TARZAN POR MAMONAS

Descobriu o livro por acaso. Estava meio escondido na prateleira mais alta da estante, longe dos olhares dos alunos. Quando viu o título Tarzan o Filho das Selvas associou, de imediato, a figura da capa com os desenhos dos quadrinhos.

— Professora, pode pegar pra mim aquele livro do Tarzan? — Como não conseguia alcançar o volume, pediu à moça da biblioteca.

— Você acha que consegue ler esse livro? — Ela pergunta ao garoto, aluno do terceiro período do curso primário. — Desse tamanho, deve ser do primeiro ano, não vai entender nada, pensa a jovem que toma conta da biblioteca escolar. — Você não prefere um livro menor, história mais simples?

— Já li muitas histórias em quadrinhos de Tarzan, conheço o personagem. — Sérgio já tinha lido todos os livros “mais simples”, referidos pela bibliotecária.

Sentado na biblioteca, lê um bom trecho do livro até que a campainha toca, anunciando o fim das aulas da manhã. Os alunos que estavam na biblioteca preparam-se para sair.

— Professora, posso levar pra ler em casa? — Marcando cuidadosamente a página em que parou, o garoto mostra o olhar ansioso de quem não quer parar de ler nem por um instante.

— Sim. Espera um momento. — Agilmente, a bibliotecária retira o cartão de empréstimo, inserido num envelope colado na capa do livro, põe uma data e avisa ao garoto:

— Pronto. Tem uma semana pra devolver. Cuidado, hein, não estraga o livro, tá bom?

— Brigado, fessora! — Sérgio sai, serelepe e feliz. Ela tá pensando que eu não sei ler! Vou acabar de ler hoje mesmo.

Não foi capaz de ler todo o livro na parte da tarde. Os deveres da escola para serem feitos em casa, mais o tempo ajudando o pai na horta do quintal, impediram que ele terminasse a leitura das aventuras do Tarzan. Mesmo assim, leu mais da metade. Não conseguia largar o livro, fascinado com as aventuras do garoto criado por chimpanzés no meio da floresta africana. Em muitas passagens, identificou-se com o Tarzan garoto, imaginando-se pulando nos galhos das mangueiras na chácara do tio Geraldo. Kala, a macaca que substituiu a mãe, Bolgani, o gorila que matou o pai do boy, os selvagens canibais da tribo de Mbongo, a convivência com Tantor, o elefante, as lutas constantes com Numa, o leão ou com Sheeta, a pantera, todos os personagens e animais desfilaram nos seus devaneios da tarde e nos sonhos daquela noite.

No dia seguinte pegou firme e terminou a leitura. No terceiro dia, volta com o livro, entregando-o à moça da biblioteca.

— Pronto! Trouxe o Tarzan de volta. — Orgulhoso, satisfeito. Os olhos brilhantes. Ela pensou que eu ia demorar. Agora, vai pensar que não li o livro todo.

— Você leu o livro inteirinho? — Ela pergunta, eco do pensamento do garoto.

— Claro! Pode perguntar o que quiser, que respondo.

— Não, não é necessário. Acredito em você, garoto.

— Tem mais livros de Tarzan aí na biblioteca?

— Não, só tem esse. — Ele já adivinhara. Mesmo assim, ficou tristonho.

Terminado o curso primário, veio, na seqüência natural, o curso ginasial. Serginho era um dos garotos menores em todo o Ginásio Municipal. Não era muito respeitado e botaram-lhe um rol de apelidos.

— Ô formiguinha elétrica, tá frio aí em baixo. — Vitor, alto e espigado, era quem mais o aborrecia.

— Ara, num me chateia, espanador da lua !

— Ovinho de tico-tico, vai lavar a cara! — Zizinho o amolava, fazendo referência ao seu rosto sardento. Como Zizinho era brigão, Sérgio não respondia ao insulto.

Compensava a pequenez da estatura com a esperteza no observar as coisas. Na primeira vez que em entrou na sala de estudos dos alunos internos, viu o armário de livros. E — que maravilha! — nas suas prateleiras uma coleção completa dos livros de Tarzan. Vistos através dos vidros do móvel, intocáveis, os volumes se afiguravam ao garoto um verdadeiro tesouro. Perguntou ao Irmão Gregório se poderia ler um daqueles livros.

— São para uso dos alunos internos. Só nas férias é que podem ser lidos pelos outros alunos. E são alugados. Um cruzeiro por volume, por quinze dias. — informou o Irmão Gregório, sem dar muita atenção ao garotinho, gabiru da primeira série.

Sérgio tomou nota da informação. Vou passar as férias lendo todos os livros de Tarzan! Mas onde é que vou arranjar o dinheiro para alugar os livros? De vez em quando, entrava na sala, quando estava vazia, e ficava namorando os volumes. Os títulos fascinantes: A volta de Tarzan... Tarzan, o Invencível... Tarzan e os homens-formigas...

Já no primeiro semestre ficou sabendo de muitas particularidades do colégio: além dessa história de os livros serem apenas para os alunos internos, o que era uma injustiça, pensava, tinha outras coisas interessantes. Uma delas era o fabrico de óleo de mamona pelo Irmão Amadeu. O óleo era usado para a lâmpada-de-óleo, que ficava acesa dia e noite na capela. Para fazer o óleo de mamona, o Irmão comprava sementes de mamona de garotos da vizinhança do ginásio.

Taí um jeito de arrumar o dinheiro pra alugar os livros do Irmão Gregório.

