HOTEL GRANADA
— E então, agora está na hora de realizar seu sonho!
— Sonho? Que sonho?
— Você não se de lembra quando recomeçou a estudar inglês? Dizia que ao se aposentar, iria viajar pelos Estados Unidos falando inglês como americano.
— Ah, deixa pra lá.
— Vai desistir da promessa que fez para você mesmo? Aposentado você já está, agora tem de testar o seu inglês.
Lucy brincava com o marido, mas na realidade Fernando sempre teve esse desejo. Era afoito, gostava de sonhar, e realmente havia falado em ir à América.
— Vou com uma condição: você vai ser minha intérprete. — O marido topa a brincadeira da mulher.
— E por que não? — Ela entra, desafiadoramente, no sonho do marido.
Mas, na verdade, nenhum dos dois se julgava competente para sair assim, sem mais nem menos, por terras estrangeiras. Ele estava indeciso: traduzia bem mas falava mal. Ela, que estudava o idioma há menos tempo, era mais desenvolta na conversação. Não tinha receio de errar nem de fazer perguntas.
Fernando não se decidia. Lucy propôs:
— Vamos fazer um curso de conversação nos States. Você vai voltar afiadíssimo !
A idéia vingou. E ali estavam os dois no singelo Helby’s, em pleno centro de San Francisco. O sonho começara a virar realidade.
Acordou com as batidas na porta do quarto. Fernando continuou roncando. Lucy atendeu. Era Collette, companheira de viagem, francesa residente em São Paulo e que, como Lucy e Fernando, vinha melhorar seus conhecimentos de inglês.
— Vamos sair? Estou com uma fome danada.
Lucy olha o relógio: quase meia-noite. Dormiu mais de três horas, sente-se disposta e percebe que também está com fome.
— Me dê dez minutos, vou acordar o Fernando.
No saguão do hotel encontram-se os cinco companheiros de viagem: Lucy e Fernando, Collette, Luiz Roberto e Vanda. Viajaram juntos desde São Paulo, vinham para o curso de inglês avançado. Aproveitariam o mês de julho para quatro semanas de curso e os fins-de-semanas para passeios.
Saíram pelas ruas de San Francisco. Passava da meia-noite, mas o movimento de pessoas e carros era intenso.
— Parece que o povo aqui não dorme. — Comentário de Collette.
Lucy está esperta, Fernando nem tanto. Todos estão famintos. Procuram um restaurante. Entram pela Chinatown e ficam abobalhados com as lojas, os restaurantes típicos, os muitos artistas — músicos, declamadores, cantores — que se espalham pela principal rua do exótico bairro. Encontram a porta estreita de um restaurante. Entram, assentam-se e fazem os pedidos sem dificuldade.
— A comida chinesa é a mesma em qualquer parte do mundo. — Comenta Lucy, colocando-se como expert de assuntos gastronômicos. Olha para o marido. Fernando está meio arriado, pensa. — Está cansado, querido? Você tá com uma cara...
— Nada, não. Não consegui fazer meu barbeador elétrico funcionar. Preciso comprar um aparelho descartável. Estou com a barba crescida, isso me incomoda bastante.
— Ora, homem! A gente aqui “na maior” e você preocupado com sua barba. Acorda, camarada! — A brincadeira veio de Luiz Roberto.
Ainda bem que foi o Luiz. Se fosse eu a falar assim, Fernando iria dar uma bronca e ficar mais emburrado ainda. — Pensa Lucy, atacando seu prato de shop-shuei.
Voltaram ao hotel às quatro da madrugada.
O pacote adquirido em Belo Horizonte compreendia a passagem de avião, o custo do curso de inglês no English Language Students Center –ELSC, e estada em hotel conveniado, com preços especiais para estudantes. Tudo pago antecipadamente ao “Intercâmbio Cultural”, a fim de evitar contratempos. Pois qual não foi a surpresa de Lucy e Fernando quando se apresentaram a Mr. Kevin, encarregado de receber os estudantes estrangeiros, na sede do ELSC: nada havia recebido para as reservas das vagas na escola ou para a estada no hotel.
