INFÂNCIA.

Todas as crianças da favela são felizes, sobre tudo as mais pobres. Há uma nuvem invisível sobre suas pequeninas cabeças, que as protege dos perigos, que veda seus olhos às trevas, ao labirinto de escuridão que as cerca, que os fazem correr e brincar sobre os escombros de guerra. Lembram os meninos e meninas que pintavam seus sonhos futuros ajudados por Olga Benário em um campo de concentração. Uma inocência anestésica, ainda que cercados de dor, miséria, violência... As crianças da favela são resguardadas de todo mau. Como uma espécie de equiparação pelos seus futuros destinos...

As brincadeiras na comunidade eram sempre muito alegres, encorpadas, divertidas. Todas esbanjavam crianças pelas culatras. Começavam sempre no cair da tarde, quando a molecada que saia das escolas públicas, se encontrava com aquela que chegava de suas virações, de suas cavações precoces. Quase sempre eram os pequenos e indefesos camelôs, vendedores de doces, balas, revistas, canetas, picolés, palavras cruzadas, se aventurando perigosamente nos vagões dos trens da Central. Ali se aqueciam, ensaiando seu pique esconde, suas jogadas, seus dribles de corpo, suas correrias, suas fugas, seus deslizes nas brincadeiras de policia-ladrão. Fugindo do cruel encalço dos Policiais da rede ferroviária, dos camelôs mais velhos, mais antigos no pedaço, desejosos de obterem um lucro a mais, surrupiando as poucas mercadorias dos menores, compradas com dificuldade, muitas vezes com dinheiro emprestado. Com o penhor de algum objeto de pouco valor, com a promessa de pagamento ou de resgate no final do dia. Ziguezagueavam por entre as multidões dos trens e das plataformas para salvar seu dinheiro suado, compromissado nas despesas diárias, aguardado com ansiedade pelas pobres mães, quase sempre as chefes das famílias, para ajudar a manter o parco sustento dos outros muitos irmãos. Havia os que trabalhavam na feira e iniciavam suas preparações no início da madrugada, carregando kombis, caminhonetes, caminhões com as mercadorias de seus patrões. Depois trabalhavam durante todo o dia, fizesse chuva ou sol, até o inicio da tarde, hora em que descarregavam os veículos, limpava-os e os preparava para o próximo dia de labuta acirrada, num elo de rudeza sem fim. Tinham as crianças sapateiras, que trabalhavam na fábrica de calçados clandestina. Que se entupiam de cola tóxica o mês inteiro, para no fim receberem menos que a metade de um salário mínimo. Mas em contrapartida, eram crianças, protegidas pela nuvem de mistério Divinal. Havia próximo a favela, um oásis em meio ao seu deserto. Um lago artificial para a alegria e deleite de todos. Era conhecido como lagoa dos Sete Riachos. Produzido pelo rompimento de um enorme cano da companhia de água e esgoto, vazava o ano inteiro, para o prazer e refrigério de toda gurizada. Suas águas eram sempre frescas e abundantes. Muitas crianças vinham de longe, á pé. Se aventurando pelo longo caminho arborizado. Colhendo, comendo, roendo, babujando as diversas frutas verdes ou maduras, nos infinitos sítios espalhados pelas adjacencias. Armando suas arapucas artesanais para apanhar passarinhos, porquinhos da índia, tatus, preás, furões. Correndo dos cachorros ferozes. Se desviando dos tiros das espingardas de sal, disparados á esmo por alguns dos sitiantes, sempre descontentes com a presença viciosa e maciça daquelas nuvens de gafanhotos infantis. Depois dos sustos, o riso. A versão alegre de cada um dos moleques para descrever suas fugas impreterivelmente triunfais, cinematográfica, mirabolantes. Antes do cair da noite, tinham as brincadeiras de garrafão, bola de gude, pião, pipa, amarelinha, futebol, estilingue, pique, queimado, bandeirinha, esconde esconde. Todos eram felizes. A noite chegava, apagando o sol. Desligando as luzes do enorme parque de diversões. E to dos se recolhiam aos seus barracos. Dormiam em seus pobres leitos rústicos, sonhando com a tarde do dia seguinte, que milagrosamente recomeçava sempre de novo. E era assim, gerações após gerações. Até se flagrarem um dia adultas, as ricas crianças da favela não sabiam que eram pobres.

(Dudu Fagundes, O Maestro Das Ruas)