O Segredo
Norberto e Antenor moram há anos no mesmo bairro e construíram ua amizade regada a copos de cerveja e carteados em mesas de bar. Não são vizinhos de casa, mas de rua. Não há fim de semana em que não se encontram para beber, jogar e prosear. Enquanto os demais amigos, ao saírem de casa, contam com quem encontram, Norberto e Antenor, antes de encontrarem os demais, têm que se ver um ao outro, senão não existe fim de semana. São ambos casados, com mulher e filhos.
Norberto é aposentado do cais do porto e Antenor sobrevive da pescaria. Acostumado à vida noturna, não é difícil para ele emendar, à conquista de um mar profícuo, um dia carregado de comemorações. Os peixes, já nos mercados, mortos e congelados, esperam a clientela. Estas, esperam a fome, já se aproximando e Sabrina, a mulher de Antenor, espera o marido, cheia de ódio, mas já acostumada.
Pescar, para Norberto, se comparado a jogos de loteria, não deixa grande diferença. Se houver alguma é que, no jogo ele já pescara alguns trocados, ao passo que, na pescaria, nunca tirara a sorte grande; nem a pequena, para se dizer a verdade.
Por isso, desistira Norberto, já há algum tempo, de tentar qualquer espécie de sorte que viesse das águas do mar de que era vizinho. Mas, graças a sua mudança de opinião e influenciado pelo amigo inseparável, surgiu esta história, contada e recontada nas areias e nos mercados de peixe.
Muito embora, para o próprio, fosse melhor que nunca tivesse ela existido, para mim fica a satisfação de tê-la conhecido e poder transmiti-la agora aos meus leitores. Para estes, fica o sabor da história e a reflexão para experiência; para mim a missão cumprida e, para Norberto, a dúvida.
Narro-a segundo a ouvi, sem alterar uma vírgula. Acho que perderia se assim fizesse porquanto os relatos coincidem. Acrescento que, vinda de pescadores, procurei descartar os exageros e a criatividade. Nunca acreditei, de fato, nas histórias sobre histórias de pescadores até ouvir deles próprios; e como ouvi! Agora acredito. Ou não acredito. O que dá no mesmo.
A alegria de Antenor ia além da conta naquele sábado; ele mesmo não acreditara. Os últimos dias fizeram em si brotar uma percepção acertada. De onde parar com o barco. De onde lançar sua rede. Ele não ia aos peixes, estes vinham a ele; com transcendental boa vontade. Não havia diferença entre o tamanho do seu sorriso e o dos comerciantes da área. A satisfação era a mesma. E a vantagem, também.
Imbuído desta felicidade, quis trazer também para Norberto um dia e, quem sabe, uma noite de glória. Teria lugar àquela noite o esperado concurso de pesca, já famoso na região, e o convite foi feito. Mesmo sabedor das qualidades pesqueiras do amigo, Antenor, por fé na amizade e animado pelos efeitos da carraspana, pois a tarde já ia finda, tentou convencer o outro, não menos borracho.
- Você se lembra da última vez em que pesquei? - perguntou Norberto ao amigo.
- É claro que me lembro. Mesmo sabendo que dormimos até bem tarde aos domingos, fizeram questão de nos acordar antes da hora para unirmos as duas famílias numa peixada e tanto. Sabrina ficou encantada; nunca tinha visto minha mulher elogiar daquele jeito uma comida. E Carminha, o que achou?
- Até hoje comenta aquele almoço. Porém, o mais importante ainda não te falei. Não tive coragem. Então, por causa desse convite, decidi abrir o jogo. - E sem esperar resposta, contemplando a admiração e o suspense estampados na fisionomia de Antenor, concluiu:
- Mais satisfeito deve ter ficado o dono do mercadinho onde comprei o Badejão. E não era para menos; êta, peixe mais caro aquele!
Antenor desatou numa gargalhada de gosto.
