A CAVERNA DOS ESCRAVOS
Tarde de mormaço. Não é por estar a quase mil metros de altitude que a pacata cidade serrana se vê livre dos calores do verão. As pancadas de chuva quase todas as tardes só fazem piorar a situação: um mormaço úmido sobe do chão, intensificando a sensação de calor. Tom sente na pele, ou melhor, no corpo todo, a languidez e a preguiça aumentando à medida que a tarde avança. Tem de estudar, todavia. As provas finais do curso ginasial se aproximam. Dentro de pouco mais de um mês.
— Tiene de estudiar. Se lhevas una bomba, irás direto para la mecânica de autos, aprender el ofício. — A linguagem do pai, o velho Ramon Valentin, arrevesada porque nunca tratou de aprender o idioma da pátria adotiva, deixava bem claro o que aguardava Tom, se fracassasse nos estudos.
Tom tem doze anos e está na segunda série do ginásio. Não é afeito a estudar em casa, aprende mais prestando atenção nas aulas. Mas o latim, não tem jeito. É embirrado com a matéria.
— Pra que estudar uma língua que ninguém fala mais? —Argumentou com o professor ainda na primeira série. Não foi levado a sério, e, pior, ficou sendo o preferido do professor nas sabatinas e nas perguntas na sala de aula. A birra, mais a implicância do Irmão Lindolfo, e o fato de que não prestava atenção às aulas, criavam uma barreira para Tom aprender latim. Além das brincadeiras de Licurgo, que gritava no pátio, durante o recreio:
— Tom Valentim não gosta de latim !
Daí que, chegando o final do ano, precisava obter boas notas nas provas finais, estava apurado e com receio. Vou estudar debaixo da mangueira, lá é melhor, pensa. Pegando o livro, dirige-se para o quintal. Sob a sombra fresca da mangueira, limpa o chão e assenta-se. Tem um lugar habitual para ficar. O tronco está até lustroso pelo encostar constante do menino. Apoiando as costas no tronco da enorme árvore, abre o livro, começa a decorar.
— Diluvium ominia vestavit. — Repetiu mentalmente a frase quatro ou cinco vezes.— O dilúvio devastou tudo. — Distraía-se na tradução.
Puxa sua atenção de volta ao livro. Começa a ler a próxima sentença. Cum aquae decreverunt... A rolinha voa, assustada com um ruído que vem de trás do tronco da mangueira. Tom também ouve o barulho de passos, levanta-se num salto, deixando cair o livro. O que vê, mais do que susto, deixa-o estupefato. É o próprio Tim Capacete, o garoto das aventuras do livrinho.
— Mas... É o Tim Capacete!
— Em carne e osso!
— Que susto cê me pregou.
— Vim te chamar pra uma aventura.
— Pra onde?
— Vem comigo, no caminho te falo.
Tom levanta-se e observa o amigo, desconfiado. É do seu tamanho e veste uma roupa de escoteiro, de cor parda. Calças curtas e meias compridas, esportivas, vindo até as canelas. Um sapato de sola de borracha, forte. Tim é como ele, Tom, no tamanho e no porte. O capacete completa a indumentária: verde e com a tira de couro na aba, é tal e qual o seu. Tim parece mesmo um herói dos gibis. Ainda mais com aquele jeito de liderar, indicando a Tom o que fazer.
Tim corre na direção do muro no fundo do quintal. Com um pulo, galga a alta parede de tijolos e acena para Tom .
— Vem, Tom!
O garoto se esquece de tudo: do livro, do texto de latim. Ágil como o seu herói, num átimo está sobre o muro.
— Vamos pular do outro lado.
— É muito alto, Tim. Não vai dá.
— Passa a mão três vezes no seu capacete que você consegue.
Tom percebe que está usando seu capacete. Passa a mão na copa redonda, por três vezes, e sente uma poderosa transformação. Pula junto com Tim, e antes de chegar ao chão, adquire um estranho poder. Acompanha o herói, que sobe rumo às nuvens.
— Tim, estamos voando!
— Claro! Me acompanha.
Tom sente o vento na face. Um vento quente, o sol nos seus braços e pernas. Automaticamente, espicha os braços para a frente, imitando Tim e como fazem todos os heróis voadores. Essa deve ser a posição de vôo para quem não tem asas, pensa o garoto.
Sobre a cidade, sobre os campos e pastos, os bosques, os dois aventureiros voam serenamente. Alguns pássaros se assustam com sua presença, voam para longe. Urubus pairam muito acima, em vôos concêntricos.
