O TOMBAMENTO DA SERRA DO CHAPADÃO

— Não, não e não! Já disse muitas vezes e torno a repetir. Não concordo e não permitirei essa bobagem que vocês querem fazer!

— Mas, senhor prefeito, esta medida vai ser benéfica para o município. Trará recursos, turistas e vai ajudar os índios.

— Besteira! Os índios vivem lá na sua aldeia, estão muito bem, obrigado, não precisam de ajuda de branco. O padre Diogo vai lá de quinze em quinze dias e diz que eles estão bem. Quanto aos turistas, essa gente só vem é sujar a cidade, jogar latas de cerveja vazias nas vias públicas. Dão um trabalhão danado para a limpeza, não compensa.

O prefeito da pequena cidade de Arapuá estava irredutível. No seu gabinete, estavam o líder dos vereadores e o funcionário do Instituto Geográfico e Histórico do Estado, doutor Jesuíno Bastos. Tentavam, pela enésima vez, convencer o prefeito da conveniência do tombamento da Serra do Chapadão. O prefeito, autoridade máxima que daria a aquiescência final à lei que permitiria o tombamento, era totalmente contra e se mostrava irredutível na sua posição.

A tentativa de tombamento já era assunto que transitava pelo Instituto há alguns anos. A Serra do Chapadão, situada na parte oeste do município, era importante local tanto do ponto de vista geográfico como histórico. Ali se situavam diversas nascentes de águas quentes, com propriedades terapêuticas. Na serra situava-se também o último reduto dos índios Arapuás. Uma aldeia miserável, feita de casebres de pau-a-pique e cobertas de folhas de indaiá. Os índios, em número de quarenta e dois, viviam da coleta de produtos da mata que habitavam. Felizmente para eles, a região situava-se num platô de difícil acesso. As altas paredes da serra constituíam uma defesa e um empecilho para a chegada dos curiosos, caçadores e cortadores de lenha ou derrubadores de matas. Era uma região tão isolada que conseguiu atravessar todos os anos de desenvolvimento do município — que já era quase centenário — sem ser devastada.

Quando chegaram os descobridores, vindos de Jacuípa, atravessaram justamente a Serra do Chapadão, por uma difícil passagem bem ao norte da chapada dos índios. Por isso só bem mais tarde é que a tribo foi “descoberta” e suas terras não foram reivindicadas por nenhum dos primeiros exploradores.

A tribo manteve seus costumes e sua cultura. Eram os índios da Serra do Chapadão os remanescentes da grande nação dos índios Ararás, que aparentemente ficou isolada, perdida pelas margens setentrionais do Rio Grande. Suas raízes, segundo o antropólogo Jesuíno Bastos, estão no ramo dos Ararás, que habitavam as margens do Rio Xingu, e pertenciam à família dos Caraíbas.

— Essa tribo até que teve sorte. Conseguiu permanecer isolada na serra, sem os contatos desagregadores com os brancos. — Com sua voz forte, o Professor Jesuíno explicava à assistência de mais uma de suas inúmeras conferências que fez na sede da Associação Comercial de Arapuá, cujo nome vinha exatamente da denominação indígena. — O seu isolamento foi a sua salvação. A sua cultura permitiu esse isolamento, mesmo porque nas suas terras nada havia que despertasse a cobiça dos colonizadores. A terra é ruim, imprópria para a agricultura. A mata era e continua sendo de difícil acesso e por isso conserva intactas a flora e a fauna. Os índios mantêm seus usos e costumes como há mais de cem, duzentos anos.

Os pacíficos Ararás tinham uma cultura bem apropriada ao seu habitat. Eram exímios catadores de mel e isso determinava todas as atividades da tribo. Pacíficos, viviam do que a mata lhes proporcionava. Não se tem notícia de expedições guerreiras ou expansionistas. O mel era sua maior fonte de alimentação, servindo também de terapia e até como artigo de toucador. As mulheres besuntavam a carapinha de mel e amaciavam os cabelos. Um toque de vaidade ou alguma atitude atávica inexplicável?

O mel era imprescindível: alimentação, remédios e bebida ritual. Uma espécie de hidromel, mistura de mel e água fermentada em cabaças fechadas e que os índios tomavam nas celebrações importantes da tribo. Usavam-no também para conservação de alimentos, cozinhando frutas e até carnes na calda grossa de mel e água. As águas térmicas que afloravam em diversas minas por todo o platô teriam algum sal ou conservante que serviam ao propósito de preservar os alimentos.

O prefeito era o maior proprietário rural do município e tinha fazendas também em Goiás. A sua principal fazenda, de mais de mil alqueires, chegava ao rés da serra do Chapadão. O tombamento da serra tanto poderia ser benéfico como poderia prejudicá-lo, dependendo do ponto de vista. Mas ninguém sabia a razão pela qual o prefeito era contra o tombamento. Era contra, e estava acabado.

— Ô Serapião, vê se deixa essa teimosia! Afinal, se você não permitir, os homens lá do Instituto Geográfico acabam arranjando um jeito e o tombamento sai de qualquer maneira. — Manoel Godoi, o vice-prefeito, tinha certa liberdade com o companheiro de política e tentava demovê-lo da posição.

— Não sai enquanto eu for prefeito e mandar aqui!

— E qual é a causa dessa teima?

— Isso é assunto meu, não interessa pra ninguém.

