Ping Heng - A Ordem Capítulo VII

Preparativos

O domingo chegou mais rápido do que o esperado. Mais rápido do que o desejado. Cada um dos futuros campistas ocupava-se em arrumar as malas para o acampamento. Era um negócio complicado, visto que passariam dois meses fora, incomunicáveis, e que não sabiam direito com que tipo de ambiente teriam de lidar. Ao fim do trabalho, cada um viu-se com malas gigantes, lotadas de coisas úteis, possivelmente úteis e improvavelmente úteis, além das completamente inúteis que levariam apenas por segurança caso... caso aparecesse alguma utilidade para elas.

Embora não soubessem, um laço já se formava entre eles. Compartilhavam do mesmo medo e ansiedade, da mesma dúvida, embora tivessem problemas diferentes.

Shaíra não queria ter de deixar a mãe sozinha. Sabia que a mãe também não queria ser deixada. A mãe sabia, porém, que Shaíra não a deixaria se não fosse por uma boa razão, embora Shaíra não quisesse compartilhar com ela os motivos que a levaram a atender ao convite – ou teria sido intimação¿ - e ficar fora de casa por tanto tempo. Mas nem mesmo Shaíra entendia essa necessidade de ir ao acampamento, um sentimento mais forte do que ela, que a arrastaria para longe de sua mãe por longos dois meses, durante os quais ela teria de se contentar com a lembrança do último beijo que a mãe lhe dera, antes de sair, seu sorriso e seus olhos tristes, ao vê-la indo embora.

Iara levou algum tempo para conseguir se livrar dos abraços e beijos do primos e tios, das advertências para tomar cuidado, e dos “vamos sentir saudades”. Em outras situações, ficaria feliz em poder ir acampar, sair da loucura da cidade. Entretanto, teria de ficar fora por tempo demais, longe de todos que amava, contando apenas com a companhia dos “especiais” – com os quais ela jamais trocara palavra -, e de seja lá quem fosse ficar responsável por eles. Seria uma experiência e tanto, não tinha dúvidas. Se boa ou ruim, não podia ter certeza.

Mellany olhou para trás mais uma vez, tentando decidir se havia mais alguma coisa para ser levada. Ou talvez estivesse apenas relutando em ter de deixar mais alguma coisa. Por fim, resolveu que de nada adiantaria enrolar mais. Encontrou a mãe em sua poltrona, de onde raras vezes saía, o olhar perdido, como se a alma estivesse bem longe do corpo. Mellany lhe deu um beijo rápido, detendo-se, por um instante, nos olhos perdidos da mãe. Mas não pôde encará-la mais, porque seu coração doía muito. Saiu e fechou a porta do quarto. Sobre a mesa, deixou um bilhete para a tia que chegaria dali a pouco: “Cuida dela”. Pegou as malas e foi-se, dessa vez sem olhar pra trás.

Hideki não tinha muita gente de quem se despedir. Apenas o sensei, seu tutor. Fez-lhe uma mesura respeitosa, após ouvir atentamente aos últimos conselhos do sábio senhor oriental que lhe servira como pai por toda a vida. “Lembre-se, respeito e disciplina devem ser mostrados em todo o lugar, inclusive nesse acampamento. Espero que se comporte adequadamente”. O único problema é que Hideki não tinha muita certeza sobre qual seria a maneira adequada para se comportar nessa situação. Dickens lhe dissera que todas as suas perguntas seriam respondidas no momento oportuno. Hideki aguardava esse momento ansiosamente.

Nana não parou de falar um minuto durante o café da manhã, esperando garantir que todas as suas recomendações fossem seguidas, embora ela soubesse que Arthur nunca fora do tipo de seguir qualquer instrução. Por fim, com os olhos cheios de lágrimas, beijou e abraçou Andrew, finalizando com um breve “Cuide do cabeça oca do seu irmão por mim”. Arthur, o cabeça oca, abraçou-a com força e deu-lhe um grande beijo na bochecha. Como poderia sobreviver dois meses longe da babá, depois de uma vida inteira sob seus cuidados, isso ele não sabia.

- “Não apronte muito, Arthur, cabeça oca.

Arthur sorriu. Não apronte e Arthur não se encaixavam bem na mesma frase.

Recepção

Os convidados nem mesmo entraram na escola. Foram direto para a van. Muitos deles se perguntavam por que o próprio Dickens estaria dirigindo e veículo, e por que nenhum outro maior os acompanhava.

