TIÃOZINHO

Era o que mais se ouvia na chacrinha de dona Lídia: durante o dia todo, a mulher gritava chamando o filho a qualquer pretexto.

— Tiãozinho! Vem pra dentro!

— Tiãozinho! Sai da chuva

— Tiãozinho! Desce da goiabeira!

— Tiãozinho! Vem cumê!

Por vezes, o chamamento era acompanhado por invectivas.

— Tiãozinho! Moleque do capeta, deixa as galinha sossegada!

— Tiãozinho! Diacho de moleque, num brinca no barro!

Tiãozinho não era pior nem melhor do que os garotos de sua idade. Esperto, ladino, não parava um só instante, como é natural em garotos de cinco, seis anos. A mãe é que não tirava os olhos do seu menino.

Ele nem sempre atendia aos chamados e às zangas da mãe. Nada tinha a fazer senão correr, subir em árvores, amassar barro com os pés, bulir com as poucas galinhas e o galo do terreiro, essas coisas de criança da roça. Vivia mais nos galhos dos arvoredos ao redor da casa do que andava pelo chão. Os braços e as pernas mostravam os resultados das suas estripulias: arranhados, raspados, os joelhos escalavrados, os pés inchados por pisar em espinhos ou cortados por cacos de vidros.

— Tiãozinho, porquera! Onde é que ocê machucou o dedão do pé?

— Ara, mãe, nem vi que tava furado. — Mentira. Ele viu sim, sentiu sim, quando o prego enferrujado espetou seu pé. Mas fingia que nem tinha visto, para não dar o braço a torcer, para não ter de se desculpar.

A mãe, viúva, lavava roupas para diversas famílias da cidade. Era de onde tirava seu sustento, desde que o marido morrera. O garoto era novinho quando enviuvara. Tinha apenas uma semana de vida e ela fora obrigada a interromper o resguardo para trabalhar, sobreviver. Que o marido, coitado, quando vivo, mal fazia para a comida. Viviam da mão pra boca. O sítio não dava rendimento e Marcionílio, por mais que se esforçasse, nada conseguia do trabalho. Ganhava algum dinheirinho trabalhando a dia, para os vizinhos, capinando as roças e fazendo biscates.

— Lídia, hoje vou na cidade batizar o menino no cartório. Aproveito pra ver que dia tem batizado na igreja.

E lá se foi, estrada afora, pés descalços, levantando poeira na manhã seca de agosto. Sebastião... mas que nome mais sem graça. Onde é que Lídia tava com a cabeça, pensar num nome tão sem graça. — Assim pensando, foi engolindo, em passos miúdos, a légua e meia de estrada. — Lidimar! Esse sim, é que é nome bonito. Metade do nome dela e metade do meu nome. Vai ser esse mesmo o nome do nenê.

Batizado no cartório, com duas testemunhas conseguidas ali mesmo, passa na igreja matriz e certifica-se de que deve trazer a criança, a mãe e os padrinhos (“não se esqueça da certidão de nascimento! — avisou a beata que atendia na sacristia) no domingo próximo.

No caminho de volta, atalha pela matinha do Catitó. Lugar ruim de passar, a trilha é suja, tem sempre galhos caídos, e um trecho de brejo. Mas vale a pena, corta o caminho uns dois quilômetros e chegará mais cedo em casa.

Na beira do brejo, a saparia coaxa alto em diversos ritmos e tons. Emudecem-se com a passagem de Marcionílio. Num enrodilhado vermelho, na beira da trilha, mais parecendo brasas e carvões de pequena fogueira extinta, uma coral aguarda o momento de abocanhar sua presa, sapo, perereca ou lagartixa. Assusta-se com o barulho dos passos, sente-se ameaçada e se lança na direção da perna do caminhante.

Marcionilio sente a fisgada e vê a cobra desaparecendo entre as moitas, antes mesmo de sentir a dor lancinante da picada mortal.

— Filha da puta! Me pegou de jeito! Ai, Ai, Aiiiiiii...!

A perna é tomada de súbita dormência, não consegue movimentá-la. Sente um fogo subindo perna acima, queimando-lhe até à virilha. Tomba sobre a macega do brejo. Por alguns momentos, perde a visão. Sente o mundo girar. Mas reage. Tenho de chegar em casa, Lídia me trata, ela sabe...Tenho de andar. — Consegue se levantar. Arrastando mais do que andando, chega até o portão de sua chácara. Exausto, suando de dor e de cansaço, arreia ali mesmo, gritando com o último alento.

— Lídia! Lídia! Me acode aqui!

Desmaia. A mulher chega em seguida.

— Marcinílio! Meu Deus, que aconteceu? — Vê a perna escura, esticada, onde a marca da coral assassina se destaca como dois olhinhos malévolos, e logo se dá conta do ocorrido.

Valei-me, minha Nossa Senhora da Aparecida! Foi mordido de cobra!