Sérgio sabia onde conseguir muita semente de mamona. No Buracão do lixo cresciam as mamoneiras, viçosas, altas, cheias de pencas de sementes. Verdes, eram excelentes para servirem como projéteis para os estilingues. A cratera conhecida como Buracão do lixo era um lugar sinistro. Uma grande voçoroca onde o lixo coletado na cidade era jogado há muitos anos. Crescia mato por todos os lados, principalmente as mamoneiras, que iam predominando sobre todas as outras pragas. Em alguns pontos, o lixo já constituía um terreno firme, de onde o capim gordura vicejava, arroxeando os locais com sua flor de intenso colorido. O local era de freqüência proibida aos garotos, principalmente se estivessem descalços: cacos de vidros, tocos de madeiras com pregos, e outros detritos, representavam um perigo constante. Sem falar nos bichos que fuçavam a sujeira.

— Vamos catar mamona no Buracão de lixo? — Sérgio falou com Miltinho e Dito, colegas de classe e amigos fora dela.

— Cê besta? Ali tá assim de caco de vidro, e tem rato que não acaba mais.

— A gente trepa nos pés de mamona, eles agüentam a gente, e não tem perigo dos bichos morder a gente.

Foram os três. Colheram muitas pencas de mamona. Só aproveitaram as que tinham as bolotas quase secas, em vias de estralar e soltar as sementes. Numa só tarde, obtiveram mais de cinco litros de sementes, que foram negociadas com o Irmão, na base de cinqüenta centavos por litro.

— É uma miséria! Dá muito trabalho pra pouco resultado. — Dito queixava-se do valor recebido.

Tiveram de repartir CR$ 2,50 entre os três, o que gerou certa dificuldade. Alguém iria ficar com alguns centavos a mais.

— Não compensa. Num vou mais nessa não. — Miltinho também não se entusiasmou.

Sérgio insistiu. Passava as tardes de sábado e alguns domingos catando mamona, estendendo no quintal para secar e ajuntando, pacientemente, os litros de semente. Subia pelos pés, ou usava uma vara de bambu para derrubar os cachos de mamona. Esperto, leve, passava de uma mamoneira a outra, pelos galhos, sem precisar descer ao chão. Por momentos, imaginava-se Tarzan, pulando de galho em galho. Em pouco tempo, e antes de as férias chegarem, tinha manipulado tantos litros de mamona que conseguira amealhar Cr$ 13,oo. O pai de Sérgio ficou orgulhoso dessa atividade do filho, reveladora de ambição e jeito para negócios. Mal sabia ele qual destino o filho planejara para as suas economias.

Mal terminou a última prova do primeiro semestre, procura o Irmão Gregório, para alugar os livros.

— Que livro você quer? — O irmão destrancou a porta do armário,usando uma das chaves de seu molho com mais de trinta.

— Todos os de Tarzan. — Sérgio nem titubeou em responder, sabia o que queria.

— Escolhe dois. Quando você devolver, leva mais. Me paga adiantado, são dois cruzeiros.

Sérgio tinha o dinheiro no jeito, metido no bolso da camisa. Pagou e escolheu os volumes, procurando seguir a série.

— Levo A Volta de Tarzan e O Filho de Tarzan.

Apanhou os dois livros e saiu correndo. Não levou uma semana para ler os volumes. Voltou ao ginásio, trocou os livros, pagou mais aluguel e de novo enfiou a cara nos romances do herói selvagem. E assim, numa rápida sucessão de idas e vindas, trocas e leituras, esgotou os seus recursos. O dinheiro acabou.

Vou apanhar mais mamona. Ainda tem cinco dias de férias, dá pra ler mais dois livros. Pensou e agiu. Colheu num só dia cinco litros de sementes que levou, à tardinha, para vender ao Irmão Amadeu e alugar ainda naquele dia, mais 2 livros.

— O Irmão Amadeu viajou ontem de tarde. — Jeremias, o porteiro, não deixou Sérgio entrar no colégio.

— Quando é que ele volta? — Aturdido, o garoto ainda tem esperança.

— Foi embora. Transferido para Varginha. Não volta mais.

Que porcaria! E agora, que fazer com o saquinho de sementes de mamona?

— E tem algum Irmão que vai continuar fazendo óleo? Quero vender essas sementes.

— Essa coisa de fazer óleo de mamona é só do Irmão Amadeu. Nenhum outro irmão faz isso, não.

Acabou-se o que era doce. Sai do ginásio com raiva e joga o saquinho de sementes num terreno baldio.Para Sérgio, as férias de junho terminaram ali. Cinco dias antes do início das aulas do segundo semestre.

De volta às aulas, Sérgio passou longas horas matutando, pensando em como arranjar dinheiro pra alugar os livros de Tarzan nas próximas férias. Nos três meses de férias de fim de anos, poderia ler todos os livros. Se tivesse dinheiro para alugá-los. Pedir ao pai, nem pensar, ele vai perguntar pra que quero dinheiro e vou ter de contar, não me empresta e ainda vai me dar uma bronca. Não sabia fazer nada para ganhar dinheiro, a não ser catar mamona. Mas não tinha pra quem vender.

A solução do problema chegou no decorrer do segundo semestre. Inesperadamente. Sem confusões nem trabalho extra. Acontecia que...

Bem, mas isso já é assunto para outra história.

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Antonio Roque Gobbo,

Belo Horizonte, 24 de novembro de 2001.

CONTO # 130 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/04/2014
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