CACHORRO - BANDIDO
As duas senhoras assistiam à novela das seis, como faziam costumeiramente ao anoitecer. O hábito de ver televisão estava arraigado, não dispensavam as novelas das seis, das sete e das oito da noite. Aposentadas e solteiras , as irmãs Nelita e Celeste viviam em modesta casa do bairro Cidade Nova, os dias passando tranqüilamente. A casa, cercada de varandas, tinha jardim na frente e quintal nos fundos. A segurança das duas estava confiada ao magnífico Leão, um excepcional cão de raça buldogue: meio mestiço, mas ainda assim, inspirador de respeito. De porte avantajado, totalmente negro, Leão andava ao redor da casa, vigiando com atenção a propriedade e mantendo o sossego de suas donas. Latia com quem se aproximasse da frente gradeada e com transeuntes que passavam rente ao muro dos fundos. Só se aquietava com os “psius!” e “quieto, Leão!” de uma ou outra das irmãs.
Naquele princípio de noite, a televisão estava apresentando, em edições extraordinárias, ao vivo e a cores, a seqüência de um assalto violento feito por três bandidos numa agência de banco na Avenida Francisco Sá. Tudo começou por volta das quatro da tarde. Os três assaltantes chegaram atirando nos seguranças. Houve reação e um dos bandidos foi morto na porta do banco. Os dois seguranças foram baleados. A polícia chegou em instantes, e houve troca de tiros entre policiais e os dois bandidos.
— Que horror! Os bandidos estão ficando cada vez mais perigosos. — Nelita comenta, mais para si mesma, ao assistir às cenas do assalto.
Os repórteres das diversas estações de TV chegaram ao local ao mesmo tempo que a polícia. Às cenas do assalto seguiram-se outras que mostravam a fuga dos bandidos. Numa seqüência de verdadeiro filme policial, os dois sobreviventes conseguiram escapar do cerco feito pela polícia. Armados de revólveres e de metralhadoras, abriram caminho, disparando em todas as direções. Transeuntes corriam ou se jogavam no chão, debaixo de carros ou detrás das árvores. Um tiro estilhaçou uma enorme vitrina, outro atingiu um fio de alta tensão, que veio ao chão entre faíscas e estouros. Um pandemônio se estabeleceu na avenida, cujo trânsito ficou paralisado.
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Leão latiu no quintal. Celeste gritou de dentro de casa “Quieto, Leão!” e o animal se acalmou. As duas continuaram de olhos pregados no aparelho, que mostrava os assaltantes correndo, de armas em punho, pela avenida. Um taxista estava arrancando seu carro para se safar da confusão, quando foi ameaçado pela arma engatilhada apontada para sua cabeça.
=Vai, pé na tábua, e nada de gracinha. — Os bandidos entraramm no carro e ordenam ao motorista a fuga. = Vai pela Contorno.
Apavorado, o taxista dirigiu o carro sem correr muito para evitar acidentes. Passaram sob os viadutos da Lagoinha e seguiram pelo túnel que acessa a Cidade Nova. O helicóptero da polícia perdeu de vista o táxi branco quando ele entrou no túnel.
=Pare aí! — Ordena um dos bandidos.
O motorista párou dentro do túnel. Os dois bandidos saltaram e imediatamente fizeram parar um Pálio azul. Mandaram o motorista sair. A confusão se estabeleceu dentro do túnel quando uma camioneta bateu no táxi. Ouviram-se tiros. Ao sair do outro lado do túnel, os bandidos estavam em outro carro, despistando a polícia.
Dirigindo como loucos, abandonaram a avenida e entraram pelo bairro. Numa curva fechada da rua Jacuí, o carro chocou-se espetacularmente contra uma árvore. Os bandidos deixaram o carro e sairam correndo a pé. Já escureceu e nas sombra a fuga se tornava mais fácil. Saltaram uma mureta, entraram por um barzinho e correram até os fundos. Ficaram alguns minutos escondidos, quando ouviram as sirenes das viaturas policiais. De alguma forma a polícia conseguira rastrear os bandidos e fechavam o cerco.
Aproveitando-se das sombras, os dois fugitivos pularam pelos quintais das casas. Um, dois, três quintais. Ao pularem no próximo quintal, foram recebidos pelo rosnar e latidos de um cão. Uma pancada com o cano da metralhadora afugenta o cachorro. Ouviu-se uma voz de mulher, vinda da casa.
