AVENTURA HYPPIE

— Pra vocês que são moreninhas, não tem importância. Mas pra mim esse sol é de morte.

— Vem, vamos ficar debaixo daquela árvore. — Marta fala com Doris, a ruivinha. — Diana fica aqui na beira da estrada.

O sol inclemente batia sobre a caatinga, a rodovia e as três jovens. Marta e Diana, morenas, não se incomodavam muito com o calor, mas Doris, uma ruiva de cútis clara, não gostava nada de ficar exposta aos raios solares. Principalmente sob aquele sol das três da tarde, quentíssimo, a cuja ação ajuntava-se a poeira. Um veneno para a cútis e os braços expostos.

Estavam viajando há quatro semanas, sempre de carona. Saíram de São Paulo, subiram pelo litoral, visitando as praias mais bonitas do mundo. Passaram por Salvador, Maceió, Recife, Natal, chegaram em Fortaleza. Uma aventura planejada durante todo o tempo de faculdade. Presente de formatura que elas estavam se dando.

Uma nuvem de poeira na estrada, bem longe, anuncia um veículo. Diana fica atenta. Ao se aproximar a camioneta, agita freneticamente o braço, mão direita com polegar erguido, o sinal conhecido usado pelos caroneiros no mundo inteiro. Precisamos urgente de uma carona, Antes que anoiteça, pensa.

O veículo diminui a velocidade e pára próximo da jovem, envolvendo-a numa nuvem de pó avermelhado. É uma camioneta nova, ano 65 ou 64, de cabina simples, onde estão o chofer e um casal de jovens. Na carroceria de madeira estão mais três pessoas. Marta e Doris correm para a estrada, e chegam juntas para conversar com o motorista.

— Moço, cabem mais três aí?

— Se não se importarem de ir aí na carroceria.

Mais do que depressa as três moças jogam suas mochilas e sacolas pra dentro da carroceria, e espertamente sobem, ajudadas pelos dois jovens e a mulher que lá se encontram.

Acomodam-se como podem, sentando no chão de tábuas, entre as muitas sacolas e malotes que se amontoam. Cumprimentos, sorrisos, aquela alegria comum entre os jovens hippies.

— Então, donzelas, correndo o mundo? — Um dos moços puxa prosa. — Sou Alberto, aquel' outro é Dimas e a guria aqui é Dímitra. — O sotaque mostra logo tratar-se de um português, o que vem a se confirmar.

As três recém-chegadas se apresentam. Ficam sabendo que Alberto vem de Coimbra, Dimas é gaúcho e Dímitra, uma grega que pouco entende de português. O conhecimento é fácil, são todos caroneiros. O casal que viaja na cabine, junto com o chofer, também faz parte do grupo, os cinco estão viajando juntos.

— A gente já estava desanimada, passaram três veículos e nenhum parou pra nós. — Diana procura animar a conversa.

— Tem muito chofer medroso de dar carona. — Dimas entrou na conversa. — Ainda não estão acostumados. No meu estado é mais fácil, tem muita gente viajando de carona. Não só estudantes, mas pessoas de idade já estão curtindo esse jeito de viajar. Pra onde vocês vão?

— Somos de São Paulo. Eestamos voltando pra casa. Queremos ir até Terezina, depois vamos pra Brasília e de lá chegamos a S. Paulo. — explicou Doris, ajeitando seus cabelos acobreados, amarrando-os com uma fita vermelha.

— É muito distante, um longo trecho, pois não? - indaga Alberto.

— Mais de dois mil quilômetros. E vamos passar pelo interior do Maranhão, que é uma região ainda bem selvagem. Mas vale a pena! — Ainda é Doris quem responde.

A estrada vai piorando. Poeira fina o tempo todo. Os buracos fazem a camioneta corcovear. O motorista procurar desviar das "crateras" na estrada, com guinadas na direção, para a esquerda e para a direita. Mas não tira o pé do acelerador. Os viajantes agarram-se às tábuas laterais da carroceria. Todos reclamam, até a moça grega, em inglês e no seu idioma pátrio.

