SOB O SIGNO DE GÊMEOS
Se Philip Martin tivesse lido a coluna de horóscopo do The New York Morning na manhã de 11 de setembro de 2001, teria se deparado com uma verdadeira profecia. Nascido no dia 2 de junho de 1945, seu signo é Gêmeos, bem como o de suas filhas Dione e Doris. O pequeno tópico inserido na segunda coluna da página 33 do tablóide dizia:
Gêmeos: nascidos entre 21/5 e 20/6 –Junte suas energias para poder enfrentar a fase de intensa atividade que vai chegar. Se tudo correr bem e você se sair com êxito, muito terá aprendido e sua vida estará completamente mudada.
O engenheiro, racional por formação e convicção, não acredita em horóscopo e, portanto, não lê as previsões do dia. Todavia, por ocasião do nascimento de suas filhas, no dia anterior ao de seu aniversário, alguém comentou que, além de serem gêmeas, estavam sob o signo de Gêmeos, o que era muito significativo. Desde então, começou a notar que muita coisa acontecia em sua vida ao pares. Simples coincidência, pensava, tentando dar a si mesmo uma explicação, sem muita convicção.
A manhã estava clara, prenúncio de um da quente de outono em Nova York. O metrô viajava lotado de pessoas que se dirigiam ao trabalho. Na estação do World Trade Center — o centro financeiro da metrópole — os vagões se esvaziaram. Milhares de homens e mulheres, funcionários de empresas de todos os tipos de atividades, chegam para começar mais um corriqueiro dia de trabalho. Afastando-se da multidão, Philip sobe os lances da escada que leva direto ao seu local de trabalho.
Sempre afeito à rotina de muitos anos, ele se encaminha rapidamente para o segundo andar do subsolo da Torre Sul, onde estão os controles de todos os elevadores do edifício. Ao chegar, examina, antes de tudo, o painel de controle, onde uma vintena de telas de televisão mostra, simultaneamente, os pontos mais importantes de todo o sistema.
— Bom dia, Dick. Como estão as gaiolas?
Dick é o responsável pelo sistema, no turno anterior, da madrugada, e está saindo. Quando Philip assume, Dick passa-lhe informações a respeito: a rotina é seguida à risca.
— ‘ dia, Phil. Tudo nos conformes. Descendo e subindo sem parar.
As “gaiolas” são o conjunto de 220 elevadores, distribuídos igualmente entre as duas torres. Constituem um sistema complexo, sofisticado, rápido e seguro que transporta, todos os dias, mais de 50 mil trabalhadores e 100 mil turistas e visitantes. Funcionam sem problemas desde a inauguração das “Torres Gêmeas”, como os habitantes da cidade carinhosamente o gigantesco complexo. Apenas alguns estiveram paralisados por ocasião da explosão de uma bomba no subsolo da Torre Norte, na garagem, dois pavimentos acima da linha do metrô. São rápidos: em pouco mais de 1 minuto, num percurso direto, vai-se do pavimento térreo até o topo da torre, confortavelmente. As cabines são pressurizadas, de forma a compensar a diferença de pressão. Há uma divisão na mesa de controle, com painéis para elevadores que serve os funcionários e trabalhadores, separados dos elevadores destinados aos visitantes.
Philip observa o enorme relógio à sua frente: marca 7:48 a.m. Chegou um pouco adiantado, como, aliás, todos os dias. Seu turno se inicia às 8:30 e ele aprecia alguns momentos de conversa amena com Dick e os outros colegas que trabalham na mesma sala.
— Como está o balanço, agora de manhã?
— Nada de extraordinário. A oscilação é mínima. O tempo está calmo, sem turbulência.
Philip é engenheiro, especialista em sistemas de transportes internos em grandes edifícios e sente admiração pelos colegas construtores. Principalmente pelas soluções encontradas para os problemas apresentados pelas construções gigantescas, como as Torres Gêmeas. Um dos aspectos mais intrigantes é como os arquitetos neutralizaram os efeitos dos ventos: blocos de concreto de 600 toneladas foram instalados na cobertura de cada torre, para proporcionar-lhes o equilíbrio perante as correntes de vento.
— Nada além de vinte centímetros de balanço no topo. Normal. — Dick fala com sotaque arrastado que denuncia sua origem: veio do sul, nascido no Alabama.
Dick dá seu turno por encerrado. Despindo a jaqueta com as letras WTC, que é uma espécie de uniforme, dirige-se para a porta de saída.