— Para onde vamos?
Tim Capacete não responde, apenas indica a alta serra do Morro Vermelho. Tom conhece a região, já esteve diversas vezes pescando com colegas na Lagoa Preta, que fica ao pé da serra.
— Pro Morro vermelho? — Curioso, Tom insiste nas perguntas.
— Vamos pra Mata do Gavião. — Grita, sem se voltar para Tom.
Tom estremece. O lugar é misterioso, tem cavernas e precipícios. Fica no alto do Morro Vermelho, lugar de difícil acesso. Além de tudo, corre a fama de que a Caverna dos Escravos é um lugar mal assombrado, de alma do outro mundo.
O rio Liso serpenteia abaixo, em meandros preguiçosos. A Lagoa Preta reflete os raios do sol: inunda as margens pois está chovendo muito neste ano de 1948. Vista de cima, não é preta, e sim um vasto lençol azul-e-prata. Tom se delicia com o passeio aéreo. Ao se aproximarem da Mata do Gavião, vê, lá embaixo, a entrada da Caverna dos Escravos. Sente medo.
— Quero voltar!
— Coragem, Tom! Venha, vou lhe mostrar uma coisa da qual você vai gostar. — O entusiasmo de Tim contagia Tom.
Descem numa clareira defronte à caverna misteriosa. Tim avança na direção do buraco escuro que entra pelo paredão da montanha. Tom segue o líder. A claridade se transforma em negra escuridão. Habilmente, Tim saca de seu bolso uma lanterna de pilhas, verdadeira maravilha para Tom . O facho de luz, embora fraco, ilumina o chão e as paredes do buraco.
— Puxa, que enorme! Parece que não tem fim!
— É, a caverna entra pelo morro adentro. Aqui ficavam os negros que fugiam das fazendas, antes de seguirem para os quilombos. Ninguém vinha aqui, de medo das assombrações.
— Que são essas coisas aí no chão? — Nico observava muitos objetos, sacos cheio de coisas, uns amarrados, outros apenas encostados na parede. Alguns sacos parecem estar com mantimentos, arroz, feijão. Uma caixa de madeira, com tampa, está num dos cantos.
— Ih! Ali tem até um baú de tesouro!
— São coisas dos ladrões.
— Ladrões? Que ladrões? — Antes que Tim respondesse, Tom Valentim se lembra. Ouvira o pai comentar sobre roubos que estavam acontecendo na cidade, na região, e a polícia não conseguira descobrir os ladrões.
— Aqui é o esconderijo dos ladrões que estão roubando por aí. Eles roubam na cidade, nas fazendas, nos sítios, e se escondem aqui. Veja, ali tem algumas peças roubadas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. —Tim ilumina, com sua lanterninha, alguns candelabros que brilham, faiscando sua cobertura de ouro. Passa por uma imagem de santo e por outros objetos sacros.
— Você já sabia desse esconderijo?
— Sim, já faz tempo que venho seguindo esses larápios.
— E por que não conta logo para a polícia?
— Calma, Tom. Você vai me ajudar. Por isso te chamei, vamos pegar esses bandidos hoje.
Saem da caverna. Há sinais de fogueiras e pelo chão estão espalhados latas, panelas, garfos e colheres. Que mixórdia ! Os bandidos devem dormir aqui, pensa Tom. Ao lado, uma pedra gigantesca, sobre a qual os dois sobem sem dificuldade.
— Vamos vigiar daqui de cima. Quando eles voltarem, a gente vê pela trilha, lá embaixo, está vendo?
Tom firma a vista e vê três figurinhas caminhando, subindo, entrando na mata.
— Eles tão vindo!
— É, de certo já roubaram mais alguma fazenda, e vêm esconder o roubo aqui em cima.
Tom se esforça para ver ao longe. Põe as mãos fechadas em frente aos olhos, imitando binóculos.
— Passa a mão três vezes no capacete que sua visão aumenta. — Aconselha Tim.
Tom faz como Tim ensina, e imediatamente sua vista melhora. Vê as figuras como se estivessem a poucos metros de distância.
— São dois homens... e uma mulher !? — Tom maravilha-se com o poder aumentado da vista. É como a supervisão do Super-Homem! , pensa, atônito.
Os bandidos continuam subindo. Quando entram na mata, desaparecem da visão dos dois meninos.
— Venha, Tom, vamos nos esconder no fundo da caverna. — Tim pula da pedra, um salto de mais de três metros, com agilidade, no que é seguido por Tom.