Fernando ficou roxo de raiva, descontrolou-se, até xingou o americano, que não entendeu ou fingiu quê. Falando um espanhol misturado com inglês, explicou:
— Ese Intercâmbio Cultural non es our office in Brasil. Hai acontecido en veces anteriores los students llegan and the money llega después. Estean tranquilos, the money va llegar.
Lucy se entendeu melhor com Mr. Kevin. Foram alojados no Helby’s provisoriamente, e na segunda-feira seriam levados para um dos hotéis conveniados. Mas na segunda-feira a encrenca continuou. Visitaram dois hotéis e nenhum satisfez Lucy e Fernando. Estavam muito aquém do que haviam negociado no Brasil. Absolutamente inaceitáveis. Lucy fincou pé e disse (bem devagar, para que todos compreendessem seu inglês) a Mr. Kevin que arranjasse outro hotel ou...ou...
— And then what? — O professor americano já estava perdendo a paciência.
Ainda assim, conseguiu um apartamento no Granada Hotel. Lá foram carregando as malas pelas ladeiras da cidade, até a esquina onde o elegante edifício se destacava. O único apartamento disponível situava-se no décimo-segundo andar e agradou ao casal. Enquanto Lucy desfazia as malas, Fernando voltou à gerência para combinar o pagamento, a ser feito quando o dinheiro chegasse do Brasil.
Explicou o melhor que pôde ao manager, Mr. McConan, a situação: o dinheiro estava em trânsito, dentro de uma semana, no máximo, teria como fazer o pagamento.
— Of course! — Respondeu sério. Mr. Kevin já havia explicado tudo. Fernando não acreditou que o americano estava lhe concedendo um crédito, o homem nem me conhece, como é que pode?
— A grande vantagem deste hotel é que temos três refeições diárias, mesmo nos fins-de-semana. — O comentário era de Lucy, enquanto se preparavam para o jantar. Não tinham tido tempo para almoçar. O dia foi uma correria sem fim, a entrada no hotel de manhã e em seguida uma reunião de informação e instrução, com testes classificatórios para os cinco níveis das classes do curso.
A entrada do casal no salão do restaurante foi, para dizer o mínimo, chocante. Ambos se esmeraram no vestuário, pois previam que o ambiente era de classe. Nancy trajava um vestido longo com discreto decote rendado. O cabelo bem solto, negro e brilhante, destacava-se sobre os ombros morenos. Fernando usava um terno em grande estilo, gravata com alfinete. Formavam um casal classicamente elegante, que despertou a atenção dos demais freqüentadores do restaurante, já repleto. Cabeças levantaram-se, outras se viraram para observar o par. Ouviram-se cochichos.
Escolheram uma mesa menor, para duas pessoas. Assentaram-se. Fernando, afastando a cadeira para Lucy, como fazia sempre, cavalheiresco e gentil com a esposa. Só após terem sido atendidos pelo garçom ficaram à vontade.
— Puxa, Fernando, só estou vendo gente de idade.
— É mesmo. Só tem cabeça-branca. Deve ser alguma comemoração de gente idosa. Americano tem muito disso: reúne-se para comemorar qualquer coisa.
Puxaram conversa com o garçom. Era estudante e trabalhava ali nas férias. O salário é pequeno, mas as gorjetas são boas, fizera questão de dizer em inglês bem claro.
— Noto que os hóspedes são quase todos idosos. — Disse Lucy.
— São TODOS idosos. — Explicou o garçom. — Este é um hotel-residência para pessoas idosas.
O casal foi apanhado de surpresa.
— Quer dizer que mister Kevin nos colocou diretamente num asilo de idosos? — Fernando falou baixo, aborrecido, mal o garçom se afastara.
— Foi por isso que todos nos olharam quando entramos. Devem estar tão surpresos quanto nós. — Lucy achou graça na situação.
— Não estou vendo graça nenhuma nesta história. Estou é puto da vida! Nada está dando certo nesta viagem.
— Calma, Fernando! Afinal, não é tão ruim assim. A gente não precisa se misturar com os velhinhos, se é isso que você deseja.
— Não é esta a questão! É que não me sinto bem no meio de tanta velharia. Olha só a cara deles. Olham pra nós como se fôssemos gente de outro planeta.
— Ora, querido, fica frio! Velhice não é contagiosa, é um estado de espírito. Deve ter muito velho jovial aí. As velhinhas até que me parecem simpáticas.