— Ah! Lembrei-me agora: o “Chefão” que falar com você ainda de manhã. — Dado o aviso, Dick sai da sala assobiando.
“Chefão” é como todos chamam carinhosamente o Diretor Operacional das Torres. É o gerente de todas as unidades de serviço, desde a limpeza até a vigilância e a segurança.
Que será desta vez? — Philip pensa. Acho bom ir logo atendê-lo. Certificando-se pelo telefone interno, que o Chefão Kevin Morris está em seu escritório, no 29o. andar, para lá se dirige.
A entrevista é rápida: o diretor quer apenas certificar-se da participação de Philip na comissão dos festejos de Natal, como em todos os anos. Nada de extraordinário. Em apenas alguns minutos, Philip dá sua resposta afirmativa e sai da sala de Mister Kevin.
Com algumas pessoas, aguarda o elevador quando se ouve um estrondo e uma vibração que percorre toda a Torre Sul. O piso treme e algumas pessoas pedem o equilíbrio. Philip olha para fora, através dos espessos vidros duplex, e vê uma fumaça que baixa, e coisas caindo de cima do edifício. Alguns móveis tremeram e objetos decorativos caíram, estilhaçando-se.
— Meu Deus! Será um terremoto? — Alguém grita, apertando novamente o botão do elevador.
Philip sente que pode ser algo do gênero. Ou muito pior. Ao entrarem no elevador, um princípio de pânico se instala. O elevador pára abruptamente entre os andares 18 e 19.
— Calma, pessoal. Vamos com calma. Sou técnico nesta geringonça, vamos sair daqui a instantes.
Habilmente, força a porta, abrindo-a. Estão parados a meio metro do piso do 18o. andar. Sentem uma pressão e um calor intenso entrando pela cabine.
— Vamos descer com calma. Nada de atropelos. — Preparado para enfrentar emergências, Philip auxilia os passageiros a descerem para o corredor. — Agora, temos de descer pelas escadas. E depressa.
Aconteceu alguma coisa muito grave. Se fosse bomba, o prédio já teria explodido. — Sente um cheiro acre, de incêndio e de querosene. — Querosene? — Alguns instantes são suficientes para chegar a uma conclusão. — Algum avião chocou-se contra a Torre. — Lembra-se de um acidente ocorrido há alguns anos, quando um avião bateu no Empire State, mais para os lados do Central Park. Olha para o relógio: são 8:55 a.m. O choque ocorreu há apenas alguns minutos, constata o técnico dos elevadores.
À medida que vai descendo as escadas, aumenta o número de pessoas que se atropelam, no afã de chegar às saídas. Os elevadores estão paralisados. De repente, as luzes se apagam. Na escuridão total, o terror se dissemina. Aqui e ali começam a piscar pequenos pontos de luz: são chamas de isqueiros que irão orientar a retirada. Ouvem-se lamentos e choros. Quando atingem o terceiro andar, encontram-se com bombeiros que sobem, as luzes de seus capacetes brilhando na escuridão.
— Que aconteceu? — É a primeira pergunta que sai da boca de quase todos, dirigida aos bombeiros.
— Um avião chocou-se contra a Torre. Desçam depressa e saiam das imediações. — Informações e ordens chegam ao mesmo tempo. Há um certo tumulto, pois as escadas agora têm de ser divididas com os bombeiros que sobem.
Ao chegarem no piso ao nível da West Street, os policiais já haviam estabelecido um cordão de isolamento, constituindo um corredor que forçava todas as pessoas a saírem imediatamente das vizinhanças do edifício. O chão estava coalhado de detritos. Philip não teve como descer ao segundo andar do subsolo, embora esbravejasse com os policiais.
— Evacuem a área! Protejam suas cabeças! Rápido! Corram, corram! Evacuem a área! — Por todos os lados, ouviam-se ordens, através dos bombeiros e pelos megafones da polícia.
Empurrado pela multidão, Philip olhou para cima. O topo do edifício estava escondido sobe uma nuvem de fumaça negra, que aumentava a cada instante. Por entre a multidão que corria, caíam detritos e — horror dos horrores — corpos humanos! Correu para uma viatura policial, que comandava a retirada. Identificou-se, queria voltar para o edifício, saber como estavam os elevadores.
— Negativo! Todas as pessoas devem deixar o edifício. — O oficial foi taxativo.
