DE ORIZONA AO ARIZONA

O grupo se espalha rapidamente por entre as moitas de arbustos e capim ralo, escondendo-se da ameaça que se aproxima sob a forma de uma nuvem de poeira. O veículo, uma van preta, com vidros escuros, corre pela estrada empoeirada: os ilegais não sabem se são policiais disfarçados ou bandidos que infestam a região.

— Se virem qualquer movimento de pessoas ou veículos, tratem de se esconder. Podem ser policiais ou bandidos. — A ordem seca e final fora dada pelo chefe da turma que os guiara até a divisa e indicara-lhes o túnel estreito e a picada que deveriam seguir, do outro lado da fronteira.

Eram apenas oito pessoas, os que conseguiram atravessar a fronteira. Selma olhou para trás: a cerca de tela grossa impedia a visão. O lusco-fusco da madrugada não lhes permitia ver mais do que poucos metros à frente. Os faróis do veículo vasculhavam as margens do caminho. A luz passa rente a ela mas não revelam o esconderijo. Em poucos momentos, desaparece numa das curvas. A moça respira aliviada. Procura os companheiros. Não vê nenhum movimento, não ouve nenhum som que possa colocá-la em contato com eles.

Meu Deus, agora estou mesmo sozinha! Daqui pra frente vou ter de me virar sem ajuda de mais ninguém. — A constatação da dura realidade não aumenta seu medo. Ao contrário, sente que deve ter mais cautela, ser cuidadosa ao extremo. Nada de bobeira. Se me descuido, estou frita. Sem lenço e sem documento...que nem a música de Caetano. Tenho de alcançar a cidade, lá estarei salva. Olhando para todos os lados, abandona o esconderijo, passa a caminhar com cuidado, abaixada entre os arbustos que margeiam a estrada e cobrem toda a região. A madrugada fria se desmancha no alvorecer de céu estrelado, que vai sendo iluminado por um sol vermelho, revelando detalhes da região pela qual deve seguir caminho. Não se atreve a caminhar pela estrada e segue tropeçando nas raízes e nas pedras do terreno seco.

Por duas vezes notou um movimento sorrateiro nos arbustos. A vegetação, constituída de raquítica macega e arbustos de metro e meio, deixou entrever o chapéu de algum ilegal que teria, como ela, atravessado a fronteira. Selma não sabe, mas está num dos locais mais inóspitos do mundo: o deserto de Sonora, que se estende entre a região sudoeste dos Estados Unidos e norte do México. Local preferido pelos traficantes para introduzir mexicanos e toda a sorte de pessoas que desejam entrar ilegalmente no país no norte. A fronteira é marcada ostensivamente por uma cerca que corre toda a região. Por vezes é de alvenaria, a maior parte de tela grossa, com grandes extensões de chapas metálicas. Eletrificada em muitas seções. O estranho muro segue por montanhas, margeando rios, a perder de vista no chaparral, cortando áreas totalmente cobertas por cactos ou pequenos bosques que vicejam nos vales mais profundos, os canyons. Isso não é obstáculo para os eu se aventuram a passar por túneis, buracos estreitos cavados de um lado ao outro da fronteira.

As orientações recebidas, quando pagou dois mil dólares para fazer parte do grupo, foram poucas e limitadas à sua movimentação no deserto até chegar à localidade americana mais próxima da fronteira, conhecida como Lukevile. Dali pra frente, tudo corria por sua conta e risco. Teria de viajar de carona e atingir Tucson, onde sua prima Ondina a esperava.

Lukevile deve estar mais ao norte. Vou caminhar na direção daquela elevação. Dali poderei ter uma visão de toda a região. O sol já está acima do horizonte, o frescor da madrugada foi substituído rapidamente pelo calor, que cansa a moça. Veste uma jaqueta de mangas compridas e na cabeça usa um lenço de seda, que a protegem do sol inclemente.

A vegetação termina ao sopé da colina que Selma pretende subir. Não se incomoda em perder a proteção dos arbustos. Agora está longe da estrada, e pode ver à distância e observar a aproximação de qualquer pessoa ou veículo. Sobe a colina em passos moderados: mesmo acostumada às longas caminhadas, sente o cansaço advindo mais pelo constante medo de ser descoberta, pela tensão dos últimos dias de viagem. Ao alcançar o topo da elevação, vê que está certa em sua orientação: a estrada segue rumo ao norte e pode divisar no horizonte um aglomerado de construções, meio escondidas por uma névoa, indicação segura de ser a localidade para onde deve se dirigir.

Ao descer o morro, adentra por uma planície. Atravessa uma bela região do deserto, coberta pelos saguaros, cactos de porte elevado, que crescem eretos e verdes, dando a enganosa impressão de frescura. O terreno, porém, é pedregoso e Selma tropeça diversas vezes. Fôra advertida do perigo de caminhar por essa região durante o dia, pois é infestada de cascavéis. Sem alternativa, a moça segue seu caminho a passo cadenciado.