=Quieto, Leão!
O cachorro fugiu, rumo ao outro extremo do quintal. Os bandidos ficaram silenciosos e quietos, atentos a possíveis movimentos dos moradores da casa parcamente iluminada. Ouviam apenas o som da televisão. Tudo calmo. Até as sirenes das patrulhas estavam se afastando. Aguardaram. Estavam cansados. A tranqüilidade do local animou os dois que procuraram ver, pelas janelas, o interior da residência.
Nelita continuava vendo TV. Não viram Celeste que tinha ido à cozinha. Leão estáva recolhido na sua casinha. Tudo parecia estar na maior tranqüilidade. As sombras dos bandidos não eram percebidas.
No momento seguinte, tudo se alterou. De comum acordo, os meliantes pularam pela janela da sala, e imediatamente imobilizaram Nelita. O movimento foi tão rápido e silencioso que Celeste leva um susto, ao voltar da cozinha. Os bandidos, que não sabiam da sua presença, agiram rápido, no sentido de agarrá-la. Surpresa, Celeste soltou um grito que ecoou na noite. Um murro na sua cabeça prostra-a , desmaiada, no chão.
Então, houve um inesperado desencadeamento de ação. Ouviram-se gritos na vizinhança e a sirene dos carros policiais se aproximavam rapidamente. Os bandidos foram localizados e a casa foi cercada por cinco viaturas que despejaram uma vintena de soldados empenhados na perseguição.
Celeste voltou a si, imobilizada e amordaçada. Viu Nelita, subjugada por um dos bandidos. O revólver apontado para sua cabeça. Percebeu que estão nas mãos de gente da pior espécie. Nelita chora.
— Quieta aí, sua filha da mãe. Se der um pio, mato vocês duas. Tá entendido?
Nelita concordou, aterrorizada, agitando a cabeça freneticamente. Os bandidos, entrincheirados dentro da casa, ouviram o megafone da polícia:
— Saiam de casa com as mãos para o alto. Vocês estão cercados. Não há como fugir. Saiam logo!
Um bandido foi até o fundo da casa e voltou com notícias:
— Lá atrás tá cheio de polícia. Tamo cercado. Não temo jeito de fugir daqui.
— Vamos negociar. Com estas duas putas aqui. Fazemos elas de reféns.
Lá fora, a polícia insistiu com avisos cada vez mais ameaçadores. Passado algum tempo, os bandidos responderam. Um pano branco na ponta de um cabo de vassoura foi acenado numa das janelas, indício de que queriam negociar. A polícia acedeu à negociação. Um bandido saiu no jardim, segurando Nelita à sua frente, usando-a como escudo contra possíveis disparos da polícia. Do canto da casa, surgiu Leão, que chegou dócil e começou a andar ao redor do bandido e de Nelita. O bandido não lhe deu importância.
A conversa entre o chefe do esquadrão policial e o bandido, usando Nelita como escudo, foi demorada e cheia de blefes. Os bandidos queriam advogado e veículo para a fuga, sem perseguição. Durante toda a negociação, Leão ficou zanzando perto de Nelita e seu captor. Sem manifestar qualquer ameaça ao bandido. Parecia até ser seu amigo.
Finalmente, as negociações chegaram ao final. Já é quase meia noite, quando os assaltantes se entregaram e são custodiados por uma advogada. Partiram numa viatura especial. Traumatizadas, Nelita e Celeste foram colocadas numa ambulância, estacionada há bastante tempo, à espera da solução do caso. Foram levadas a um hospital, onde foram medicadas e permaneceram em repouso.
Passados alguns dias, Nelita e Celeste, de volta ao lar, receberam a visita do irmão, Ricardo, que viera de S. Paulo especialmente para confortá-las.
— Agora que tudo passou, está na hora de vocês pensarem em aumentar a segurança da casa. — Aconselhou o irmão.
— Já começamos a melhorar nossa segurança. — Celeste informou.
— Ah, bom. Que providência já tomaram?
— Dei o Leão pra faxineira. Ela mora na favela da Pedreira, lá está assim de bandidos, e o Leão vai gostar de ficar por lá.
ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS) –
BELO HORIZONTE, 22.MAIO.2001
CONTO # 93 DA SÉRIE MILISTÓRIAS