Puxa o marido, com muito custo, pra dentro de casa. Nem se lembra de que está de resguardo e não pode fazer força. Com presteza, amarra um pano na perna do marido, fazendo um torniquete. Marcionilio ainda respira, é o único sinal de vida. Lídia corre até a casa do compadre Neca, os dois voltam correndo... em tempo de colocar o ferido na cama e ouvir o último estertor, o suspiro final.

— Marcionilio! Ai, acorda, homem! Minha Nossa Senhora, salva meu marido! Eu prometo...eu prometo... — A promessa morre nos lábios, ela também desmaia, de fraqueza e de dor.

O garotinho, com apenas uma semana de vida, começa um vagido fraquinho.

— Como é o nome do menino? — Na escola, a moça encarregada da matrícula preenche o questionário com as respostas do pai ou da mãe dos futuros alunos.

— Sebastião... Sebastião da Silva. — Lídia começa a responder.

— Cadê a certidão de nascimento? — Mostrando eficiência, a jovem atalha a resposta da mãe.

— Tá aqui. — Lídia apresenta um papel dobrado em quatro, amarfanhado nas beiras. — A moça desdobra o documento, lê com atenção, quer saber data de nascimento, nome dos pais, essas coisas de burocracia. Espanta-se com o que lê.

— Mas aqui consta que o nome do menino é Lidimar. A senhora tem outro filho? Vai ver, pegou a certidão errada.

— Não, moça, Tiãozinho é meu filho único. O pai morreu quando ele tinha uma semana. A certidão é essa mesmo.

Surge o impasse. A mãe garantindo que o nome do filho é Sebastião, a secretária da escola mostrando a certidão, onde constava outro nome.

— Lidimar? Mas num é possível, eu sempre chamei ele de Tiãozinho...

A diretora foi chamada para resolver a questão.

— Seu filho foi registrado como Lidimar. Tem de ser matriculado com o nome do registro no cartório.

Que vergonha! Lídia nunca se sentira tão encabulada. Sentiu até uma pontada no coração, mas tinha de se conformar. Tiãozinho, ao seu lado, nem notava a confusão que seu nome estava criando. Sempre agarrado à saia da mãe, os olhos arregalados, girando ao redor das órbitas, admirando cada pedacinho da sala e os móveis, as outras pessoas na fila. Os pés vermelhos da poeira da estrada, o nariz escorrendo, o ranho descendo pelo lábio superior.. A mãe olha e ralha.

— Tiãozinho! Limpa esse nariz!

O moleque passa a mão para limpar, espalha a sujeira pelo rosto. A diretora olha, horrorizada, para a cara lambuzada de ranho misturado com poeira.

— É Lidimar, dona. Lidimar é o nome dele.

No primeiro dia de aula, a mãe acompanha o menino até a escola. No caminho, vai lhe dando as últimas instruções.

— Presta atenção, Tiãozinho. Lá na escola ocê tem outro nome. É Lidimar. Mas só pra atender sua professora, viu?

A recomendação reaviva o grande desgosto que o marido estava lhe causando, sete anos depois de sua morte. O desgraçado bem que podia ter me falado, antes de sair de casa, que ia batizar o garoto com esse nome...como é mesmo? Lidimar, isto, Lidimar...que nome mais feio, parece nome de menina. Por essa dona Lídia não perdoava o finado. Viver todos aqueles anos chamando o menino de Tiãozinho e só ao fazer a matrícula na escola, o garoto já acostumado com o nome, é que dera pela enganação. E a vergonha de dizer para os vizinhos o ocorrido! Não, não vou contar pra ninguém. Pra mim, sempre será o Tiãozinho. Lá na escola que chamem de Lidimar, pouco me importa.

— Por que, manhê?

— Besteira do seu pai. Cê num entende. Vamo depressa, senão você atrasa logo no primeiro dia.

Mão na mão da mãe, lá vai Tiãozinho: chutando com os pés descalços o pó do caminho. Calça muito curta, blusa branca - que só será branca no primeiro dia de cada semana. Os cadernos, a cartilha, o lápis e a borracha dentro de um bornal feito pela mãe.

Miúdo, o rosto redondo de lua cheia, olhos brilhantes, saltando nas órbitas, revelando um medo geral pelo mundo desconhecido que se lhe revelava, o garoto entrou na sua classe. Por seu porte reduzido, foi-lhe determinado assentar em uma carteira na primeira fileira, bem defronte à professora. No começo, a timidez era geral. Mas, em seguida, veio o conhecimento, a conversa com outros colegas.

— Oi, Lidimar! Que é que ocê traz aí nessa sacola de pano?

— Nada não. Só os cadernos, o lápis... Meu nome é Tiãozinho.

— Mas a professora te chama de Lidimar.

— É, mas é só na escola, Lá em casa, meu nome é Tiãozinho.