— É uma loucura isso que você pretende fazer. — Seu irmão a advertiu, quando ela comunicou à família a sua decisão.

— Ora bolas, sei que é perigoso, mas quero ir pros States. Já que me negaram o visto, vou pelo México. Lá tem jeito de entrar.

O sonho da moça era morar e trabalhar nos Estados Unidos. Ouvira falar das possibilidades de ganhar dinheiro na América. Conhecia até uma família que recebia dólares de dois rapazes que moravam em Los Angeles e trabalhavam em construções. Marcinho e Leonardo estavam por lá há alguns anos e com o dinheiro que mandavam para a família já tinham conseguido construir uma casa em Orizona. Os moços mandavam também muitas fotos, que corriam de mão em mão pela pequena cidade. Nas fotos eles apareciam dirigindo motos e em companhia de lindas morena. Selma invejava a dupla de rapazes (e as morenas que estavam com eles nas fotografias) que tinham sido seus colegas na escola.

— Se eles podem, por que eu não posso? — Era o argumento mais forte que usava quando conversava sobre o assunto com a família.

— Mas, pra que, Selma? Você está tão bem, tem seu emprego no escritório do seu Ozias, o que você ganha dá pra viver. — O pai tentava dissuadi-la, sem êxito.

— Ara, pai, lá nos States eu posso ganhar muito dinheiro, vou até mandar grana pra vocês, pode ter certeza. E depois, não vou viver a vida inteira trabalhando nesse escritório mixuruca de contabilidade. Nem o seu Ozias, que é o dono, ganha dinheiro. É um emprego sem futuro. Já estou com trinta anos, tenho de aproveitar, é agora ou nunca.

A determinação de Selma encontrou o primeiro obstáculo quando teve negado o visto de entrada.

— Deve ser porque sou morena. Esse pessoal é cheio de preconceito.

Selma tinha razão: sendo uma esbelta morena de longos cabelos negros, olhos muito grandes e boca generosa, os grossos lábios destacados pelo intenso vermelho do batom que usava, exibia o tipo herdado de avós e bisavós índios, negros e brancos. Mas a autoridade ianque não explicava a negativa. Portanto, a porta de entrada aos Estados Unidos, para Selma, estava fechada.

— Vou pelo México, ora se vou !

A determinação da moça era sua maior qualidade. Ainda que moradora em ma pequena cidade do interior de Goiás, sempre tivera os olhos voltados para uma vida melhor. Cheia de energia, praticara diversos esportes e ultimamente freqüentava um curso de karatê, sempre na busca de seu aprimoramento físico.

Se a porta da frente se cerrara, restava a Selma a porta dos fundos, isto é, entrar nos Estados Unidos pelo México. Procurou saber tim-tim por tim-tim da viagem que queria fazer. Ajuntou mais dinheiro para pagar a “operação” da entrada clandestina. Não foi fácil, mas conseguiu. Seguiu para Cancun, por ser a vigem aérea mais barata. Chegou à capital do México. Em ônibus desconjuntados, velhos, entupidos de gente e de bagagens, prosseguiu para o norte, rumo à fronteira. Guadalajara, Mazatlán, Ciudad Obregon, cidades mexicanas do seu longo roteiro, agora são lembranças fugidias na memória de Selma, nessa epopéia vivida seguida por muitos estrangeiros, traficantes de drogas, aventureiros de toda a espécie. Sempre na direção do norte. Rumo à terra das grandes possibilidades.

Ao chegar em Nogales, contratou os traficantes que a colocariam em solo americano.

— Dos mil dólares, ni más ni menos. Es lo precio para todos. No hacemos diferencia por seres una muchacha muy hermosa.

Selma pagou e aceitou o aviso dado pelos traficantes: devia se precaver, justamente por sua beleza e seu porte imponente, contra os homens que iria encontrar na sua aventura. De mochila às costas, os cabelos desgrenhados e empoeirados, as roupas amarfanhadas pelo uso constante dia-e-noite, ela deixara para trás todo seu charme. O trajeto entre os saguaros acrescentava outro inconveniente: os inúmeros arranhões e até rasgões nas roupas, ao esbarrar pelos troncos grossos do exótico cacto.

Enquanto caminhava, a fome apertou. Comeu alguns biscoitos recheados com chocolate e passou a mascar um chiclete, para mitigar a sede. O sol a pino levou-a a procurar um canyon, uma depressão no deserto, coberta de vegetação verde, que lhe proporcionou alguma sombra e até um pouco d´água, de uma poça de aspecto não muito agradável. Enfim, posso até descansar um pouco. Estou que não agüento mais. Meus pés estão machucados, vou refresca-los com nessa bendita água. — À medida que refrescava os pés, as mãos e a testa, um torpor foi tomando conta de seu corpo. Recostou-se num tronco, sob a sombra gostosa de um arbusto denso e adormeceu.