- Então não se preocupe - disse, ainda rindo com sonoridade - vamos aproveitar para nos divertirmos. Não sou tão azarado quanto você, mas, concursos não são o meu forte. Em todo caso, vamos repartir o almoço. Dou a você a minha parte do pescado ou, menos mal, garanto o mercadinho; Ah! Ah! Ah!
E assim fizeram. Foi muito mais fácil a Antenor convencer o amigo do que a ambos convencerem as suas mulheres. Quanto a Sabrina, mulher de Antenor, preferiria, naquele ensolarado domingo, fim de semana, menos peixes e mais companhia e diálogo com o marido, já que vivia sozinha na ausência deste. A solidão de Carminha era menor. Um filho de oito anos dava-lhe o que fazer e o que falar.
Queria descansar. Aos domingos, pelo menos. Não queria um marido para dormir à noite e encher a cara durante o dia, e logo nos dias de folga. Contudo, tendo as mulheres a opção da escolha entre a tolerância e a revolta, escolheram aquela, por motivos óbvios de um casamento.
Um céu estrelado, uma lua brilhante sobre um mar que prometia. Quarenta barcos perfilados na orla da praia. Divididos os grupos, Norberto para um lado, Antenor para outro. Pertenciam a equipes diferentes. Equipes de três pescadores e um juiz para cada barco.
As três ilhas maiores abrigaram todo o concurso. Os molinetes curvavam-se do alto da base de um dos montes; ao redor do plano intermediário de um velho e esquecido farol em uma segunda ilha e, mais embaixo, próximo à água, na terceira, um pouco mais afastada.
As linhas brilhavam para os olhares mais apurados. Cintilavam à luz da lua. Aqui e ali um lusco fusco de prata e uma nesga de luz. Interrompiam a calmaria das águas não mais do que um repuxar de anzol, um fulgor de linha ou uma entre vida de ser, surgindo, pendurada na extremidade.
A manhã trouxe glórias, decepções, mas tudo isso misturado a uma admirável esportividade. Os bares, as peixarias, as praças eram o palco das expressões já conhecidas e sempre aceitas. Norberto não se queixava; aquela praia não era a dele. Nem de muitos que, como ele, aceitaram o desafio. Mais pela diversão do que pelos resultados.
- Não tem problema. Valeu pelo passatempo e pela experiência - dizia. Antenor ficara, como resultado de sua atuação, com quatro pescados de bom tamanho.
- Pegue estes dois e vá até minha casa - disse, fechando a tampa do isopor.
- O que vou fazer na sua casa sem você?
- Sabrina vai adorar o presente de sua mulher como resultado da pescaria.
- E por que não vamos juntos?
- Aí é que está. Diga que fui fazer o mesmo na sua casa. É claro que vou ficar aqui esperando e depois iremos juntos, oferecer a Carminha o ótimo resultado da pesca do seu esposo. Com os meus elogios, é claro.
Ao ficar sabendo, Sabrina não vai recusar novo convite para deliciosa peixada. Então você propõe: “Almoçamos na nossa casa e jantamos na de vocês”, ou vice versa. O que achou da ideia?
Norberto foi e fez o que sugerira o outro, mas, com uma pontinha de tristeza e incompreensão. Ao retornar, não encontrou Antenor que, conforme o combinado, o deveria estar aguardando. Não queria pensar bobagens; “Será que... Carminha... e Antenor...?” Não, não podia ser verdade; tantos anos de amizade. É certo que Carminha... Bonita como ela só..., mas... Não, não queria pensar nisso.
Ficou só, com os pensamentos e buscou, com alguns copos a mais, abafar as ideias que o estavam atormentando. E Antenor não aparecia. Continuou. Bebendo. E esperando. E pensando no que faria em seguida: voltar à casa de Antenor, ir direto para a sua; e para o flagra ou acreditar nas histórias de pescadores que surgiriam depois?