O CERAMISTA DE ARGOS
Como há muitos e muitos anos, a pequena cidade exibe seu casario branco contrastando com o azul esmaecido e suave das colinas distantes. Sob o céu brilhante e claro, as casas se espalham pela planície, entremeadas por árvores solitárias. As construções são baixas, de um só pavimento. Diferente das cidades maiores, como Esparta e Micenas, o casario de Argos não obedece a um planejamento, e constituem um aglomerado irregular. Nota-se uma certa organização apenas ao redor da praça central: a ágora, que é, ao mesmo tempo, local de reuniões dos chefes locais, feiras diárias e ponto de reunião dos mercadores, agricultores e pastores, para intercâmbio de suas mercadorias. Aqui e ali, grupos de olmos e ciprestes erguem suas copas simétricas como flechas verticais. Além do casario, estende-se a planície: trigais e vinhedos, plantações de oliveiras e laranjeiras, viçosas pastagens, entremeados por áreas de floresta ainda intocada. Diversas manchas de terra vermelha indicam locais de argila da melhor qualidade. A região é famosa por sua cerâmica e o nos dias de mercado a praça torna-se pequena para tantos produtores.
— Pai, vou para Argos. — O comunicado de Hirson foi lacônico, pois sabia que quanto menos falasse, menor seria a reação do ilustre Zakintos de Pilos.
— Acaso te desagrada a vida que aqui tens? Não te bastam as minhas terras plenas de oliveiras, os pastos com carneiros e cavalos, que serão teus por legítimo direito? Que pretendes fazer em lugar tão atrasado?
— Sei que existem locais de bom barro, argila de qualidade especial. Desejo ser ceramista e escultor.
Desde muito jovem, Hirson gostava de esculpir no barro. Habilidoso por natureza, suas mãos amoldavam a massa terrosa, transformando-a, em instantes, em pequenas esculturas: animais, pessoas, barcos em miniatura. Exercitara-se no torno de fazer vasos, jarras e utensílios de uso doméstico.
— Não tenho tino para administrar vossas posses, pai. Prefiro enfiar a mão no barro, fazer minhas esculturas. Sou bom escultor, minhas peças têm aceitação.
— Acredito que seja apenas outra de tuas viagens. Dou-te minhas bênçãos, pois tenho certeza de que em breve estarás de volta a Pilos.
O velho Zakinos referia-se às diversas vezes em que seu filho Hirson saíra de casa, à procura de conhecimento e de aventuras. Nas viagens anteriores, o jovem percorrera toda a região ao norte de Pilos: Messenia, Arcádia, Argolia; atravessara os rios Peneu e Alfeu diversas vezes. Coisa de mocidade. Não era a primeira vez nem seria a última, pensou, conformado, Zakinos.
O percurso da viagem entre Pilos e Argos fora tranqüilo. Hirson escolhera uma boa montaria para si. Seu escravo Felemon o acompanhava em um cavalo menor, enquanto a carga estava arrumada nos lombos de um tordilho. Felemon fora escolhido pelo pai para acompanhá-lo: era escravo vindo de longe, viajado, sabia como evitar perigos, além de vigorosa musculatura.
— Vai te servir de ajudante e guardião. Procura conservá-lo sempre perto de ti. — Foram as últimas recomendações do velho, à despedida do filho.
— Vamos rumo a Messena. Devemos evitar a região de Esparta, que está muito conturbada. — Seguindo esta direção de Hirson, a pequena caravana caminhou para o nordeste. No quarto dia, chegaram a Messena, onde pararam por algumas horas. Prosseguiram na mesma direção e, ao entardecer do sexto dia, passaram pelo sopé do monte Itome. Dez dias depois chegaram às nascentes do rio Alfeu. A travessia foi tranqüila. No dia seguinte, chegaram a Megalópolis. Nessa cidade, bem maior do que Pilos e Messena, permaneceram dois dias.
A partir de Megalópolis, viajaram rumo leste. Nas proximidades de Tegea, no décimo-sexto dia, toparam com uma coluna de soldados que patrulhavam a região. Foram detidos e interrogados com selvageria. Mais do que as respostas corretas, valeu o saquinho pesado de moedas de prata que Hirson ofereceu, discretamente, ao chefe da cavalaria. Viram-se livres da patrulha do tirano de Micenas, que controlava toda a região da Argolia e o norte do Peloponeso. De Tegea a Argos foi uma rápida caminhada de meio dia.
