SANSON E DALILAH

— Ah! É você novamente, Margot? Outra injeção ou mais comprimidos? Meu estômago não agüenta mais tanto remédio.

Apalpando pela lateral da cama, a enorme mão deslizando sobre os lençóis, Michel encontra e aperta a mão delicada e fresca da enfermeira. Com os olhos totalmente obstruídos por curativos, percebe a aproximação pelo suave olor da dedicada mulher. Ela permite e corresponde ao aperto de mãos. Um náufrago se agarrando desesperadamente no último madeiro sobre um mar de desespero.

— Bom dia! —A voz é jovem. — É apenas seu café da manhã que está chegando.

Com a habilidade e a rapidez da prática, Margot dobra o lençol e ajuda Michel a sentar-se, elevando a cabeceira da cama. Em seguida, aproxima da cama a mesa especial, com a bandeja do café. Tateando sempre, Michel percebe a xícara de chocolate quente, os croissants, os potes de geléia e manteiga. Ajudado por Margot, começa o ritual de mais uma refeição, sem ver absolutamente nada do que está comendo e bebendo.

— Sem a sua ajuda, acabaria morrendo de inanição. Não tenho habilidade para fazer as coisas sem ver o que estou fazendo.

— Você está se saindo muito bem. — A voz suave soa como címbalo aos ouvidos de Michel. — Aqui na clínica temos pacientes que se desesperam, entram em depressão e pioram todo o tratamento, porque não conseguem ver. Você é diferente, tem entusiasmo e força de vontade. Por isso, sua recuperação é muito boa.

Terminada a refeição, Margot retira a mesa e deixa Michel com seus pensamentos. Está na Clínica de Olhos há quatro dias. Uma eternidade, nesta escuridão. Mas é bem melhor do que no Hospital Geral. Ele passa em revista, mais uma vez, os acontecimentos que o levaram àquela situação: a perna quebrada, equimoses por todo o corpo, a cabeça contundida e os olhos... O que aconteceu realmente com meus olhos?

Sem dúvida, fora vítima de uma cilada. A informação falsa de um endereço que seria local de distribuição de drogas, resultou numa investigação que levou Michel e Ives diretos a um moinho abandonado, onde ambos foram atacados por uma gangue e massacrados miseravelmente. Por ser mais forte e resistir ao ataque covarde, Michel foi espancado quase até à morte. Pouco se lembra da refrega, foram atacados pelas costas. Mas alguns lances brilham em sua mente, flashes de uma luta contra quatro ou cinco bandidos ao mesmo tempo.

Michel Sanson, o mais forte de todos os detetives de Paris, é imbatível num corpo-a-corpo. Ex-pugilista, tem seus próprios métodos de investigação e de ação. Trabalha com apenas dois ou três companheiros, saindo em duplas. Na tarde do encontro com os bandidos, havia escolhido o franzino Ives Le-Senechal para investigarem o local denunciado: um velho moinho nos arredores de Paris, aparentemente abandonado. Na tarde chuvosa, a silhueta da construção assomava-se fantasmagórica contra o céu cor de cinza.

Quando entrou no moinho, devidamente protegido por Ives, recebeu a primeira pancada, que o deixou tonto. Ao seu grito, Ives correu em seu auxílio. Diferente de Sanson, Ives era franzino e foi posto fora de combate na primeira cacetada. Ficou ele, Michel, por conta do enfrentamento de todo o grupo de violentos bandidos. Resistiu o quanto pôde, abateu três deles, que viu estendidos imóveis no chão de tábuas rústicas. Atacado ainda por mais dois, foi subjugado e sentiu quando um deles, com uma garrafa quebrada no gargalo, segurando-o pelos longos cabelos, enfiou-lhe o vidro pontiagudo, duas, três vezes, olhos adentro. À dor lancinante dos olhos feridos juntou-se o brilho de milhares de estrelas causado por uma pancada na sua nuca, a última luz que viu antes de desmaiar.

Voltou a si no leito do Hospital Geral. Tudo escuro. Dores por todo o corpo, da cabeça aos pés. A cabeça envolta em camadas e mais camadas de gaze, os olhos tamponados, a perna engessada. As mãos feridas nas palmas e nos dorsos, os nós dos dedos machucados de tanto esmurrar os adversários. Vomitou duas vezes antes que qualquer alimento lhe parasse no estômago. Permaneceu ali durante nove dias, sob tratamento intensivo e cuidados especiais. Quando sua cabeça ficou livre das ataduras, constatou que sua basta cabeleira tinha sido cortada. A cabeça fora raspada, a fim de facilitar os curativos dos inúmeros cortes. Lá se foi a juba. O que irá a seguir? Ainda de bom humor, conseguia lembrar-se da basta cabeleira ruiva, da qual tinha muito orgulho, que lhe descia até os ombros. No décimo dia após a cilada, Sanson foi transferido para a Clínica de Olhos.