E o assunto continuava empacado. Enquanto isso, os índios permaneciam na sua taba, ignorados e ignorantes do que se passava, da importância de atos que poderiam influenciar diretamente nas suas vidas. Aliás, o que os brancos faziam ou deixavam de fazer jamais tinha despertado o interesse dos Ararás. Quando a primeira expedição atravessou a Serra, eles viram a coluna dos brancos. Sabiamente não se mostraram, pois sabiam que daquele grupo nada de bom viria. Sabiam do poder das suas armas e adivinhavam sua cobiça. Por isso, permaneceram quietos no seu platô, até que alguns caçadores mais afoitos galgaram o paredão e quebraram o isolamento.

Os brancos ficaram surpresos e os Ararás os trataram com respeito, mas sem servilismo. A notícia correu pelo povoado dos brancos, que logo procuraram organizar expedições até a aldeia dos índios. Nessa ocasião o povoado era administrado por Dom Felipe Guimarães, homem de grandes virtudes religiosas e sábio distribuidor de justiça. Desde o primeiro instante, ao saber da vila dos Ararás, proibiu qualquer expedição, visita, caçada ou o que quer que fosse, ao platô habitado pelos índios. Como era difícil a escalada dos paredões abruptos, a proibição surtiu efeito, e os índios permaneceram no seu santuário. Foi a salvação deles.

Entretanto, nas últimas décadas, a partir dos anos da Segunda Guerra Mundial, algumas pessoas tinham subido ao platô. Trouxeram de lá várias cabaças de mel puro, coletado pelos Ararás, bem como frutas cristalizadas e pedaços de carnes conservadas no mel. E algumas garrafas da bebida feita de mel. Se não foi pela cupidez, foi pela gula que os brancos se interessaram pelos Ararás. As amostras dos doces, carnes e bebida agradaram aos habitantes da cidade e um escambo foi logo estabelecido entre brancos e índios, com lucros para os primeiros e perdas irreparáveis para os últimos.

Padre Diogo, assim que assumiu a paróquia, no final da década de 1940, visitou a pequena taba e constatou que os índios, perdidas a inocência e a pureza, estavam se degradando rapidamente. Doenças foram transmitidas aos nativos e as mortes dizimaram a população da aldeia. Objetos foram fornecidos aos índios, que desejavam mais: panelas, roupas, calçados, chapéus, espelhos, essas coisas até então dispensáveis à vida natural. Comidas e, principalmente bebidas, tornaram-se objetos de troca. Os índios passaram a querer coisas dos brancos, com muito mais intensidade do que os brancos desejavam os produtos dos índios. Uma menina índia foi roubada da tribo e desapareceu no mundo dos brancos. Dois índios visitavam periodicamente a cidade, pedindo ajuda, que recebiam na forma de esmolas.

O encontro das fontes de águas térmicas provocou a subida de mais gente ao platô dos Ararás. Uma picada foi alargada para a passagem do jipe do Tiago Silveira, que trazia garrafões de água para a cidade, vendida como “milagrosa água dos Ararás”. Uma empresa engarrafadora de água de São Paulo mandou um alto funcionário averiguar a possibilidade de aproveitar as fontes.

Padre Diogo previu e preveniu o prefeito da calamidade que estava para se abater sobre a última tribo dos Ararás.

— Se alguma providência não for tomada, os índios desaparecem da Serra do Chapadão.

— Ora, padre, isso é da civilização. Quem é que vai impedir? — O prefeito estava mais interessado nos impostos que poderia arrecadar com a instalação da engarrafora de águas. — Além do mais, aquelas terras são devolutas, não têm dono.

— São dos índios.

— Não, não são dos índios. Eles têm documento de posse?

Ante tamanho desinteresse local, Padre Diogo dirigiu-se ao seu ex-colega de seminário, Jesuíno Bastos, antropólogo e humanista e alto funcionário do Estado, engajado em diversos movimentos sociais. A resposta do amigo foi rápida e eficiente. Através do Instituto Geográfico e Histórico, uma ação foi desencadeada: realizou-se um estudo completo da região da Serra da Canastra, bem como dos usos e costumes dos índios Ararás, ao mesmo tempo em que foi aberto um processo de tombamento da Serra do Chapadão.

Ao saber dessa última medida, o prefeito Serapião Gambeta ficou possesso, quase teve um enfarte.

— Que idéia mais maluca! Só pode ser coisa de padre e de gente atrasada. Se a serra for tombada, não poderemos explorar as fontes de águas quentes. Nem os índios poderão sair de sua aldeia. Que besteira!

Veio a briga com o padre e, por conseguinte, com a Igreja. O Bispado se manifestou, favorecendo o tombamento. Os adversários políticos de Serapião assumiram posição - mais por politicagem do que por qualquer outra coisa. Os vereadores logo fizeram um projeto de lei para facilitar o tombamento. A opinião pública foi bem dirigida pelos sermões do Padre Diogo (promovido, estrategicamente, a Monsenhor), cheios de idealismo e de autoridade, pois falava em nome da Paróquia, do Bispado, da Igreja, enfim!

Irredutível, o prefeito manteve-se contrário durante anos. A ninguém revelava as razões — se é que existiam — de sua posição. Ao término de seu mandato, vendo decrescer a sua popularidade e visando à reeleição, que corria o risco de perder, mudou o seu discurso. Convocou uma reunião dos vereadores, dos jornalistas, dos companheiros de partido, para comunicar a sua mudança de atitude. Cheio de pompa, falou mais de uma hora sobre os prós e os contras do tombamento da Serra. E finalizou a sua peroração:

— Dado o exposto, concordo com o tombamento da Serra. Com uma única condição: que a serra seja tombada para o lado de lá, não quero ver nenhuma parte da serra tombando sobre a minha fazenda.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 24 de julho de 2001.

Conto # 104 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/03/2014
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