Argos já era cidade antiga ao tempo em que Hirson chegara para ficar. Seu nome identificava-a com o mitológico monstro de cem olhos. Hirson conhecia bem a lenda: Argos fora encarregado por Hera de vigiar Io. Hermes, desejoso de se aproximar de Io, enfeitiçou Argos com a música de sua flauta e o matou. Hera ressuscitou Argos sob a forma de pavão e colocou seus cem olhos na cauda da ave. E lançou uma maldição: infeliz seria quem fizesse qualquer reprodução do monstro. Quanta bobagem! Eu mesmo já fiz mais de dez esculturas representando Argos. Pensou Hirson. Pragmático, não acreditava em tudo que as lendas narravam.
Encontrou uma cidade pequena, mas agitada. Mesmo estando a alguns quilômetros distante da costa, a cidade mantinha um grande comércio de mercadorias que eram remetidas aos navios ancorados na parte mais profunda do golfo de Argolia.
— Mas, que alvoroço! Por que tanta agitação? — Indagou ao proprietário da modesta estalagem em que se hospedara.
— Nada é certo, mas corre a notícia de que em Micenas, mais ao norte, está sendo organizado um grande exército. Os comerciantes estão procurando de tudo: cereais, lãs, animais vivos, azeite. Compram todo tipo de vasilhame: vasos, ânforas, botijas. Não tem mercadoria que chegue para os compradores de Micenas.
O conhecimento de que havia mercado para artigos de cerâmica entusiasmou Hirson. Tratou logo de procurar e encontrou, em seguida, locais de boa argila. Adquiriu o direito de posse da que lhe pareceu mais adequada: próxima da rota pela qual seguiam soldados e caravanas de comerciantes, ao lado da estrada que ligava Argos a Micenas. Ajudado por Felemon, dentro de pouco tempo montou uma oficina de ceramista, onde produzia centenas de peças, todas objeto de procura e aceitação por parte dos habitantes locais e dos comerciantes do norte.
Hirson teria por essa ocasião trinta anos. Sua figura era a de um cidadão comum, de constituição robusta e resistente, ágil e bem disposto. Dono de fino humor, comunicativo, viajante incansável, conhecia todos as cidades da Peloponésia e dava notícia de tudo o que acontecia na região. Ouvira muitas histórias, lendas da região e de locais distantes. Sabia da existência de uma importante cidade do outro lado do mar, chamada Atenas, cujas naves já haviam combatido os navios de Esparta e de Micenas.
Após muito viajar, decidira-se estabelecer. Era um homem solitário, não tinha pendores para constituir família. Recusava com bom humor os conselhos de Felemon.
— O mestre precisa de uma mulher. Não é bom viver assim, sem uma esposa.
— Ora, File, não se preocupe. Afinal, tenho Xerdes e Cronia que me satisfazem.
— Escravas não são esposas. E a família? O mestre precisa de herdeiros.
A conversa por aí não prosseguia. Hirson não estava preocupado em constituir família. Suas atenções voltavam-se para a oficina de cerâmica, na qual passava a maior parte do dia. Por insistência de Felemon, empregara alguns trabalhadores para os serviços mais rústicos do estabelcimento: cavar a argila no barreiro, amassá-la ao ponto de ser trabalhada. E até mesmo dois jovens estavam já trabalhando nos tornos, produzindo lindos vasos e ânforas esculturais.
A cidade crescia em produção, em novas casas e em importância. Uma guarnição de soldados de Micenas foi instalada, a fim de proteger a região das incursões dos espartanos. Esparta, situada bem ao sul, ameaçava as cidades do centro e do norte. Uma mensagem de seu pai dava conta dos horrores do domínio espartano: “Os soldados de Esparta cometem todo tipo de violência e desatinos. Não respeitam propriedades nem direitos dos cidadãos. Confiscam o que lhes interessam. Há inúmeros casos de violações de residências, mulheres e jovens atacadas violentamente pelos mercenários. Morte, violência, incêndios, acontecem todos os dias. Muitos rapazes foram forçados a ingressar nas tropas e levados para treinamento em Esparta. Dou graças aos deuses por estares distante desta região.”
