O POVO DAS NUVENS

Impávida, desafiando o tempo, lá estava a Casa Branca. Não era uma lenda, ou melhor, era a lenda que se tornava realidade. Uma torre de atalaia construída há mais de cinco séculos por povo amante dos altos píncaros e elevados platôs dos Andes: uma tumba situada num penhasco a mais de 3.500 metros de altitude. Abrigada das intempéries, da chuva constante e da selva dominante, está encravada no meio da rocha, com vista para a confluência de dois rios: o Huabayacu e o Yanan. É como se ao ilustre morto ali colocado fosse dado o encargo de vigilar sobre aqueles remotos páramos. Construída em pedra calcária, ostenta na fachada branca alguns símbolos pintados em vermelho. Tanto os símbolos como a cor indicam a origem da construção de tão difícil acesso: uma antiga civilização que floresceu há cerca de 800 anos na Cordilheira dos Andes, na região banhada pelo Rio Marañon.

A caravana faz uma parada. Os arqueólogos deslumbram-se com a visão da tumba. Os carregadores são aliviados por alguns momentos da pesada carga. Cavalos e mulas relincham e bufam na atmosfera rarefeita, procuram tufos de ervas para pastar.

— Caramba! Lá está a Casa Branca! — Peter, o chefe da expedição, não esconde sua surpresa e alegria. — Pensei que jamais a alcançaríamos!

— Que beleza! Veja como é iluminada, a selva não consegue impedir que a luz bata em cheio na sua fachada. — Clicando sem parar suas câmeras, o fotógrafo (e também arqueólogo) Gordon Wilstie procura ângulos e melhores posições para captar a mágica do momento em suas fotos que registram toda a epopéia da expedição.

— Incrível como puderam construir naquele penhasco. — Igualmente admirado, John, o operador de vídeo, manobrava sua filmadora, ávido por documentar o local bem como as atividades da própria expedição.

O guia também se admira com o encontrado. Mas os dois carregadores estão temerosos: supersticiosos, não gostam de permanecer nas vizinhanças de tumbas, cemitérios e locais sagrados. Simples descendentes de índios, temem tudo o que não entendem. O percurso daquele dia fora particularmente difícil e desastroso, e os coitados, além de se esfalfarem, têm

de lidar com seus terrores místicos.

A equipe era assim : Peter Lerche, arqueólogo; Gordon Wiltsie, fotógrafo: John Catto, operador de vídeo. Estavam empenhados em fazer um levantamento fotográfico do vale do rio Huabayacu, onde foram encontrados diversos sítios arqueológicos com tumbas deixadas pelos Chachapoyas. Autorizados pelo Instituto Nacional de Cultura do Peru, podiam apenas fotografar e mapear os sítios, não lhes sendo permitido retirar qualquer objeto encontrado, nem alterar sua posição no sítio.

As dificuldades começaram a partir da cidade de Cajamarca. Quando procuraram um veículo que os levassem serra acima, só encontraram uma velha perua maltratada, dirigida por um muchacho muito jovem e (pensaram os expedicionários) sem experiência. A aventura iria mostrar-lhes quão enganados estavam.

Viajaram durante horas pelas precárias estradas de terra, por trechos difíceis de lama, leito escorregadio ou pedregoso. Subiram e desceram, coleando a montanha por uma estrada sinuosa que beirava precipícios ou entrava pela floresta. No fim do primeiro dia, estavam exaustos: em 12 horas de sacolejar haviam avançado apenas 90 quilômetros em linha reta. Estacionaram nas proximidades do vilarejo de Bolívar, onde pernoitaram.

— Daqui para frente não tem mais caminho para o veículo. Somente trilhas. Terão de conseguir cavalos e mulas para subirem. — A informação do jovem tresloucado motorista foi confirmada pelo guia. Trataram de alugar três cavalos e 4 mulas. Ajustaram mais dois ajudantes, para lidar com as cavalgaduras.

