OS CIGANOS

Inverno brabo, aquele de ‘42. São Pedro de certo esqueceu as torneiras abertas e só no começo do ano choveu tudo o que tinha para chover o ano inteiro. Dias e dias de chuva forte. De noite, porque estava escuro e devido ao mistério que envolve as horas noturnas, parecia que o mundo vinha abaixo. As lavouras verdejavam num verde forte, viçoso, agradecendo a umidade. Quando o sol ameaçava aparecer, logo nuvens pesadas, barrigudas e escuras apareciam, tapavam o astro e despejavam mais água.

Na cidade, os efeitos não eram tão agradáveis: mofo e umidade por todos os cantos. As pessoas, limitadas em seus movimentos, permaneciam em casa. Muitos resfriados. As enxurradas escalavrando calçadas e alicerces aumentara o risco de quem se atrevesse a caminhar sob a chuva. O andar tinha de ser lento, feito com cuidado, um pé após o outro, a fim de evitar escorregões e tombos.

Os ciganos chegaram encharcados e amassando a lama. As mulheres e crianças nos carroções, debaixo de lonas e encerados, deitavam olhares compridos através das frestas das táboas dos veículos. Os homens, montados, acompanhavam os carroções. Alguns usavam capas de cavalgar que abrigavam também as montarias.

A caravana chegou pelo alto da cidade, atravessou-a de um lado ao outro. Os nômades acamparam na parte mais baixa, num local apropriado: uma área plana, onde a grama batatais formava um tapete verde-esmeralda. Local usualmente usado pelos parques de diversão, circos e ciganos. Nas tardes de estio, estando o campinho vago, era usado também para as peladas de futebol dos times irregulares de São Roque da Serra.

Ficava a área próxima ao rio Santana, que estava com as águas grossas de tanta chuva. Corria no fundo de uma valada, escavada pelas águas. Na beira do barranco, alguns casebres miseráveis encostavam-se e apoiavam-se uns sobre os outros, solidários e na iminência de desabarem sobre o rio, dez metros abaixo. Era a Barroca Velha.

Agora era a vez dos ciganos ocuparem o local. Sempre debaixo de chuva, armaram suas tendas. Não foram objetos da curiosidade do pessoal da cidade, pois a população não saía de casa senão para o indispensável.

Por mais três dias a chuva judiou dos habitantes da pequena cidade e mais ainda dos ciganos. No sábado, a chuva parou por completo. O céu amanheceu lavado, exibindo um azul que doía nos olhos, o sol brilhando em toda a sua glória. Pessoas saíram sôfregas em busca de calor e luz. Antes do meio-dia chegaram carroças, charretes e cavaleiros, vindos dos sítios e fazendas, para o comércio habitual do último dia da semana. A cidade movimentou-se.

Também os ciganos emergiram de suas tendas. Alguns curiosos madrugadores passaram perto do acampamento. Vinham do pequeno aglomerado de casebres da margem do rio. Misturaram-se com os ciganos ao longo do pequeno trecho de estrada que chegava à cidade.

— Cê viu só que ciganada rica? Têm oito carroções e quantas barracas!

— Pssiu ! Fala baixo, olha eles aí perto da gente.

— Coisa engraçada, aquela barraca maior, no meio das outras menores. Nem parece de cigano, tão bem armada, tão limpa!

Os comentários eram a respeito de uma barraca enorme, de lona nova, verde-escura, toda fechada nas laterais. Abria-se na frente ao se afastarem as duas partes da grande lona, à maneira de um cortinado. Formava um galpão retangular, alto e amplo, bastante diferente das outras barracas, circulares e baixas.

No correr da tarde, os ciganos espalharam-se pela cidade. As vistosas zíngaras se ofereciam para ler as mãos das pessoas, numa abordagem franca e direta:

— Moço, deixa ver seu futuro?

Ou:

— Linda, vamos olhar a sorte?

Os homens, com tachos dependurados nos ombros e nos braços, o cobre batido faiscando os raios do sol forte.

— Cuidado com essas mulheres! Enquanto lêem a sorte, roubam o dinheiro. – O preconceito era responsável pelo pouco sucesso das ciganas.Já os homens, bons negociadores, encontravam as freguesas e conseguiam vender sua mercadoria.

— Quanto é este?

— Dois mil réis.

— E aquele maior?

— Cinco.

— Dou três.

Com os ciganos, a pechincha era obrigatória. A barganha fazia parte de qualquer transação.

— Gajão, leva estes três, me paga dez.

Após muita conversa, o cigano ameaçava ir embora, voltava, passava a mão sobre o lenço amarrado na cabeça, ajeitava a larga guaiaca, fazia uma verdadeira encenação. No final, sempre dava negócio: os tachos eram vendidos, de qualquer maneira.

