já Altamiro agüentava, sem queixas, todas as dificuldades.

Romário estava à beira do desânimo, quando toparam com a prainha de areias douradas. Era curta, apenas um cem metros, numa curva do rio. Passaria desapercebida, não fora a atenção de Altamiro.

— Olha lá, Romário! Tá lá a bendita praia dourada.

O irmão olha na direção indicada por Altamiro. Uma faixa brilhante se estendia, rasa, amarela, dourada como se uma folha de ouro estivesse estendida sobre a areia. Doía nos olhos. Apesar do cansaço, remaram com redobrado vigor até encostarem-se à beira arenosa. Puxaram a canoa para o terreno firme e pisaram na praia.

— É ouro! É ouro! Puro ouro em pó, Nunca vi coisa igual!

— Estamos ricos! Ricos! Ricos!

Os dois homens adquiriram um novo vigor. Corriam de um lado ao outro, agachavam, pegavam punhados da areia amarela, davam cambalhotas, enterravam o pé no areal, chutavam areia pra cima. Desvairados, não cabiam em si de tanta alegria. Romário pegou um saco de mantimentos, vazio, e começou a enchê-lo de areia.

— Que cê tá fazendo? — Altamiro estranha a atitude do irmão.

— Vou encher nossa canoa de ouro. Vou vender ouro em São Romão, em Pirapora, em...

— Tá louco? Temos que guardar segredo do achado. Se a gente aparecer com ouro, vão logo desconfiar do nosso achado. E bem depressa isto aqui vai estar cheio de gente levando a areia de ouro.

— E então?

Foi difícil para ele, Altamiro, segurar a ânsia do irmão em transformar todo o areal em dinheiro. Mas um plano foi elaborado e seguido à risca.

— Não temos como saber o teor de ouro dessa praia. Por isso, vamos com cuidado. O primeiro passo é manter o segredo do local. Aqui é um lugar muito longe de tudo, e quem desce ou sobe pelo rio, passa ao largo da prainha. A gente só descobriu por que estava procurando com cuidado. Mas o recanto é um ermo, ainda mais escondido pelo arvoredo.

Os dois irmãos recolheram a canoa, escondendo-a na mata espessa que seguia o rio. Também dentro da mata construíram uma cabana rústica, onde passaram a viver. Não eram garimpeiros e não tinham maneira de separar o aparente ouro das areias.

— Pra mim, esse areal tudo é de ouro.

— Cê besta, Romário. Claro que tem ouro, mas tá misturado na areia. A gente tem de separar, antes de procurar comprador.

Usando cuias e troncos escavados em forma de gamela, conseguiram decantar algum ouro. Colocavam uma porção de areia dourada na vasilha com água e esfregavam com as mãos calejadas. Esperavam a areia assentar, e o ouro ficava no fundo. Com muito cuidado, derramavam a água e a areia lavada, deixando uma fina camada de pó. Um processo demorado e de pouco rendimento. Passaram alguns meses nessa lida, entremeada com horas dedicadas à pescaria ou à colocação de armadilhas para pegar pequenos bichos da mata.

— Bem, já temos uma trouxinha de ouro. E agora? — Romário, sempre titubeante, necessitava da orientação do irmão.

— Vamos descer o rio, pois nem sabemos onde estamos. Rio abaixo, passamos por São Romão, vamos ver se tem algum comerciante de ouro. Tem muito garimpeiro por esse norte, de forma que é possível que a gente encontra comprador lá em S. Romão.

Assim fizeram. Supriram a canoa com carne seca e algumas frutas do mato, e desceram o rio. Mas na vila não encontraram negociante de ouro. Suas discretas pesquisas indicaram um comprador na cidade de São Francisco, alguns dias de descida pelo rio.

Ou porque estivessem em precárias condições, barbudos, roupas muito gastas, magros e descalços, ou porque realmente o ouro que traziam era de baixa extração, não conseguiram muito dinheiro pelo produto.

— Desgraçado! Nosso ouro valia muito mais. O bandido aproveitou da nossa necessidade. Mas da próxima vez, ele vai ter que pagar muito mais! — Altamiro não se conformava com a baixa avaliação do seu tesouro.

— Inda bem que ele não conhece a gente, e nem perguntou nada, de onde viemos, nada.

— Que perguntasse! Cê acha que a gente ia falar do nosso areal?

Foi dinheiro apenas suficiente para a compra de mantimentos, roupas, calçados, munição e mais uma arma melhor, uma espingarda italiana.

— Salim garantir, legítimo fucile italiano, com alça de mira. Vende também caixa de municion, quatro caixas, quarenta e oito balas.

— Negócio feito. — Altamiro gostava de armas e aquela, apesar de usada, parecia ser uma ótima aquisição. Afinal, tinha de defender a posse da praia de areia dourada. — Também quero duas bateias e uma caixa com fechadura.

Anos se passaram nessa rotina. Como dois ascetas, os irmãos se dedicaram a separar, diligentemente, e com os recursos que tinham à mão, o pouco pó dourado das areias. Na verdade, a cor amarela da areia era devido mais à erosão causada por um afluente do rio, que ao passar por uma morraria a leste, erodia o terreno e tornava-se amarelo pela terra que carregava. O córrego não se misturava totalmente com o rio e no remanso da curva fluvial, depositava o material amarelo, que tingia as areias – e impregnava, sim, as areias, com uma quantidade ínfima de ouro em pó. Mas aos irmãos não ocorreu explorar as terras por onde passavam as águas barrentas do córrego que batizaram de Córrego do Ouro. Talvez já se tratasse de local garimpado, em tempos tão remotos que escapavam ao conhecimento dos habitantes da região. Abandonado quando o teor de ouro não compensava mais a garimpagem.