No segundo dia, o grupo arrastou-se pela encosta da montanha, subindo com dificuldade através de uma neblina que escondia a trilha. Passaram por uma inesperada jalca, trecho de campina mais ou menos plano, nos contrafortes da montanha, a mais de 4.000 metros de altitude. Às vezes não enxergavam além de dois ou três metros, tão espesso era o nevoeiro. O ar úmido e rarefeito cansava homens e animais. O som dos cascos dos cavalos e o roçar do capim contra suas pernas era um sussurro monótono, hipnotizaste. A cavalgada prosseguiu até escurecer. O acampamento foi montado numa exígua clareira, os cavalos e bestas amarrados às árvores, bem próximos às barracas.

O dia seguinte amanheceu claro, cheio de luz. Os fotógrafos exultaram. A trilha era visível e prosseguiram por uma senda firme alguns quilômetros. Atingiram o cume de uma elevação, passaram para o outro lado e iniciaram a descida. A floresta se adensou e a luz do sol mal e mal se filtrava através das copas das árvores.

— Agora compreendo porque os chachapoyas são chamados de "o povo das nuvens". — Comentário de John para Gordon. — Vistas daqui de baixo, as copas das árvores estão tão altas que mais parecem nuvens. — E prosseguia filmando.

A trilha ficou difícil até para o guia, acostumado àquelas condições difíceis de caminhar.

— Tenho certeza do caminho. É por aqui mesmo, está apenas coberto pelo mato. — O guia parecia perdido, mas caminhava firme, o facão abrindo a picada. Trepadeiras e cipós grossos batiam contra os corpos dos homens. Galhos e gavinhas prendiam nas roupas e nos arreios. Insetos zumbiam sem cessar ao redor dos corpos suados.

De repente, o ritmo da coluna foi quebrado por gritos dos guias e relinchos dos cavalos. Dois cavalos afundaram as patas no barro mole e escorregadio, e resvalaram por um lado da trilha, descendo uns 10 metros.

— Eia, eia! Viene, chulo, viene. Arriba! — Imediatamente os ajudantes índios, usando cordas amarradas às bestas, mais afeitas ao tipo de terreno, puxaram os animais acidentados. As quedas se sucediam, e mais dois animais escorregaram. Contudo, em todas as quedas, a ação dos ajudantes índios e do guia prontamente salvou os animais, que voltaram à trilha sem ferimentos. Somente assustados.

Apenas haviam reposto os animais na trilha, foi a vez de John perder o equilíbrio e descer pelo barranco. Foi detido em sua queda por um tronco caído e meio apodrecido. Guindado por cordas, tal como os cavalos, foi resgatado são e salvo, felizmente.

Ao final do terceiro dia, chegaram até uma cabana de troncos, onde passaram a noite. A cabana estava construída dentro de um conjunto de ruínas Incas, a fim de abrigar eventuais viajantes e exploradores que transitam pela inóspita região.

No último dia de subida rumo ao sítio arqueológico dos chachapoyas, os exploradores partiram bem de manhã. Percorreram o trecho final da escalada, até um ponto onde montaram o acampamento-base, do qual partiriam para chegar à Casa Branca.

No dia seguinte, quarto da jornada, partiram apenas os homens: uma ponte de troncos sobre um afluente do rio Huabayacu indicava o fim do caminho para os animais. Seguiram, pois, os caravaneiros carregando alimentos, equipamentos, cordas, água. Após duas horas de caminhada, surgiu, enfim, a visão da construção, dependurada no abismo.

Por alguns momentos, a equipe quedou-se surpresa. Peter refletiu sobre a ousadia dos construtores daquela tumba, os chachapouyas, "o povo das nuvens".