Parece estar deslocada ali, no meio dos brasileiros e do português, todos conversando entre si. Fala pouco, monossílabos, só responde ao que lhe é perguntado. É companheira de Alberto, namorada ou coisa assim. De vez em quando trocam olhares especiais, apertos de mãos e, quando a camioneta corre suave, se beijam rapidamente. Mesmo sentada, dá pra notar que é alta, cabelos compridos muito pretos, soltos, bem ao estilo das hippies. Corpo atlético, forte. Usa shorts e as pernas são queimadas de sol. Parece mais uma cigana, com olhos negros e lábios finos.

— Where are we going to? — pergunta, entre um solavanco e outro.

Alberto explica-lhe em inglês e em seguida, educadamente, relata o diálogo para os outros:

— Disse-lhe que estamos indo para Terezina e que temos ainda uns 200 quilômetros pela frente, antes de chegar. Só vamos chegar bem de noite.

Após duas horas ou mais de viagem, o sol já estava bem baixo no horizonte, quando o motorista estaciona a camioneta sob um enorme cajueiro, ao lado de miserável bitácula beira-estrada. Desceram todos, batendo o pó das roupas, esfregando as mãos nos cabelos.

— Parada pra espichar as pernas! — Anunciou o motorista, senhor alegre e comunicativo que se apresentou: chamava-se Heraldo, era comerciante e viajante habitual por aquelas paragens. — Vamos tomar uma água e refrescar um pouco. Aproveitem porque daqui pra frente são mais duas horas e só vamos parar na capital.

De volta à estrada, continuou o tormento do balanço e das bacadas, os buracos e as costelas aumentando sempre, e a velocidade constante.

— Que' strada miserável, pois! Raios que a partam! — Alberto não se conteve em soltar uma blasfêmia.

Dímitra quietamente ajeitou algumas sacolas e sua própria maleta, preparou um lugar para ficar deitada. Não ficou mais confortável que os demais, porém parece que se deu bem e puxou um cochilo. Estavam todos modorrentos, o sol já se fora, era a hora do lusco-fusco. Quando a camioneta, passando por um buraco maior, deu um tremendo solavanco, todos foram jogados para cima.

— Aaaaaaaai !!! — Ouviu-se um grito, vinha de Dímitra, agora, mais do que deitada, estava estendida no chão de madeira, estatelada. — Aiiiii, ai-ai-ai-aaaaaai ! ! ! — continuava gritando.

Os companheiros assustados não sabiam porque a moça grega gritava tanto. Alberto passou o braço sob sua nuca, tentou levantá-la, mas o berreiro se intensificou. Deixou sua cabeça apoiada numa maleta. Dimas batia desesperadamente sobre a cabine, chamando a atenção do motorista,que logo percebeu que alguma coisa acontecera na carroceira. Encostou o veículo. Desceu rápido.

— Que aconteceu? Que foi? Alguém se machucou?

Dímitra, imóvel, continuava gritando. Não mexia sequer a cabeça, olhava fixamente para o céu. Heraldo subiu lesto na carroceira, tentou falar com a grega, não foi entendido. Procurou levantar sua cabeça, como Alberto já fizera, e os gritos de dor aumentaram.

— Alguém aqui é medico ou enfermeira?

Ninguém era. Nem de massagens eles entendiam. E Dímitra gritando.

— Não adianta mexer com ela, tem alguma fratura. Menina - dirigiu-se a Doris — examine as pernas, coxas e pés, vê se acha algum ferimento, fratura. — Ao mesmo tempo que ordenava, Heraldo foi apalpando as mãos, braços, antebraços, ombros, o tórax. Quando tocou as costelas, os gritos pioraram. Apalpando delicadamente, nada sentiu que pudesse indicar fratura.

— Aqui nas pernas e nos pés não sinto nada de anormal. — Informou Doris, após fazer o exame rápido determinado por Heraldo.

Tentou levantar novamente a cabeça, novamente recrudesceram os gritos.