Falsas denúncias eram comuns no Departamento de Entorpecentes de Paris. Mas todas as denúncias tinham de ser investigadas, e só se sabia que eram falsas depois de averiguadas. Aquela informação veio diretamente de sua namorada, que recebera um telefonema dando ciência do local suspeito. Dalilah e Sanson mantinham um relacionamento conturbado. Loiríssima, esbelta, mulher vivida e cheia de truques, jamais se revela a quem quer que seja – nem mesmo ao namorado. Envolvente e sedutora, sabe manobrar homens, trazendo-os aos seus pés, manejando-os ao seu bel-prazer. Sanson caiu em sua malha. Era irresistível a fascinação que ela exercia e tentou por todos os meios se afastar. Inutilmente. Teve recaídas tremendas e voltava aos braços da loira fatal.

O aviso de Dalilah foi feito com o propósito definido para que ela passasse ao namorado a informação. Estavam num período de estremecimento em suas relações. Mesmo assim, ela lhe telefonou, já que não queria se encontrar pessoalmente com ele.

— Como você obteve essa informação? Quem lhe avisou? — Michel queria mais detalhes.

— Sei lá, homem! Recebi apenas a direção, a voz era de mulher e disse que é um velho moinho, que está entulhado de droga. — Ela não mostrou vontade alguma de prosseguir do telefonema. — O resto é com você.

O que Sanson desconhecia de Dalilah era pouco, pois fizera suas investigações. Sabia que ela tinha sido prostituta e que se chafurdara nas drogas até mais não poder. Estava à beira da morte, quando foi resgatada pela equipe do Departamento de Entorpecentes e encaminhada a um centro de recuperação. Foi quando se conheceram.

O que Saint Saens desconhecia, ou fingia que não sabia, era sobre o profundo envolvimento de Dalilah com a rede de prostituição de Marselha. Lá era conhecida como Dali-la-Conne-d’or. A sua recuperação das drogas colocou-a também fora do circuito da prostituição.

Ao tratamento feito na Clínica de Olhos de Paris, durante seis meses, seguiram-se outros nos estabelecimentos mais sofisticados da França, Bélgica, Alemanha e Suíça. A cada passagem por um hospital ou clínica, ia-se confirmando a terrível constatação: Michael estava com a visão comprometida. O olho esquerdo, perfurado profundamente, não tinha mais condições de recuperação, nem mesmo através de transplante.

— Vamos trabalhar com a recuperação do olho direito. Tenho certeza de que pelo menos vinte por cento da capacidade visual será obtida. — O diagnóstico franco e aparentemente cruel foi exigido pelo próprio Michel, que queria saber da verdadeira situação, por mais dramática e dolorosa que pudesse ser.

Por mais de dois anos, Michel continuou em tratamento. Nesse período, freqüentava, ainda que licenciado, o Departamento de Entorpecentes e sabia de tudo o que se passava no mundo das drogas: a movimentação dos contraventores, os carregamentos que chegavam e saíam da França, as redes de distribuição. Sanson estava ciente de tudo o que era conhecido e rastreado pelos colegas.

Dalilah sumiu da sua vida após o episódio que lhe tirara a visão. Seus colegas relutaram em dar-lhe a notícia: ela voltara a Marselha, onde estava novamente em contato com traficantes. E os detetives da Entorpecentes jamais lhe revelaram que ela fora um dos elos da cadeia que passou a falsa informação no episódio da “Cilada do Moinho”, como ficou conhecido o triste acontecimento.

Michael Sanson continuou na divisão, por determinação de seu próprio chefe, dado o conhecimento que tinha de todo o bas-fond do tráfico de drogas. Passava a maior parte do tempo no escritório, estudando os movimentos dos traficantes, discutindo as operações programadas pelos colegas e participando, ainda que longe das ruas e dos locais de ação da polícia. Passou a se interessar particularmente pela Conexão Marselha, onde aumentava o tráfico. No importante porto meridional da França estava entrando grande quantidade de cocaína, vinda da América do Sul, principalmente em navios que traziam café da Colômbia.

Está quase cego. Só vê vultos, não identifica pessoas senão a curta distância. Não pode mais dirigir carros. Entrementes, continua sendo um homem fortíssimo. Não descuida de seu físico nem de sua aparência pessoal. Elegantes óculos escuros disfarçam a opacidade de seus olhos. Caminha com desenvoltura e seu espírito jamais deixou se abater pela deficiência. Ao contrário, está cada vez mais atento ao movimento dos traficantes e procurando sempre novos indícios, pistas. É um caçador incansável, farejando aqui e ali, ávido por resultados no combate aos traficantes em toda a França.

Novamente chegam aos seus ouvidos informações precisas a respeito da gangue de Marselha. E de novo acerta com Ives Lê-Senechal uma ação para averiguar a denúncia.

— Acho melhor você escolher outro companheiro. — Ives está receoso, pois conhece os métodos de Michel. — Da última vez em que agimos juntos, nos demos muito mal.

— Ah! Isto é superstição ou medo? Vamos lá, companheiro, você vai ser meu guia e prometo só observar. Deixo a ação para os colegas que vêem melhor do que eu, mas não têm o meu faro.