Entram na caverna e vão bem para o fundo. Ali ficam escondidos, na maior escuridão. Tom sente a segurança de estar ao lado de seu herói. Esperam algum tempo. Ouvem os sons de conversa entrecortada, não percebem o que estão falando. Barulho de sacos sendo arrastados, objetos metálicos batendo de encontro à rocha das paredes da caverna.
Tom agora vê no escuro, sua potente visão revelando os bandidos, que chegam com sacolas de couro e embornais, cheios de objetos, mantimentos, tudo roubado.
Os dois garotos estão imóveis, silenciosos, no fundo da caverna. Tom sabe o que virá. Nem precisa mais perguntar ao Tim o que farão. Estou entendendo tudo o que Tim vai fazer. Ele quer que eu faça como ele.
Repentinamente, Tim e Tom começam a emitir berros, brados e urros, imitando vozes e sons de além-túmulo. Um escarcéu fantasmagórico, bem ao jeito da fama de local mal-assombrado. A reação dos bandidos é imediata. A mulher é a primeira a fugir, gritando:
— Corre, Joaquim! Foge, Mané! A caverna é mal-assombrada!
A mulher corre, um corisco vermelho desaparecendo no meio da mata. Os bandidos, atarantados, fogem em seguida, aos trambolhões. Descem a trilha num carreirão e só param muitos quilômetros abaixo, já fora da mata. Tom e Tim observam a fuga, e dão boas risadas.
— Os coitados ainda acreditam em assombrações!
— Puxa, Tim, eles fugiram! Agora, ninguém pega eles.
— Que nada! Daqui a pouco eles voltam. Vem, vamos tampar a caverna.
— Como, tampar a caverna?
— Com aquela pedra ali ao lado.
— Tá louco. A gente não agüenta.
— Esfrega seu capacete. A força vem.
Tom faz de novo o gesto que já se tornou usual: esfrega a mão três vezes no capacete, e sente-se com uma força descomunal. Ambos deslocam a imensa pedra, que fecha a caverna, por completo.
— E agora?
— Vamos escrever um bilhete para o delegado, dizendo que os bandidos estão escondidos aqui na mata da caverna.
— Mas eles fugiram!
— Qual o quê, Tom. Eles correram, mas passado o medo, vão voltar. Quando encontrarem a caverna fechada com a pedra, vão tentar, por todos os meios, tirar a pedra. Enquanto isso, o delegado vem com os soldados e prende os três.
Os dois garotos-heróis voltam, voando, para a cidade. Ao pé da mangueira, Tim rabisca um aviso numa folha do pequeno bloco de papel que tinha no bolso e entrega ao companheiro.
— Tome, você fica encarregado de entregar isso pro delegado.
— Você vai comigo?
— Não, meu tempo tá acabando, tenho que me mandar.
— Quando é que você volta?
— Quando você quiser. Basta passar a mão três vezes no seu capacete, e falar meu nome três vezes, que apareço. Pode me chamar sempre que for preciso ou quando tiver vontade de sair comigo, para outras aventuras. Tiau, Tom !
— Tiau, Tim.
Tom acena para Tim Capacete, que some por entre os ramos da mangueira.
— Tom! Tom! Vem tomar café!
O garoto estremunha-se, ainda ouvindo o som da ramagem fechando-se após a passagem de Tim Capacete. Levanta-se, recolhe o livro e atende ao chamado da mãe.
— Onde você estava?
— Estudando debaixo da mangueira.
O pai, vindo do quintal, entra na cozinha e no assunto.
— Pero, como desea aprender las lecciones? Estabas dormindo como uno zorrillo, alá, sob el árbol.
— Tava estudando, pai.
A argumentação não prossegue. Sob olhar de descrença do pai, os três tomam café silenciosamente.
Em seguida, Tom pega seu livro e vai para o quarto. Preocupado, verifica que o seu capacete está bem guardado no guarda-roupa.
Papai tem razão, estava dormindo, sonhei com Tim Capacete e toda aquela história dos ladrões. Agora, tenho de estudar de novo esse texto do Dilúvio. Ah, que chatice!
Abre o livro de latim na página cujo estudo iniciara à sombra da mangueira. Um pedaço de papel cai do livro. É um bilhete escrito a lápis, que Tom pega e lê:
"O esconderijo dos três ladrões
que estão roubando na cidade é na
Caverna dos Escravos, na Mata do Gavião."
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ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 29 de novembro de 2001
CONTO # 128 – DA SÉRIE MILISTÓRIAS