Mas estes ciganos eram diferentes. Elas não se empenhavam muito em ler as linhas das mãos. Eles não estavam muito a fim de vender seus tachos. Sua mercadoria mais importante era outra: convidavam o povo para o espetáculo de cinema.

— Venham ver o grande espetáculo! Hoje às oito da noite. — Por onde passavam, deixavam o convite, feito de viva voz.

— Mas.. que vem a ser isso? Como é mesmo o nome? Cine... cinema?

— Ah! Então o grande barraco de lona é para o cinema. — Concluíram os mais espertos.

O máximo que a população de São Roque conhecia até então, em matéria de diversão, eram os poucos circos e os raros parques de diversões que estacionavam por três, quatro dias, na cidade e ofereciam um pouco de lazer e distração aos moradores. Cinema, a maioria nem sabia do que se tratava.

Foi grande a afluência. O ajuntamento de pessoas transformou-se numa fila defronte à grande barraca. Por um mil réis entrava-se no recinto.

— Que diacho de negócio é esse? — Surpresos, indagavam-se os habitantes.

— É um teatro de figuras e sombras que se movimentam naquele pano branco lá no fundo, tá vendo?

Não havia como sentar, o chão estava molhado. Os assistentes em pé procuravam ficar o mais perto possível do grande lençol branco esticado na parte do fundo da barraca. Acomodada a multidão, iniciou-se a sessão. Os lampiões foram apagados e o escuro causou algum rebuliço. O projetor, montado sobre uma mesa oposta à tela, dava mais mistério ao cenário. Agilmente o operador ligou o gerador de eletricidade e o projetor lançou luz sobre a tela, seguindo-se as primeiras imagens.

Ouviram-se exclamações de surpresa, seguidas de Psius! e gritos de Silêncio! Logo no início da projeção, três assistentes saíram correndo, apavorados, Isto é coisa do demo, cruz-credo! e sumiram na escuridão. Os ciganos riam gostosamente das reações das pessoas.

Era um filme mudo. Na tela as imagens de um pobre coitado e um garoto esperto em desastrosas e cômicas situações numa grande cidade. À medida que o pessoal perdia o medo e ficava mais à vontade, os risos e as gargalhadas foram crescendo. Alguém na platéia (teria sido algum cigano?) identificou o patético personagem:

— É o Carlitos!

As pessoas na platéia deleitaram-se com o filme, que durou apenas meia hora. Nem se deram conta do tremendo aguaceiro que despencara durante o espetáculo. A grande barraca de lona era forte, estava bem armada. Quando saíram, persistia ainda um chuvisqueiro teimoso.

— Amanhã tem mais, voltem todos! — Convidavam os ciganos. — Tragam os amigos, as crianças. Vai ser um filme da vida de Jesus.

No dia seguinte, domingo, após a missa das nove horas, os comentários variavam sobre o sucesso do cinema dos ciganos e a cheia do rio Santana.

— Puxa vida, o rio tá subindo que nem foguete!

— Se continuar assim, vai inundar o acampamento dos ciganos.

— E antes, arrasta os casebre da barranca.

— Vamos lá ver?

Os curiosos foram ver. O rio subira muito durante a noite, de longe se ouvia o chap-chap das pequenas marolas contra os barrancos marginais. Encontraram-se com os ciganos, que estavam assustados com a correnteza solapando a terra.

— Se subir mais meio metro, inunda tudo por aqui. — A informação era do Zeca Bezerra, antigo morador daquelas bandas, que falava com autoridade. — Já vi o rio brabo, mas como hoje, nunca!

O sol brilhante, porém, inspirava uma falsa confiança. O dia passou estiado e novamente à noite a tenda de cinema dos ciganos funcionou de forma a agradar os que pagaram para assistir ao novo programa: uma fita com a história de Jesus Cristo que fez muita gente chorar de emoção.

Ao final da sessão, de novo caía uma chuvinha mole. O povo voltou para a cidade, mas os ciganos foram examinar o rio.

— Tá subindo. — Constatou Benir, o chefe deles. — Vamos ficar atentos.

Pela meia-noite, nova pancada. Em poucos minutos, a enchente atingiu o topo do barranco e ameaçou transbordar. Ouviu-se um estalo vindo dos casebres da Barroca Velha. Os ciganos correram na direção do barulho e chegaram a tempo de ver o primeiro barraco inclinando-se para as águas que solapavam o sopé da precária construção. Um velho saiu correndo do barraco inclinado, gritando:

— Meu Deus, me ajuda! Socorro, gente!

Os ciganos foram ao seu encontro.

— Niquelina tá lá dentro. Salva ela, pelo amor de Deus!

Benir foi rápido nas ordens ao seu pessoal.

— Vamos tirar essa gente daqui. Omar, pega a mulher do velho, leva ela pro acampamento.