Acordou subitamente com a gargalhada vinda do alto. Uma silhueta se interpunha ente sua visão, mas ela viu com destaque o perfil de um homem usando chapéu de abas largas. Um caubói sem cavalo.

— Caramba, que maravilla! — À voz de zombaria seguiu-se outra gargalhada zombeteira. Selma tenta se levantar, mas o homem é mais rápido, pisa com a bota grosseira em seu braço, imobilizando-a.

— Seu desgraçado, me deixa. Filho duma puta, que é que você quer?

Outro homem surge, ainda mais ameaçador que o primeiro: além das roupas puídas, tem uma cicatriz na testa e o cabelo, sob o chapéu, está trançado em duas tiras. Esse desgraçado é índio. Tenho que me safar daqui! — Agindo desesperadamente, arranca o braço de sob o tacão d bota. Rola para o lado e, num pulo ágil, está de pé, frente a frente aos dois desconhecidos. O primeiro se desequilibra e balança o corpo na sua direção. A moça aplica-lhe um chute entre as virilhas e o bandido abaixa-se, levando as mãos aos escrotos e gritando de dor.

— Putana! Ai, ai, ai! — Por alguns momentos, está fora de combate. Entretanto, o Cara-de-Índio lança-se com todo seu peso sobre Selma, que resvala, os pés machucando-se no cascalho, e ambos caem. Selma luta com desespero, enfia os dedos nos olhos do índio, que afrouxa suas garras do corpo da moça para se defender. As unhas de Selma fizeram um estrago definitivo nos olhos do bandido, que alivia a pressão, levando as mãos ao rosto que sangra. O dia claro desaparece para ele, numa cortina de cegueira.

O Caubói, recuperado de sua dor, volta ao ataque. Atira-se sobre Selma, ainda no chão, e saca de um punhal, que maneja em direção ao rosto da moça. Ainda mais uma vez, ela usa com perícia e força a mão direita, segurando o punho do bandido, detendo o movimento com a faca a apenas alguns centímetros de seu rosto.

— Víbora! Voy a corta-la como a uma cascabela.

Impedida de se movimentar, pois o Caubói está com todo seu peso sobre ela, alcança, com a mão esquerda, uma pedra, que usa para malhar violentamente a fronte do agressor. O bandido sente a pancada, afrouxa a pressão da mão com a faca e arreai ao lado de Selma. Ela se levanta num salto e tropeça no Cara-de-Índio, que, mesmo sem poder vê-la, agarra seu tornozelo. Desequilibrada, Selma cai de novo, desta vez bate com a cabeça pesadamente no chão e desmaia.

A dor lancinante nos olhos vazados não impede Cara-de-Índio de agarrar, com manopla de aço, o tornozelo da moça. Mesmo sentindo que ela está imóvel, segura firme. Por muito tempo, permanecem os três estendidos sobre o cascalho áspero. O sol inclemente bate chapado. Uma águia sobrevoa silente e altaneira, observando o cenário de desolação.

Quando volta de seu desmaio, Selma sente dor nos punhos e nos tornozelos: grossas tiras de couro amarram suas mãos e pés. O calor é insuportável. Os dois bandidos estão por perto: Cara-de-Índio está de cócoras, não se dá conta de que ela se movimenta ao voltar aos seus sentidos. O Caubói está de pé, andando por entre os diversos objetos. Já vasculhou a mochila da moça e esparramou todas as roupas e pertences pelo terreno. Ao notar que ela acordou do desmaio, agacha-se ao seu lado.

— Entonces, putana, donde está el dinero?

Exibindo algumas poucas notas, que são realmente os últimos dólares de Selma, quer saber onde está escondido o resto do dinheiro. Selma não responde. Tenta freneticamente se soltar. Puta merda! Se não consigo me safar, estes bandidos me matam aqui no deserto. Se falo que só tenho esses poucos dólares, aí então é que me...

Uma bofetada estrala em seu rosto, interrompendo seus pensamentos e seu mutismo.

— Ai, desgraçado! Só tenho esse dinheiro aí, nada mais!

Outra bofetada, essa agora mais forte que a anterior, lança a moça num torpor. Parece flutuar, num estado de semiconsciência. Sente o roçar das mãos do Caubói sobre seu corpo, as roupas sendo rasgadas. É revirada de um lado para outro, mas não sente mais dores. O sol bate forte em sua pele sensível, porém não lhe sente o calor. À medida que o bandido viola sua intimidade, suas forças a abandonam e ela mergulha no profundo vazio negro da inconsciência.

Selma foi encontrada dois dias após. Corvos e águias sobrevoavam a região, chamando a atenção de uma patrulha da fronteira. Seu corpo denunciava, desde o primeiro olhar, que fora vítima de inaudita e indescritível violência, antes de ser covardemente apunhalada.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 30 de setembro de 2001

Conto # 117 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/04/2014
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