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Dos chachapoyas pouco se sabe. Povo misterioso, apareceu por volta do ano 800, mais de seis séculos antes dos Incas. Esparramaram-se por uma pequena região de aproximadamente 30 mil quilômetros quadrados de montanhas cobertas pela floresta amazônica. Entre os rios Huallaga e Marañon, eles construíram centenas de assentamentos no topo e nas encostas das montanhas. Foram apropriadamente chamados pelos Incas de "povo das nuvens". As vilas eram de tamanhos vários: algumas formadas de apenas 20 casas, outras até com mais de 400 dessas estruturas: casinhas circulares feitas de pedra e cobertas de capim. Aberturas - portas e janelas - proporcionavam arejamento e iluminação. O teto, um longo cone, terminava por uma coberta mais resistente, feita de fibras, folhas e embiras trançadas. Viviam da pesca nas águas agitadas dos rios da montanha, da caça de pequenos animais e da agricultura, feita em pequenos trechos do altiplano, conhecidos como jalcas.

Não se tem conhecimento da sua organização social, econômica ou religiosa. O sítio mais famoso de habitação dos chachapoyas é Cuelap. Situa-se no alto de uma montanha, ocupa posição estratégica, protegido contra ataques de inimigos, cercado por muros com mias de 20 metros de altura. Uma inexpugnável fortaleza, com mais de 400 habitações redondas, além de muitas esculturas de pedra.

Eram hábeis tecelões, de acordo com registros dos seus vizinhos Incas, que os conquistaram. Também há menção de poderosos xamãs das diversas cidadelas, respeitados pelos inimigos. Mas, desta civilização, só restam as ruínas das típicas casas redondas e as tumbas — as chullpas.

Espalhadas por toda a região que habitaram, as chullpas ainda resistem às intempéries e ao vandalismo devido às dificuldades de acesso aos locais onde foram construídas: geralmente dependuradas em penhascos, apoiadas em pequenos platôs, escondidas pela densa floresta.

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— De onde lhe veio a informação desta chullpa? — A pergunta, feita por John, arrancou Peter de seu devaneio.

— Há alguns anos, consultei um xamã que se diz descendente dos chachapoyas. O índio morava numa cabana cheia de objetos rituais, provavelmente saqueados das tumbas. Mascando coca e fumando um fedorento cachimbo de barro, ele lançou algumas conchas no chão e teve uma visão. Falou numa linguagem difícil de entender, que alguns túmulos permaneciam intocados. Traçou na areia do chão um mapa rústico com a indicação da localização de três chullpas. Copiei rapidamente o roteiro traçado no solo. Quando voltou do seu transe, o xamã apagou com o pé aqueles sinais.

— Mas já se sabia da existência da "Casa Branca".

— Era uma lenda, ninguém pensava que fosse real. Eu mesmo tinha minhas dúvidas.

— Os entraves que o governo peruano coloca aos pesquisadores e arqueólogos provocam essa mitologia. — concluiu John. Ele se referia à proibição de entrarem em sítios arqueológicos ainda não catalogados e registrados pelo Instituto Nacional de Cultura do Peru. Tinham permissão de apenas fotografar e filmar os locais. Para isso estavam ali.

O dia estava pela metade. No começo da tarde, subiram até o topo do penhasco onde amarraram cordas em troncos de árvores fortes.

— Agora são duas horas, o sol está forte e claro. Vamos aproveitar e descer ainda hoje mesmo. — Peter falou com John e Gordon, que concordaram em fazer o rapel na direção da tumba, agora situada abaixo dos aventureiros. — Calculo que desceremos uns 50 metros para chegar à Casa Branca.

Gordon, Peter e John apertaram suas cordas e foram descendo aos poucos, por uma leve inclinação, cuja beirada terminava de repente. Abaixo, o precipício escancarava suas fauces. Mas os três eram experientes, cuidadosos. Um erro de cálculo, um golpe errado com os facões, um atrito mais forte contra a rocha cortante e eles não teriam a mínima chance de chegar.