Hirson tornou-se amigo de Eubonos, o chefe da guarnição de soldados de Micenas. Gostava de conversar sobre as regiões e localidades que conhecia. O comandante Eubonos, por força de sua profissão, conhecia toda a península e dava notícias dos acontecimentos mais recentes.
— A cidade de Micenas está sendo duplamente ameaçada. Esparta está cada vez mais agressiva, já domina todo o sul e o soldados fazem incursões pelo centro. Subjugaram Megalópolis e estão ampliando cada vez mais a área sob seu domínio. Se houver uma guerra entre Micenas e Esparta, Argos será irremediavelmente envolvida pelo conflito. Por outro lado, embarcações com mercadorias de Micenas já foram abordadas por barcos de guerra de Tróia, que estão infestando todo o mar Egeu.
Palavras proféticas, vindas da boca de um guerreiro do terceiro escalão, tornaram-se realidade nos tempos por vir. Hirson acompanhou a evolução dos movimentos de Esparta e de Micenas, na disputa pela hegemonia de toda a península peloponésica. Interessou-se pelos problemas de Argos, cujo crescimento era rápido e incessante. Apenas uma década após sua chegada, o pequeno conglomerado de casa transformou-se numa cidade importante, próspera, com centenas de artesãos envolvidos na produção de artigos diversos, muito procurados pelos comerciantes de Micenas. Os produtos de Argos eram levados para a outra banda do mar Egeu, vendidos em Creta, Rodes, Lesbos, Lenos e outras ilhas. Alguns barcos tinham sido abordados por troianos, que exigiram tributos pela passagem através do estreito de Helesponto.
Hirson via com interesse as mudanças. Estava profundamente inserido na transforamação da região. Sua cerâmica artesanal evoluíra. Era agora um grande produtor de ânforas, o principal fornecedor do exército de Micenas. As caravanas de animais carregados com artigos de sua produção partiam constantemente de Argos, em direção à grande cidade ao norte. Comerciantes vinham dos portos adjacentes, à procura das famosas peças de barro cozido produzidas em Argos.
O mais famoso ceramista da cidade prosperou a tal ponto que barracões tiveram de ser aumentados, fornos maiores substituíram os primitivos, e nos depósitos era mantido sempre razoável estoque para atender à demanda. Muitos empregados foram contratados. Investia todo seu lucro em melhorar e ampliar o negócio. Mesmo assim, Hirson manteve o hábito de fazer ele mesmo as peças mais bonitas. Era criativo, estava sempre imaginando e moldando outros objetos, como pratos de diversos tipos, pequenas caixas ou recipientes para as mais diversas finalidades. O artista não se submetia à produção massiva. Escultura de animais conhecidos, de dragões e bichos mitológicos eram feitos com capricho, os detalhes realçando cada peça assim como estatuetas de deuses e de deidades menores. Aplicava cores cujo segredo ele jamais revelou. Deliciava-se muito especialmente esculpindo cavalos: em marcha, em repouso, Pégasos e Centauros.
— Que movimentação é essa na sua guarnição? — Hirson indaga a Eubonos, promovido a capitão da guarnição e chefe militar nomeado para a região de Argos.
— Estou encarregado de organizar uma força militar exclusiva para Argos. — O comandante não tem segredos para Hirson. — O alistamento já está sendo feito, e conto com mais de cem jovens inscritos. Precisamos de um batalhão de quinhentos soldados para a defesa da cidade, em caso de ataque.
Em pouco tempo, a cidade estava organizada militarmente. Micenas reconhecia a importância de Argos, que se impunha pela sua produção e pelo importante comércio. Agora, tornava-se mais importante ainda pelo poder militar que adquiria. Sem tardança, foi reconhecida por Micenas como cidade-estado, e estabeleceu-se um acordo de mútua assistência em caso de guerra.
Eubonos foi chamado de volta a Micenas, promovido a general. O comando militar de Argos foi passado a Zilos, jovem oficial que se revelara excepcional líder e estrategista insuperável. Na tarde amena, o grupo reuniu-se em torno do altar de Zeus, a fim de assistir à entrega de oferendas e ao agradecimento de Eubonos ao seu protetor. O altar erguia-se numa das ruas de Argos, e o adro fronteiro estava repleto de pessoas importantes da cidade. Ao final do ato, Hirson abraçou o amigo de muitos anos.