A dubiedade tomou conta de Tiãozinho, aliás Lidimar. Ser chamado por outro nome que não Tiãozinho, era demais para seu conhecimento incipiente. Aliou essa duplicidade ao fato de ir para a escola. Lá deve ser mesmo assim, cada um tem outro nome. Mas logo verificou que não era bem assim, só ele tinha um nome na escola e outro em casa.

— A professora me falou que meu nome de verdade é Lidimar.

— É, ela falou, mas você é Tiãozinho, e pronto !

— Mas, por quê?

— Cê não entende. Seu pai é que sabe. Mas ele já tá morto.

O garoto já não aceitava essa falta de explicação.Com o passar do tempo, a duplicidade do tratamento começou a afetar o garoto. Esperto e inteligente, questionava constantemente a mãe, a única que poderia lhe revelar o qüiproquó. A professora mostrava-se mais severa.

— Seu nome é LIDIMAR, não tem nada de Sebastião, muito menos de Tiãozinho. — E pronunciava o Tiãozinho como se fosse um nome feio, uma blasfêmia.

Os colegas, com a crueldade característica da infância, souberam da história, e logo começou a chacota com Tiãozinho, aliás, Lidimar. Gritavam no recreio:

— Lidi-Lidi-Lidi Tião – Lidimar é um cagão!

A mãe, quando Tiãozinho lhe contou, apenas aconselhou-o, vagamente.

— Não incomoda não, filho.

— Mas, mãnhê, eles ficam gritando no recreio, na saída da aula. Ajuntam numa turma só pra me chamar de Lidi-tião.

Uma raiva foi tomando conta de Lidimar (ou Tiãozinho). No início, era contra os colegas, mas em seguida voltou-se contra a mãe, ela nunca acha que eu vou saber, mas vou descobrir, sim. Ela falou que meu pai sabe. E que ele tá morto.

Numa briga de rua, por defender seu nome, junto com os socos do Laerte, vinha o xingamento:

— Toma, seu filho da puta!

Em casa, onde chegou arranhado, além de receber uns tapas da mãe, ainda ficou de castigo. Mas a curiosidade o remoia por dentro.

— Manhê, o que é filho da puta?

— Que é isso, Tiãozinho? Onde escutou isso?

— Foi o Laerte, que me bateu e me xingou desse nome.

— Cê num entende. Num acredita nele não. Faz de conta que não ouviu.

Os xingamentos se multiplicavam.

— Lidi-tião, lidi-tião, gosta de lamber sabão!

— Lidimar num tem pai – Lidimar é fidaputa!

Como não encontrava explicação para seu duplo nome, Lidimar sentia-se o mais miserável dos meninos. Com dez anos, continuava pequeno e fraco. Sem uma palavra de coragem da própria mãe, não tinha como revidar às provocações dos colegas. Foi se acovardando. Corria, fugia. E odiava a todos, principalmente à mãe.

— O Zezinho me explicou o que é filho da puta.

— Que é isso, Tiãozinho? Cala a boca!

— Lidimar. Meu nome é Lidimar. E o Zezinho falou que filho da puta é filho de mulher da vida, de mulher sem-vergonha. Que não tem marido. É verdade?

A mãe ameaçou de lhe dar um safanão. Lidimar esquivou-se, fugiu. De longe, falou:

— Cadê meu pai? Se a senhora não quer me falar, vou procurar.

É claro que era apenas bravata de criança. Mas a idéia era boa. Tão boa que, com o passar do tempo, foi crescendo, crescendo conforme Lidimar passava de garoto a jovem. Incorporando-se ao seu espírito, aumentando sempre, a curiosidade por encontrar o pai, alimentada pela teima da mãe em não lhe revelar a razão da estranha duplicidade de seu próprio nome.

Terminou o grupo aos quatorze anos, tendo repetido algumas séries. Nos últimos anos, desistira de inquirir a mãe a respeito de seus nomes, Lidimar ou Tiãozinho, de seu pai, de qualquer coisa. Já estava bem taludo, crescera bastante ultimamente. Tentou arrumar emprego na cidade, não conseguiu. Trabalho, só obtinha ajudando os sitiantes da redondeza, ganhando uma miséria.

Determinado a desvendar o mistério da sua vida de dois nomes e pai desconhecido, foi guardando os parcos miúdos que recebia do trabalho. Ajuntou algum. Nada, ou quase nada, falava com a mãe, envelhecida pela labuta diária na bica d’água, lavando trouxas e trouxas de roupas. A obstinação tomou conta de sua mente: tinha de procurar o pai. Só ele poderia desvendar o mistério de seu nome e de sua origem.

E quando tinha o que julgava suficiente para sair de casa sem passar fome, sem dizer uma palavra à mãe, sequer um adeus, Lidimar partiu para nunca mais voltar.

. – ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 11 de fevereiro de 2002

CONTO # 141 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/04/2014
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