Omar, forte e ágil, num átimo resgatou a velha Niquelina. Bem a tempo de ver o barraco desmantelando-se, arrastado pelas águas.

— Corram todos para o acampamento! — Comandou, gritando.

Alguns coitados sobraçavam sacos e objetos que queriam salvar. A maioria, entretanto, não teve tempo sequer para salvar nada além de suas vidas. Um a um, os barracos foram destruídos e arrastados pela correnteza. Os ciganos assustaram-se. O chefe, porém, manteve o controle da situação.

— Vamos todos pra tenda do cinema.

Eram cerca de trinta pessoas. Entraram na tenda. Molhadas e tiritando de frio.

— Gengis e Omar, vão organizar nosso pessoal para levantar acampamento. — Benir comanda a retirada geral. — Coloquem todo mundo nos carroções e levem para a parte mais alta da cidade. Depois, voltem aqui para pegar este pessoal dos barracos.

Rapidamente os ciganos atrelam os animais e enchem os carroções. Crianças amontoadas com as tralhas, dentro dos veículos. Os homens guiam os animais e as mulheres caminham a pé, ao lado da caravana que logo se organiza. Animais relincham, crianças choram, homens gritam. As carroças atravessam toda a cidade, rumo aos locais mais elevados. Moradores debruçados nas janelas observam a movimentação.

— Tão indo embora. Fugindo da enchente. — Ninguém saiu de casa para saber o que realmente se passava.

Com muita pressa, os ciganos chegaram até o morrinho do Sanjulião, do outro lado da cidade. Descarregaram as carroças, armaram rapidamente as barracas e acomodaram as mulheres e as crianças. A escuridão da noite dificultava o trabalho. De volta ao acampamento, constataram que o rio continuava subindo e a água já estava próxima. Mais alguns centímetros e estaria tudo alagado. A chuva amainou. Na tenda de cinema, Omar animava os pobres coitados da vila levada pelas águas. Novamente os carroções foram carregados, agora com tudo o que restava do acampamento.

— E a tenda grande?

— Tem de ficar. Não temos para onde levar esses coitados.

— Mas o rio continua subindo!

— Vai estiar. Veja, a chuva já está passando.

A madrugada foi chegando, de mansinho, com preguiça. Animais e homens, cansados, já não tinham tanta pressa.

— Vão, levem tudo. Fico aqui na barraca com eles. — Omar estava determinado. — Não precisam voltar, eu me arranjo com eles.

Os veículos partiram cheios. Não voltaram. O rio rugia, as marolas quebravam nos troncos das árvores e nas touceiras de capim e chegava à beira do local onde os refugiados tremiam de frio e de medo. Omar observava, impaciente, o movimento da maré. Por diversas vezes o cigano chapinhou sobre o campinho encharcado para verificar o nível das águas. Ao se espraiar pelas margens, perdia a força, e agora parecia que já não subiam mais. Sim, não passavam dos grampos fincados no chão para a amarração da tenda. Por algumas horas, as águas se detiveram ali.

Dentro da barraca de cinema, a única que permaneceu no campinho, os refugiados esperavam. Calados, ansiosos. Alguns assentados ou deitados no chão úmido, cochilavam. Omar vigiava e escutava o barulho do rio. A noite foi longa e angustiante. Demorou a amanhecer. A claridade do dia chegou bem devagar, o céu escuro de nuvens pesadas. Algumas horas sem chuvas aliviaram a força do rio. As águas vagarosamente retrocediam para o leito do rio. O sol achou frestas entre as nuvens para lançar tímidos raios sobre a desolação. O frio entranhava pelas roupas. Os desabrigados movimentaram-se para fora da grande barraca, observando o retrocesso das águas. Passada a chuva, o rio voltava lentamente ao seu leito, entre os barrancos solapados.

Chegaram os primeiros curiosos que se assustaram com o que viram.

— Puxa vida! O rio levou o acampamento dos ciganos. Só ficou a barraca do cinema.

— E a vila da Barroca Vela ... sumiu !

Só quando se aproximaram e conversaram com Omar e as pessoas salvadas da enchente é que puderam saber realmente da extensão da tragédia. A população se surpreendeu com a coragem e o espírito de solidariedade dos ciganos. Os desabrigados da vila destruída foram levados para a escola local, alimentados e supridos de roupas e agasalhos.

O rio baixou e o perigo passou. O sol aqueceu e secou o campinho beira-rio. Os ciganos voltaram ao acampamento. Novas sessões de cinema foram programadas, outros filmes exibidos. Venderam tachos e mais tachos e as leitoras de mãos tiveram mais fregueses para suas adivinhações.

Esgotada a série de filmes, os ciganos arrumaram a tralha sobre os carroções, arrearam seus cavalos e se puseram naturalmente a caminho.

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ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS)

S.Sebastião do Paraíso, 12 –janeiro – 2001

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/03/2014
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