Enquanto corria, Philip ouviu um zunido, e, sem seguida, um novo estrondo. Entre gritos, tosse, choros, uma nova tragédia foi anunciada:
— Outro avião bateu na Torre Norte!
Toda a área já estava coberta de caliça, poeira branca e fumaça. As pessoas eu chegavam, correndo, saindo da Torre Sul, estavam cobertas de pó branco, a maioria feridas, algumas amparadas ou carregadas. A multidão se esparramava para as ruas laterais, fugindo da larga praça. Alguns poucos veículos estacionados estava cobertos de detritos.
É um pesadelo! Isto não pode estar acontecendo! Dois aviões chocando-se contras as Torres! Não é possível!
Como milhares de americanos e estrangeiros ali naquele ambiente de destruição e horror, Philip relutava em acreditar no que via. Corria para o norte, seguindo a multidão. A fumaça se expandia, cobria a maior parte do céu, escurecendo a cidade. Poeira e detritos menores atingiam distâncias incalculáveis. Gritos de pavor chegavam aos seus ouvidos, vindos de todas as direções. Sentiu a vibração de seu telefone celular. Abrigou-se sob uma marquise antes de atender o chamado.
— Phil! Você está bem? — Era a esposa, aflitíssima.
— Sim, querida, estou bem. Mas o que está acontecendo?
— As Torres foram atacadas. Dois aviões foram lançados contra elas. Vimos tudo na tevê. Parece que...
Philip não consegue ouvir as palavras da mulher. Um estrondo cavo, acompanhado de uma nuvem, envolve tudo. O minúsculo celular cai de sus mãos, enquanto ele próprio é lançado ao solo, pela enorme concussão do ar. Sente-se afogar, envolvido pela nuvem acre e densa de poeira. Um calor terrível acompanha a poeira e a fumaça. Corre desesperadamente, prendendo a respiração.
Finalmente, consegue se safar, saindo para uma claridade opaca, onde pode respirar e receber ajuda de um policial que o arrasta para uma ambulância. Ali, uma máscara lhe é amarrada ao rosto, ao mesmo tempo em que uma garrafa com água lhe é entregue. Bebe sofregamente e derrama o resto sobre a cabeça, as mãos, passando pelo rosto, numa tentativa de se refrescar.
Olha ao redor. Centenas de pessoas passam correndo, desesperadas. Homens com roupas cobertas de pó, mulheres com vestidos rasgados, todos brancos como fantasmas. A poeira cobre tudo e todos. São personagens de um pesadelo, parecem sobreviventes de um ataque nuclear. O sol desapareceu, a região de altos edifícios está submersa em poeira e fumaça.
Não há nada que possa fazer pelas vítimas da catástrofe, sendo ele mesmo uma delas. Está zonzo e desorientado. Procura informações e ouve apenas frases quebradas.
— Um ataque terrorista... dois Boeings foram lançados contra as torres... A Torre Sul desabou há instantes... A Torre Norte também corre o risco de desabar...
Não há transporte. A estação do metrô está soterrada. Apenas carros de bombeiros, da polícia e ambulâncias transitam pelo local. Extenuado, Philip caminha na direção norte, para longe da catástrofe. Preocupa-se em dar notícias à esposa. A custo, consegue contactá-la e a tranqüiliza.
— Mas não sei como nem quando vou chegar em casa.Os transportes estão todos desorganizados. — Philip se faz de forte, mas está abalado. Suas palavras são entremeadas de soluços, de lágrimas de dor.
Deixa o bar onde, além de usar o telefone, foi ajudado pelos empregados: tomou um copo de leite e ouviu algumas palavras de ânimo. Ainda mais uma vez consulta o relógio: são 10:28 a.m. Ouve, novamente, um estrondo surdo, acompanhado de nova onda de fumaça negra e poeira branca: é a Torre Norte que acabou de desabar.
Caminhando e parando, recebendo ajuda de muitas pessoas, sob a forma de alimentos, frutas, caronas, chegar ao lar por volta de 2 horas da tarde. Abraça a esposa e as gêmeas. Enquanto olha para as filhas, se dá conta de que , mais uma vez, esteve envolvido numa situação de duplicidade: em menos de duas horas, dois gigantescos aviões lançados por terroristas,haviam destruído as duas torres do World Trade Center.
Antonio Roque Gobbo =
Belo Horizonte, 19 de setembro de 2001
CONTO # 116 DA SÉRIE MILISTÓRIAS