— Que os Deuses aplainem seu caminho e o conduzam ao Olimpo.
Como simples homenagem, Hirson presenteou Zilos com uma singela escultura: um cavalo em marcha, cuja parte superior do corpo se abria. Era, na verdade, um receptáculo para moedas e jóias, que causou admiração de todos e emocionou o novo general.
Os acontecimentos engolfaram Argos, que foi irremediavelmente arrastada para a guerra que assolou toda a região circunscrita ao mar Egeu. Tróia, rica cidade que controlava o estreito de Helesponto, incomodava os comerciantes que demandavam as prósperas cidades na orla do Mar Negro. Os interesses de Micenas estendiam-se por toda a região, e chocaram-se com as exigências de Tróia. O rapto da princesa Helena, de Atenas, por Páris, de Tróia, deu origem a um conflito que envolveu todas as cidades-estados. Micenas e Esparta confederaram-se, e sob seu controle ficou toda a Peloponésia. Argos, Pilos, Midéia e muitas outras cidades tornaram-se vassalas da poderosa aliança militar. Liderada por Agamenon, rei de Micenas, as forças contrárias a Tróia venceram diversas batalhas e chegaram às portas da cidade fortificada. Durante dez anos o cerco não conseguiu diminuir a resistência dos troianos: um impasse que não prometia solução imediata.
Entre os generais das forças que combatiam Tróia, Eubonos gozava de enorme reputação. Vencera batalhas importantes, excelente estrategista, estava na frente de batalha e comandava o cerco da grande cidade inimiga. Eram freqüentes suas idas e vindas entre a planície de Tróia, onde o seu exército estava acantonado, e a cidade de Micenas, sede do poder de Agamenon. Em uma dessas viagens, encontra Hirson, que se tornara o maior fornecedor de objetos de cerâmica para o exército.
— Não temos como vencer a resistência de Tróia. Suas muralhas são impenetráveis. — Eubonos conversava com o velho amigo Hirson sobre a situação da guerra. Estavam nas dependências ocupadas pelo general. Os copos de vinho eram enchidos constantemente. Sobre a mesa, entre os dois, estava a escultura do cavalinho, presente do ceramista ao general, há muitos anos atrás. Um dos lados havia se lascado, formando um orifício através do qual podiam ser vistas jóias e algumas moedas.
— A guerra nos transformou a todos. — Falou Hirson, melancólico, mais para si mesmo. — Não faço mais esculturas como esta, não tenho tempo nem disposição.
Eubonos puxa para si a pequena escultura, passando a mão pela área danificada.
— Por Cérbero! — Sua exclamação é ouvida até mesmo pelos guardas que vigiam a porta principal da enorme sala. — Já sei como vamos entrar dentro da cidade de Tróia !
— Usando mais cavalos? — Atônito, Hirson não acompanha o pensamento de Eubonos.
— Não, amigo. Vamos usar um só cavalo. Mas um cavalo que será especial. Um cavalo de madeira.
— Não estou entendendo sua estratégia.
— Mas é simples! Um cavalo de madeira. Bastante grande para esconder no seu interior uma vintena de soldados. Deixamos o cavalo tão próximo quanto possível da muralha de Tróia. Enviamos mensageiros que informarão tratar-se de um presente dos gregos. Um gesto de amizade para conseguir a paz. Nossas tropas abandonam o local e se escondem atrás das colinas ao sul da cidade. Os troianos recolhem o cavalo para dentro da cidade. Uma vez no interior da cidade, nossos soldados, que estão escondidos dentro do cavalo, sairão, à noite, sorrateiramente. Incendiarão a cidade e abrirão as portas das muralhas. Nossas tropas, que estarão escondidas, atacam ao sinal do incêndio e penetrarão em Tróia!
Na tarde daquele mesmo dia, Eubonos levou ao seu chefe imediato Agamenon a idéia do cavalo para invadir Tróia.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 1 de junho de 2001
CONTO # 94 DA SÉRIE MILISTÓRIAS