Dependurados sobre o precipício, desceram lentamente. À altura da Casa Branca, balançaram-se serenamente, a fim de alcançarem a tumba. Cada qual no seu tempo, engancharam-se nas saliências de rocha e de madeira da própria tumba, e descansaram.

— Vou entrar — Avisou Peter. Gordon e John tomaram posição em cantos opostos da construção e prepararam para filmar e fotografar.

A tumba é uma construção retangular feita de pedras e barro. Tem uma abertura quadrada num dos lados, por onde Peter tenta entrar. O teto é feito de troncos roliços. Sua posição é aparentemente precária: construída sobre um peitoril de poucos metros, não tem beiral ou saliência onde Peter possa firmar os pés. Um lugar extremamente seco, apesar da precipitação abundante de chuvas em toda a floresta ao redor.

Peter atinge a beirada do penhasco, agarra-se a uma saliência da rocha. Olha para dentro da tumba. Entra cuidadosamente. Em seguida, John se aproxima e entra também.

— Parece que a Casa Branca está intata —- John grita para Gordon, que ainda está fora, balançando-se na sua corda. Alguns minutos depois, ele entra na chullpa.

E assim se encontram os três aventureiros no interior misterioso da "Casa Branca", numa verdadeira máquina do tempo que os coloca em contato direto com uma civilização desaparecida há mais de 400 anos.

Os chachapoyas desenvolveram-se com rapidez, construindo grandes aldeias e até fortalezas. Como aparentemente não tinham inimigos, é fácil presumir que havia rivalidade entre eles. Por volta de 1500, quando os europeus estavam aportando as costas americanas pelo lado atlântico, o Império Inca estava em franca expansão. Dominaram os chachapoyas, que foram transferidos para outras regiões. Mesmo dominados, dizimados e espalhados, seus rituais fúnebres persistiram durante muito tempo. Não tinham escrita, portanto não deixaram registros escritos. As chullpas são os últimos vestígios dessa civilização.

Os membros das classes baixas eram enterrados em sepulturas comuns, que desapareceram. Os nobres, entretanto, eram preservados após a morte: cuidadosamente envolvidos em camadas de tecidos de lã e algodão, colocados em tumbas construídas em penhascos, nas quais ficavam rodeados por objetos associados à vida cotidiana, como armas, objetos de cerâmica, etc.

— Vejam o cuidado na construção desta chullpa. — Peter chamou a atenção dos dois companheiros para os detalhes da tumba: solidamente construída de pedra calcária e barro, media cerca de quatro metros de comprimento, dois metros de largura e metro e meio de altura. O teto era feito de três troncos grossos, a fim de proteger o interior da tumba contra a chuva, a neblina e os raios solares.

Enquanto fotografa, Gordon observa, anotando mentalmente as particularidades: o exterior estava todo rebocado com argila branca e ainda se notavam vestígios de listras vermelhas na superfície. Alguns círculos vermelhos haviam sido pintados na face da rocha atrás da chullpa. Olhos dos ancestrais contemplando seus descendentes? — Interrogou-se o fotógrafo.

Cinco caixões chachapoyas estavam colocados sobre o piso da tumba, rodeados por um tapete de folhas secas de mais de 20 centímetros de espessura. Com certeza, dentro de cada caixão estaria uma múmia e seus adereços fúnebres. Também sob as folhas secas, muitos objetos jaziam ocultos.

— Vamos sair. Já deu pra ver que a tumba jamais foi visitada antes.

Peter comandou a retirada, feita a custo pelos três aventureiros. A certeza de que haviam realizado uma descoberta de tal porte deixou-os orgulhosos de sua realização. A Casa Branca tinha sido, realmente, uma descoberta rara e importante. Dali poderiam surgir valiosas pistas e informações a respeito dos misteriosos chachapoyas, o lendário "Povo das Nuvens”.

ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS)

-BELO HORIZONTE–28/ SETEMBRO/ 2000