Inicialmente, alguns deles tentaram acompanhar a rota, tentado se localizar. Mas depois de muitas horas de curvas e caminhos estranhos e pouco movimentados, acabaram convencendo-se de que jamais voltariam pra casa sozinhos, e que o caminho pouco importava.

A viagem seguia em silêncio absoluto. Mellany e Arthur distraiam-se com seus fones de ouvido; Hideki jogava um game em seu celular; os três aproveitavam os últimos momentos de sinal de internet. Andrew lia seu livro. Shaira e Iara observavam a paisagem. Ninguém estava disposto a conversar. Olhavam uns para os outros com desconfiança. Cada qual pensando nos motivos que poderiam ter trazido os outros ali; como e quando eles haviam recebido o pingente; se fora da mesma pessoa; se estariam todos tão ansiosos por receber respostas; se as receberiam mesmo.

Pararam apenas algumas vezes para irem ao banheiro, esticarem as pernas e fazerem um lanche.

Chegaram ao acampamento já era noite. Dickens teve de descer da van para abrir o grande portão de madeira, que já estava destrancado. Ajudou a descer as malas, entregou as bagagens a cada um, desejou boa sorte a todos, e mostrou o caminho da entrada. Disse que viria busca-los ao fim do bimestre. E foi embora, trancando o cadeado do portão atrás de si.

Por alguns momentos, os garotos ficaram parados, olhando para aquele grande campo escuro, sob um céu muito estrelado. Tudo parecia calmo e vazio. Apenas uma grande edificação quebrava a monotonia da planície verde. Uma edificação bela- porém não extravagante - de arquitetura chinesa. Algumas luzes estavam acesas. Um caminho iluminado por lanternas chinesas que começava ali, onde Dickens os deixara, seguia por vários metros, margeado por belas flores, até a varanda da grande edificação.

Lá, diante da porta, sentava um senhor, muito idoso, com uma longa barba branca e cabelos igualmente longos e brancos, meditava em seu quimono, sentado no chão. Ou talvez ligeiramente acima dele.

Por fim, Arthur tomou a frente:

- Não podemos ficar aqui a noite toda, não é¿ É melhor a gente entrar. Tomara que esteja na hora do jantar.

Caminharam, um pouco receosos, pela trilha, tentando fazer o mínimo de barulho, para não atormentar o velho oriental em sua meditação.

Ao chegarem à varanda, pararam, esperando que o senhor lhes dissesse algo, Ou que pelo menos abrisse os olhos. Mas, nada. Como ninguém tinha a menor noção do que fazer, Hideki inclinou-se em um cumprimento, murmurando:

- Bom senhor.

O velho mexeu um pouco a cabeça na direção do som. Deus um longo suspiro e, por fim, abriu os olhos.

Um pouco desconfortáveis, Iara, Shaíra e Andrew, imitaram Hideki em sua reverência. Mellany e Arthur, porém, mantiveram-se como estavam.

Com uma voz profunda, porém suave, que parecia há muito não ser usada, o velho finalmente disse, retribuindo a mesura:

- Sejam bem vindos, aprendizes do Equilíbrio!

De "delinquentezinho" a "aprendiz do equilíbrio". A coisa com certeza ia de mal a pior. Aquilo tudo seria pior do que Arthur imaginava.

O velho se levantou, mas não parecia ter qualquer dificuldade para se locomover, o que deixou Arthur um tanto quanto espantado. Um velho tão velho sem doenças de velhos era realmente algo espantoso para Arthur, que nunca tivera contato direto com um idoso, e que imaginava que todos eles tinham de estar caindo aos pedaços.

Talvez Arthur fosse muito transparente, porque o velho sorriu para ele:

- Nem todo velho é reumático, Arthur.

Ligeira, e apenas ligeiramente, constrangido, Arthur encarou o velho por alguns momentos. Encontrou os olhos pequenos e zombeteiros do velho. Ele parecia estar gostando muito de estar sabendo bem mais sobre o que estava acontecendo ali do que Arthur. O velho sustentou o olhar insolente de Arthur, sem deixar de sorrir. Estava óbvio que teriam muitos problemas um com o outro. Se Arthur era um problema, o velho podia ser um problema ainda maior se quisesse. Arthur não tinha certeza de como descobrira isso. Mas tinha a impressão de que pudera ler tudo isso naqueles olhos pequenos.

Arthur, por fim, cedeu e desviou o olhar.

