A CIVILIZAÇÃO PERDIDA

— Triste final para um império tão importante!

— Do que está falando, Franco?

O fotógrafo Jean Roulien não consegue acompanhar o pensamento do companheiro de trabalho e de aventuras Franco Martini. Não pode sequer observar a melancolia e a fantasia no olhar do italiano que observa o deserto pela janela do pequeno avião. Sobrevoam o Saara e, ao longe, pode ser vista, na fímbria do horizonte, o vale do rio Nilo. Uma mancha linear de cor mais escura, quebrando o monótono amarelo ocre do deserto.

— Aqui nesta vastidão de areia e pedras, ergueu-se a civilização mais importante da antigüidade. — Franco responde, sem esclarecer a questão.

— Como? Quando foi isso? Ah, você está imaginando o roteiro para sua próxima novela.

— Não, Jean, não é imaginação minha. Neste imenso deserto floresceu um império tão ou até mais importante, do que os da antigüidade. Esta vastidão foi terra fértil, coberta por florestas. Os vales verdes confundiam-se com as planícies de pastagens abundantes e terras cultivadas. Havia um lago central imenso, ao redor do qual inúmeras cidades foram erigidas.

— Que bela fantasia!

— Pode me chamar de visionário. Mas posso ver daqui de cima mil e um indícios da existência desse mundo perdido.

— Indícios? Meu amigo, para afirmar que tal civilização realmente existiu, você tem de contar com mais do que indícios. Precisa de provas científicas, ruínas, registros de qualquer espécie.

Jean irrita-se com a certeza de Franco. Fotógrafo profissional, sua mente trabalha com imagens reais e por isso não concede ao amigo, repórter e escritor, a liberdade da fantasia.

— Quem precisa de ciência para explicar fatos que os cientistas teimam em ignorar?

— Além de tudo, sofismas! Ah, assim não! Não é possível ter uma conversa mais sensata?

— Vou lhe contar o que posso ver através dos muitos vestígios que existem espalhados por toda esta vasta extensão que hoje é o maior deserto do mundo. — A certeza de Franco refletia-se na maneira incisiva de expor como real e definitiva a sua visão a respeito da civilização perdida do Saara.

Faz tempo, tanto tempo que não se consegue determinar a época. Anterior a todas as civilizações conhecidas, pertence à pré-história, já que dela nada consta dentro de nossa escala histórica. A origem remonta, pois, ao começo dos tempos. Nem mesmo as lendas registram essa cultura. Aliás, nosso pensamento ocidental, todo configurado para marcar o tempo em anos, decênios e séculos, não tem capacidade para abranger a idéia de uma civilização que durou eras e eras — centenas de séculos. Basta dizer que existiu por muito mais tempo do que os largos períodos registrados historicamente.

Assim foi a civilização do Saara. Estendia-se desde a costa africana banhada pelo Oceano Atlântico até além do Nilo, penetrava pela península arábica, atingindo com sua influência a região do centro da Ásia. Havia o grande lago central. Tão grande quanto o atual Mar Mediterrâneo. Ao redor de suas margens existiam centenas de centros urbanos, animados portos sempre repletos de barcos que viajavam por todas as rotas possíveis nas águas calmas do mar de água doce.

Ao norte, terras férteis se estendiam até o litoral. Ao sul, a floresta tropical cobria o resto do continente. Tribos numa quantidade sem conta habitavam tais paragens e eram respeitadas pela poderosa civilização do Saara. Uma interdependência pacífica e harmoniosa era a regra estabelecida e obedecida num consenso coletivo de povos e tribos. Estradas e caminhos cruzavam os vales férteis cultivados com pomares e lavouras, as planícies de pastagens infindas repletas de animais.

Para o oeste, elevadas montanhas poderiam dificultar o acesso às praias atlânticas, não fosse a tecnologia altamente desenvolvida da civilização saariana. Graças a ela, comboios terrestres transportavam a produção com facilidade, chegando até aos estabelecimentos a beira-mar.