— Alguém tem aí um analgésico, um Melhoral, coisa assim? - Heraldo parecia estar familiarizado com emergências. Apareceram diversos comprimidos, e um cantil d'água. Fizeram Dímitra tomar três comprimidos, que ela engoliu com dificuldade, entre gritos de dor.

Heraldo fechou o cenho.

— Não estou gostando. Ela tem alguma fratura, não pode mexer de jeito nenhum. Vamos acomodá-la da melhor forma possível. Ela tem de ficar deitada. Vamos pôr casacos, agasalhos, tudo que for macio por baixo, mas sem mexer muito com ela. E o jeito é ir dirigindo bem devagar, até chegar à capital. Ainda temos uns 50 quilômetros e sem nenhum recurso ao longo da estrada.

E assim foi. Os comprimidos tiveram pouco efeito, Dímitra passou dos gritos aos gemidos, mas sentia qualquer baque, qualquer balanço do carro. Doris e Diana deitaram-se ao lado de Dímitra, a fim de firmarem, com seus corpos, o corpo da grega. O percurso foi demorado, Heraldo dirigia com cuidado, e já era noite fechada, quase nove horas, quando finalmente conseguiram chegar ao pronto-socorro do Hospital Municipal de Terezina.

Heraldo, expedito, tratou do internamento da moça. Os companheiros - inclusive Diana, Doris e Marta esperaram na porta do pronto-socorro por uma notícia, um diagnóstico. Que veio sem tardança, trazido por Alberto:

— Ora pois, Dímitra teve a coluna vertebral fraturada! Não pode fazer nenhum movimento! Vamos ter de aguardar até amanhã para outros exames! — A tristeza e a preocupação abalaram profundamente o moço de Coimbra, e afetou a todos.

Ninguém quis procurar um hotel, albergue ou pensão, ficaram todos por ali mesmo, desorientados. Heraldo solidário com eles. Mas, que fazer?

— Bem, já que ninguém vai procurar pouso, vou fazer o seguinte. Encosto a camioneta aí na pracinha defronte o hospital, e vamos passar a noite aí mesmo. Cada qual se vira como pode.

Saindo da entrada do pronto-socorro, dirigiu o veículo para o outro lado da praça, estacionou em frente a um edifício alto, escuro, isolado dos demais.

— Aqui podemos ficar mais sossegados.

Alberto ficara no saguão do pronto-socorro. Dimas, Doris, Marta e Diana estenderam colchonetes na carroceria e deitaram-se. Suados, empoeirados e com calor, dispensaram mantas e cobertas. Doris puxou uma rede sobre seus pés. Haroldo recostou-se no banco da cabine, já estava acostumado a este desconforto.

O movimento do pronto-socorro continuou intenso até de madrugada, só amainando lá pelas quatro horas. Foi quando o pessoal da camioneta caiu num sono mais profundo.

Dimas foi o primeiro a acordar. O dia clareava. Preguiçosamente, olhou por entre as frestas da carroceria, e viu que o veículo estava cercado de curiosos, pessoas do local. Achou tudo muito estranho, e ficou com medo. Acordou num sussurro as garotas, avisando-as de que estavam cercados por pessoas em atitude que lhe dava preocupações. Marta olhou e também não gostou. Doris, ainda sonolenta, levantou-se num supetão, jogando a rede para o lado. Dimas, Marta e Diana também se levantaram.

A um só tempo, o povaréu que rodeava a camioneta correu, fugindo, gritando.

— Cruz credo, eles estão vivos! Foge, gente, é coisa do demo.

Heraldo saiu da cabine, surpreso com o tropel popular. Bestificado, olhou para um lado, para o outro, sem entender nada. Foi Dimas quem percebeu o motivo do terror que afugentou o pessoal. Rindo, indicou para Heraldo a fachada do edifício na frente do qual estavam. A camioneta com aqueles "corpos" na carroceira estava estacionada em frente ao um prédio anexo do hospital — e os curiosos do local tinham rodeado a camioneta pensando que ali estavam defuntos esperando a abertura do NECROTÉRIO.

ANTONIO ROQUE GOBBO- ARGOS - BELO HORIZONTE - 17 DE SETEMBRO DE 2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/03/2014
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