— Bom, nosso baú de ouro já está quase cheio. Tá na hora de vender. — A caixa com fechadura, forrada por dentro com metal e reforçada por fora com tiras de latão, era o cofre onde, com infinita paciência, os irmãos colocavam as ínfimas parcelas de ouro em pó que ajuntavam.

Cinco ou seis anos dessa labuta — e de uma vida de necessidades e de privações e proporcionaram aos dois aventureiros uma pequena fortuna.

Não sabiam a localização da prainha de areias douradas, se estava em terras devolutas ou se tinha dono. Mas se informaram e trataram de acertar a situação. Numa das viagem a São Francisco, tiveram informações sobre o proprietário das terras.

— É de um fazendeiro de Pirapora que comprou essas terras pra botar gado. Mas ficou assustado com a história dos gigantes fantásticos e cruéis e nunca tratou de explorar as terras.

Procurado pelos dois irmãos, o fazendeiro vendeu a fazenda de oitocentos e quarenta alqueires por um preço mais que razoável.

— Sabe, Altamiro, até que essa história dos gigantes é bem engraçada. — Romário estava partejando uma idéia. — Acho que a gente tem mais é que manter a lenda. Vamos fazer umas formas de pés bem grandes e marcar todas as praias da região, e também os limites da nossa fazenda, e até nas outras terras por aí. A história vai nos ajudar a manter os curiosos longe de nossa praia de ouro.

— Arre, mano, cê tá com razão. Quanto menos gente vier por essas bandas, melhor. Vamos fazer isso, sim.

Antes mesmo de conferir as cercas e demarcações, os irmãos trataram de fazer as fôrmas imitando grandes pegadas de homens gigantescos. Deixaram impressões das pegadas fantásticas ao longo do rio, nas praias, nos locais freqüentados pelos pescadores, e pelo interior, nas proximidades das trilhas e caminhos percorridos por viajantes solitários.

A lenda tomou vulto. Nas vilas e cidades da região, falava-se aos cochichos sobre o retôrno dos gigantes. Se a região já era pouco freqüentada, a partir de então, passou a ficar um êrmo, deserto de qualquer viva alma.

Passaram-se os anos. Os dois irmãos desciam os rio todos os anos, uma vez a cada estação das secas, quando o rio estava mais manso. E decidiram que já era hora de melhorarem de vida.

— Vamos comprar uma casa na vila de São Romão. — Sugeriu Altamiro, no que teve a aquiescência do irmão.

Da procura, resultou que seria melhor residirem em um local maior, mais movimentado, onde talvez as pessoas não perguntassem sobre suas atividades, sus origens, coisas assim. Adquiriram uma casa em São Francisco, que, passando por diversas reformas, foi transformada no palacete no qual, naquela tarde quente do verão de 1935, os dois, com pachorra e mineirice, desfrutavam de alguns momentos de descanso.

— ... Pra quê mais terra?

— É verdade. Afinal, a gente só comprou as fazendas dos vizinhos pra proteger a nossa prainha.

A artimanha engendrada pelos dois irmãos resultada numa brutal desvalorização das terras ao longo do rio, as quais eles foram comprando, sem pressa e com discrição, a preço de banana. Pelo menos uns dez proprietários confrontantes venderam as terras com receio dos gigantes da lenda, que corria solta pelo norte de Minas.

— Rá-rá-rá...! Se a gente fosse pagar o preço real pelas terras... Mas os panacas acreditam na lenda dos gigantes, que vamos fazer? — Romário gozava a situação.

Ao se estabelecerem na cidade de São Francisco, onde passavam metade do ano em ócio e desfrutando das boas coisas que a cidade proporcionava, Altamiro, agora com seus quarenta anos, despertou para o prazer da companhia de mulheres. Passou a freqüentar a zona da cidade. Sem tardança, conhecia todas as putas das pensões, e, para desassossêgo de Romário, deu em alardear a sua riqueza.

— Sossega, Miro. Desse jeito, cê acaba que nem aquele cachaceiro que falou pra gente da praia de areias douradas. Vai dar com a língua nos dentes.

— Ara, Mario, deixa de sê besta, sô. Sou homem de juízo, num tem perigo. E, além disso, nossa praia tá bem protegida pela fama dos gigantes malignos.

Romário estava certo. Não demorou muito, na conversa fácil com Rosa Melão, alegrado por muitas doses de boa cachaça, Altamiro deixou escapar toda a história. Inclusive o estratagema das falsas pegadas nas areias e caminhos da região.

Foi no fatídico ano de 1939, quando notícias de uma grande guerra tinha estourado na Europa, e os dois subiam, em um barco motorizado, rio acima, para mais uma estada de seis meses na beira da praia de areias douradas.

— Cê lembra, Miro, quando a gente subia por aqui pela primeira vez? Quanta dificuldade, hein?

— Mano, nem quero me lembrar. Até fome a gente passou.

Ao se aproximarem da curva do rio, aquela curva que escondia a prainha, os irmãos viram, a um só tempo: dezenas de barcos e um bando de aventureiros ocupando literalmente, de um lado ao outro, a famosa e agora não mais secreta praia de areias douradas.

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Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 21 de março de 2002.

Conto # 151 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/04/2014
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