— Pára, pára! — Jean interrompeu a exposição de Franco. — Isso mais parece um set de filme de ficção histórica.

— Pode ser. Como não posso provar nada do que estou falando, classifique como pura ficção. É impossível tratar desse assunto, dessa civilização, sem pensar na interferência de seres extraterrestres. Como e por por que vieram até nosso planeta? Sei lá. Mas que os saarianos não eram deste planeta, pode ter certeza.

— Vamos supor que tenha mesmo existido essa civilização no centro do deserto do Saara. Quem foram esses saarianos? Que faziam? Como viviam?

— Durante milhares de anos, habitaram o norte do continente africano. Não deixaram marcas de sua civilização no deserto, mas ajudaram os egípcios com alguns monumentos que evidentemente foram produzidos por sua tecnologia.

— Vai me falar das pirâmides, já estou adivinhando.

— Exatamente. As pirâmides. Aquelas construções que estamos vendo lá longe não foram produtos da civilização egípcia. Foram, sim, marcas cósmicas cravadas ao longo do rio Nilo para sinalizar e balizar nosso planeta, em níveis superiores ao nosso entendimento.

— Mas... e as múmias, as inscrições egípcias, a história?

— Os egípcios simplesmente não tinham recursos para construir as pirâmides. Em primeiro lugar, o local escolhido situa-se longe de pedreiras. Qual a finalidade dessas obras colossais? Imagine o quanto essas obras demandaram: sacrifícios colossais em esforço, materiais, vidas humanas. Se fossem construídas apenas com o esforço dos egípcios, causariam a exaustão econômica do império. Ainda que tecnicamente possíveis, teriam absorvido os recursos do Egito durante décadas.

Franco vai se empolgando, as pirâmides constituem um assunto de sua especialidade.

— Até hoje, nos umbrais do século XXl, com avanços da ciência e da tecnologia, seria impossível, na prática, erguer a Grande Pirâmide. Sabe quanto material foi usado na sua construção?

— Muita pedra e muito suor, é claro. — Jean se deixa envolver pela exposição de Franco.

— Pedra em quantidade incrível: dois milhões e seiscentos mil blocos de rocha. Pedaços gigantescos de pedras retiradas de pedreiras distantes, do outro lado do rio Nilo. Os blocos foram serrados e lapidados com precisão milimétrica, transportados e colocados no local da construção, onde se ajustaram de maneira exata, sem qualquer massa para ligá-los.

— Um verdadeiro trabalho de Hércules. — Reconheceu o fotógrafo, mostrando interesse pelo assunto.

— Sim. E isso, para quê? Para servir de tumbas aos reis megalomaníacos! Não, meu caro Jean, as pirâmides foram construídas pelos saarianos, não tenho a menor dúvida.

O jato aproxima-se do aeroporto do Cairo. Avisos aparecem na cabine: os passageiros devem apertar os cintos, colocar as poltronas na posição vertical, etc. Uma nuvem escura de poluição cobre não só a cidade como toda a região vizinha, chegando até mesmo à região de Gizé, onde estão as principais pirâmides, alguns quilômetros a oeste da metrópole do rio Nilo. Franco e Jean observam a paisagem.

O fotógrafo agora tem perguntas a fazer. A história do amigo repórter até que é interessante, bem engendrada. Poderá fazer até algum trabalho, fotografando no deserto onde o amigo diz haver “indícios” da civilização perdida do Saara.

— Você falou que os saarianos e os atlantes teriam sido contemporâneos?

— Sim, meu caro. Isso lhe conto depois. Agora, nosso avião já está descendo, vamos nos preparar para a aterrissagem. Os atlantes ficam para o próximo vôo...

ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = BELO HORIZONTE = 28/julho/2000

Conto # 040 da Série Milistórias

Publicado em “O Espião de Bagdá”, vol. 3 da Coleção Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2014
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