Superada a primeira impressão, Lucy se conformou com a situação. Fernando continuou aborrecido. Entretanto, estavam os dois irremediavelmente presos ao acordo com o gerente do Granada Hotel , e enquanto não recebessem o dinheiro, teriam de permanecer no convívio com os velhinhos. Lucy sorria para todos, querendo ser simpática.
— Veja aquele velhinho lá no fundo. Tão idoso que precisa de enfermeira ao seu lado o tempo todo. — Fernando notava apenas os aspectos mais deprimentes. — E aquele outro ali! O coitado não consegue terminar a refeição, dorme antes de finalizar!
— Puxa, Fernando, você está mesmo chato com suas observações.
Duas semanas passaram-se sem qualquer notícia do dinheiro de Fernando para pagar o hotel. Preocupado, já por duas vezes procurara Mr. McConan para explicar-se. Por estranho que pudesse parecer, era Mr. Kevin, o diretor da escola, quem tranqüilizava Fernando.
— Não sei se a confiança do gerente do hotel é em mim ou em Mr. Kevin. — Fernando comentou com Lucy. — De qualquer forma, Mr. Kevin deve saber como funciona, pois o dinheiro da escola também não chegou e ele não me fala nada a respeito.
Nesse meio-tempo, Lucy fez diversas amizades entre os residentes do hotel. Por serem os hóspedes mais “jovens”, foram alvo de muita atenção por parte dos velhinhos e velhinhas. Leonardo engoliu seu preconceito e travou amizade com os mais comunicativos. Foram convidados e participaram das festas de aniversário e comemorações. Cada semana havia celebração. Os participantes se punham em trajes festivos e voltavam a ser jovens e crianças. Um deles era exímio pianista e liderava a parte musical. Diversos se reuniam para cantar em coro velhas melodias americanas.
— É um pouco difícil entender o que eles falam. Além de falarem baixo, falam de coisas que a gente não entende.
— Quando não entender, sorria. Assim, você mantém a coisa fluindo. — Aconselhava Lucy.
Lucy fez sucesso, principalmente entre os homens, mostrando-lhes como os brasileiros se cumprimentam: apertos de mãos, beijinhos nas faces e abraços apertados. Eles aderiram no ato e logo estavam abraçando-se e beijando-se mutuamente, com grande satisfação.
Estavam há três semanas freqüentando o curso e hospedados no hotel quando finalmente chegaram as ordens de pagamento, em nome de Mr. Kevin. Separadamente, os valores referentes ao custo do curso e à estada no hotel. Sem mais formalidades, o diretor assinou o aviso bancário referente à parte do hotel, endossando-o para Fernando.
— All right ! Comigo está tudo certo, agora o senhor paga o Hotel Granada.
Fernando não acreditou que as coisas funcionassem tão simples assim. Ao pagar Mr. McConan, comentou com Lucy:
— É incrível a falta de burocracia dos americanos!
— É por isso que o país funciona e prospera. — Concluiu Lucy.
Fim do curso, fim da estada no Granada Hotel. Os residentes foram avisados da iminente partida dos “jovens” brasileiros. Fernando e Lucy marcaram a saída do hotel para o sábado pela manhã. O avião partia às onze horas para Nova York, tinham tempo para tomar o último breakfast com os idosos, que, no meio da refeição, puseram-se a cantar
I left my Heart In San Francisco
High on the hill it calls to me. . .
com timidez inicial, num crescendo de entusiasmo e calor humano que contagiou até os garçons e o pessoal da portaria do hotel. Duas das mais idosas e espertas velhinhas vieram até à mesa do casal, para entregar-lhes singelos presentes. Para Lucy, toalhinhas e porta-copos de crochê, feitos de tiras plásticas coloridas. Para Fernando, um livro de fotografias de San Francisco.
Fernando se emocionou e Lucy chegou às lágrimas. Os velhinhos e velhinhas cantavam e choravam ao mesmo tempo. Quando terminaram, muito solenes, organizaram-se em fila para as despedidas: um a um, apertaram as mãos, abraçaram e beijaram, com ternura, as faces do “jovem” casal de brasileiros.
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ANTONIO ROQUE GOBBO – (ARGOS) – S.SEBASTIÃO DO PARAÍSO, 4.1.2001
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