O local suspeito é uma casa de estilo oriental. Na frente, um enorme pórtico sustentado por colunas, de estilo assírio, os capitéis adornados com cabeças de touros. Janelas estreitas e altas, de vitrais coloridos. Pesadas cortinas escondem o interior do edifício. A frente é protegida por altas grades de metal. Um portão de ferro aciona-se por controle remoto, abrindo-se à chegada de um ou outro carro, que se dirige para os fundos.

— Mais parece um templo das histórias bíblicas. — O comentário é de Ives, que examina tudo detalhadamente e informa Michel.

— Você já viu algum? Aposto que nunca abriu a Bíblia. — Michel perdeu a vista, mas não o bom-humor.

— No cinema, no cinema. Já assisti a muitos filmes com aquelas histórias monumentais. Essa construção aí até parece ser um templo de judeus, filisteus, sei lá...

Estão observando de um esconderijo quase defronte à casa sob vigilância. Há três dias vêm se revezando no trabalho.

— O movimento tem sido pequeno, não vejo sinais de coisa importante. Acho que a informação não é tão quente como parecia ser.

— Calma, Ives. Os traficantes são muito irregulares, faz parte do esquema. Não repetem as ações, sempre intercalam períodos de ação, movimento, com tempos de calmaria. É para despistar.

A vigília merece recompensa. Na tarde do quarto dia, intensifica-se o movimento de carros. Vão chegando quase que ao mesmo tempo, mais de uma dezena, cada qual trazendo quatro, cinco elementos, que vão se adentrando pelo edifício, com familiaridade.

— Camarada, parece que vão fazer um congresso de traficantes. Todo mundo importante está lá dentro. — Ives acompanha, com seu binóculo, a chegada dos mais importantes chefes do tráfico em toda a França.

A um determinado momento, os portões cerrados, dois cães são soltos, e permanecem nos jardins, entre os carros.

— Agora, quem está dentro não sai e quem está fora não entra. Com aqueles cachorrões, é impossível transitar por ali.

— Tem certeza de que os bandidos estão reunidos lá dentro?

— Absoluta, Michel. Tem pra mais de cinqüenta elementos.

— Não tem gente armada no jardim?

— Não, só os dois cães.

Nem bem Ives acaba de falar, Michel sai correndo, desce pelas escadas, deixando o colega assustando. Quando volta a olhar pela janela, Michel já está correndo, atravessando a rua, em direção à casa suspeita.

— Merde! Onde ele pensa que vai?

A resposta acontece ante seu olhar estupefato. Michel galga, em um só arremesso, o alto gradil de metal, caindo em pé do outro lado, enquanto os cães se lançam em sua direção. Girando o corpo numa rapidez impressionante, com o pé direito levantado, abate o cachorro que chega primeiro. O segundo cachorro consegue pular na sua direção, mas é posto fora de combate com mortal soco que o alcança no lado da cabeça.

Não há nenhum sinal de que a ação de Michel tenha sido notada pelos homens reunidos dentro do palacete oriental. Michel não perde o impulso inicial. Quebra um dos enormes vitrais e ateia fogo nas cortinas, que imediatamente se transformam em altas labaredas. A porta principal é aberta e surgem dois bandidos, armas em punho, tossindo e gesticulando, sufocados pela fumaça. São abatidos instantaneamente por ele, que se postara estrategicamente na lateral, protegido por uma reentrância na fachada. Tranca a porta e usa um dos revólveres dos bandidos para travár definitivamente as portas, encerrando os bandidos no interiro do sobrado.

Espessa fumaça toma conta do edifício, labaredas saem por todas as janelas, cujos vidros, sob a ação do calor, se espatifam. Por entre a fumaça, Ives se assombra com o que vê: Sanson se coloca entre duas colunas do edifício e com os braços estendidos, força-as para lados opostos, tentando abalar a estrutura. A primeira coluna estala, quebra-se sob o esforço de Michel. Pedaços de pedra e alvenaria caem da coluna, o capitel cede e vem abaixo. Ao quebrar a primeira coluna, as demais caem uma após a outra, como pedras de dominó.

— Não pode ser. Isso é uma loucura, um suicídio! — Sem saber o que fazer, Ives corre na direção da casa. Inutilmente, pois a grade fronteira se lhe apresenta intransponível. E testemunha de perto o desabamento total do edifício, sem que ninguém conseguisse escapar.

A fumaça e a poeira atingem Ives. Com um tiro certeiro, quebra a fechadura do portão e entra correndo, na direção do local onde estaria o companheiro. Tudo é ruína e destruição. Todos os que estavam no edifício estão soterrados. Nenhum vestígio de vida. Segue-se um silêncio profundo, enquanto a poeira vai se depositando. O fogo continua em focos isolados. Perambulando por entre o caos, na procura do amigo, Ives vê algo que lhe chama a atenção. Na parte em que seria a cozinha ou saída dos fundos, algo dourado, brilhante. Ao se aproximar, verifica que é uma louríssima cabeleira de mulher.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 26 de julho de 2001.

Conto # 105 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/03/2014
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