- Vamos entrando, temos muito o que conversar – O velho indicou a porta. Ninguém pareceu muito ansioso para entrar. Arthur tomou a frente novamente.

O interior da edificação tinha as mesmas características do exterior. Tinha poucos móveis, somente o essencial, sem luxos desnecessários. Uma mesa de madeira estava posta: yakisoba. Em volta da mesa retangular estavam dispostas dez cadeiras. Uma delas estava ocupada por uma garota oriental de vestido branco. Ela. A garota da balada. Arthur notou que os colegas prenderam a respiração ao notarem a garota sorrindo para eles, como havia feito anteriormente, mas individualmente. Ao lado dela, em cadeiras especialmente feitas para eles, sentavam-se dois gordos bebês chineses. Gêmeos. Dois meninos de olhinhos inteligentes, muito ocupados com seus mordedores para dar mais atenção do que um simples olhar aos recém-chegados. Vestiam pequenos quimonos, com letras, que Arthur supôs serem suas iniciais, - L e H - para que não fossem confundidos um com o outro.

Como o sorriso não retribuído e o silêncio estavam incomodando Arthur, ele resolveu tomar a atitude:

- Huum... E aí¿

- Nos encontramos de novo, Arthur. É bom vê-lo aqui.

Ela também sabia mais que ele. Ele a detestava por isso.

- Tá. Parece que eu sou quem sabe menos aqui. E já que todo mundo aqui me conhece tão bem, vamos logo com isso. Esse yakisoba aí é pra gente comer ou ficar só olhando¿

- Sentem-se, fiquem à vontade. Estávamos esperando vocês para o jantar – convidou o velho.

Ele sentou-se ao lado do outro bebê. Embora todos os outros lugares estivessem com pratos servidos à sua frente, não havia nenhum prato para o senhor oriental, nem para a garota. Os seis sentaram-se nos locais que haviam sido determinados a eles: no lado oposto da mesa. Comeram avidamente, já que não comiam há várias horas. Os bebês foram alimentados pelo senhor e pela garota.

Quando já estavam na metade da refeição, o velho manifestou-se:

- Já que passaremos dois meses juntos, seria bastante interessante que nos apresentássemos, para que pelo menos pudéssemos nos chamar pelos nomes. Vou começar por mim mesmo. Sou Ai-tsung Chang. Podem me chamar de Mestre Chang, se quiserem.

- Eu sou Yuk Ming. – Disse a garota oriental – Mas não vou passar muito tempo com vocês. Minha missão aqui está quase completa, portanto vocês pouco me verão depois de hoje.

- Os bebês são Lok e Ho. – Disse Chang, apontando, respectivamente, para o bebê ao seu lado e para o outro - Têm onze meses de idade. Falam apenas algumas palavras e choram bastante. Mas acho que isso vocês vão acabar comprovando sozinhos. Qual de vocês vai ser o primeiro a se apresentar¿ Arthur, que tal você¿ Vamos do mais velho para o mais novo.

Arthur respirou fundo. Me apresentar pra quem¿

- Embora todo mundo aqui saiba melhor que eu, meu nome é Arthur Battlefield. 17 anos. Popularmente conhecido como “o delinquentezinho” – Lançou um olhar provocativo a Mellany, que respondeu com frieza.

- Sou Mellany Perez. 17 anos. Popularmente conhecida como “a gótica” – Dessa vez, ela que olhava provocativamente para ele.

- Hideki Masao, 17 anos, não tão popularmente conhecido como “o hacker”.

- Iara Pereira. 16 anos. Me chamam de “índia”, por razões óbvias.

- Andrew Battlefield. Irmão do “Senhor Problema”. 15 anos...

- Popularmente conhecido como “nerdão”, por razões óbvias – Interrompeu Arthur.

Ouviu-se pequenos risos, pela primeira vez, na sala. Por isso, sabendo que era sua vez de se apresentar, Shaíra estava bastante desconfortável.

- Shaíra Makena. 11 anos... Não sou conhecida.

- Certo. – Sorriu Chang – Agora que já sabemos os nomes de nossos colegas, suponho que todos vocês tenham muitas perguntas. – Todos concordavam – Não se preocupem. Todas elas serão respondidas no momento oportuno.

Arthur viu as sobrancelhas de Hideki se erguerem em um espanto genuíno e perguntou-se o motivo da reação.

Gabi Correia
Enviado por Gabi Correia em 20/11/2013
Código do texto: T4579593
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