Ping Heng - A Ordem Capítulo IV
A Reunião
A reunião anual para tratar do caso Arthur Battlelfield acontecera no início das aulas, no mês anterior. Todo ano Arthur chegava muito perto de ser expulso da escola, mas, por um motivo ou por outro, sempre acabava se safando por pouco. Isso porque a diretora Meiying Zhou, embora muitos desconhecessem o motivo, lutava com garras e dentes para mantê-lo na escola. Entretanto, sua tarefa estava ficando cada vez mais difícil.
- Minha cara Srta. Zhou – começara a professora Miriam, logo no início da reunião -, espero que tenha bons argumentos para me fazer aguentar o Sr. Battlelfield por mais um ano, porque nas últimas reuniões, seus argumentos têm sido cada vez menos convincentes.
Mas ainda assim eficazes, por sorte, pensou a diretora.
- Vejamos. – A diretora começou a folhear seu caderno de anotações – Não se pode negar que ele tenha melhorado bastante esse ano. Segundo meus gráficos, ele atingiu o ápice da indisciplina na oitava série, quando passou a frequentar a minha sala todos os dias. Mas do primeiro ano pra cá ele diminuiu, gradativamente, para três, duas, e finalmente uma visita por semana à minha sala, agora apenas durante as aulas de química, que ele se recusa a assistir. Devem considerar essa melhoria, antes de votarem contra o garoto.
O silêncio na sala era bastante incômodo. Todos se mexiam em suas cadeiras, bastante tensos.
- Talvez, Srta. Zhou, isso não signifique que ele tenha melhorado – rebateu o professor Juscelino, com sua voz cortante -, e sim que nós acabamos percebendo que as visitas dele à sua sala não têm surtido efeito algum, e que resolvemos lidar com ele do nosso próprio jeito.
Todos na sala baixaram os olhos, nervosos, enquanto a diretora e o professor trocavam um olhar mortal. Questionar a autoridade da diretora daquela forma podia ser perigoso, até mesmo para um professor veterano.
- Mas até que a sua colocação não é de todo equívoca – continuou o professor. Agora todos os olhavam, ansiosos. – Ele tem mesmo deixado de nos perturbar durante a maioria das aulas. – Ele fez uma pausa, só pra deixar as esperanças da diretora aumentarem um pouquinho – Isso porque ele está quase sempre bêbado ou de ressaca, e costuma dormir a aula inteira, o que, no que diz respeito ao Battlelfield, pode mesmo ser considerado uma melhora de comportamento. - Ele riu, desdenhoso.
- Ele é um péssimo exemplo para os alunos mais novos, acaba com a qualidade do nosso ensino, e destrói a reputação da nossa escola entre os pais de nossos alunos – Emendou a professora Miriam. – Não sei por que é que a senhora continua insistindo em mantê-lo aqui, sinceramente.
- A culpa não é dele, todos nós sabemos disso. – Pronunciou-se o professor Ewerton, de matemática. – Os pais dele são totalmente irresponsáveis. O garoto já tem problemas suficientes com que lidar, expulsá-lo só pioraria tudo.
- Pioraria pra eles, mas melhoraria muito pra nós e pros outros alunos. – Argumentou Juscelino.
- Pode melhorar pra você, Juscelino, mas pra mim não. O garoto é meu melhor aluno, tem um grande potencial, mas é um potencial que deve ser trabalhado da forma correta, o que não inclui expulsá-lo. Ele precisa que acreditemos nele.
- Mas nós acreditamos, nós o apoiamos, tentamos ajudá-lo de todas as formas possíveis e imagináveis – Foi a vez da professora Doroteia falar. – E como ele retribuiu¿ Tornou–se cada vez mais indisciplinado. Lembra-se de quando resolvemos contratar uma psicóloga para trata-lo¿ A pobre coitada pediu demissão no dia seguinte.
- Mas, convenhamos, ela era mais desequilibrada do que muitos dos nossos alunos, era uma grande incompetente. – Disse o professor Jonas, que era um dos que se mantinham mais neutros.
- Ah, mas devo lembra-lo de que, depois dessa, nós tivemos mais seis psicólogas, das quais cinco pediram demissão na primeira semana, e a última, nossa maior esperança, e a que durou mais tempo, foi demitida por justa causa ao ser flagrada “ficando” com o rapaz na sala de consulta. E ainda, creio que ninguém aqui esqueceu, quando a diretora perguntou a ele por qual motivo ele havia seduzido uma funcionária da escola, ele disse que fora o único jeito que ele vira de se livrar dela, já que ela havia se recusado a pedir as contas! Como vêm, ele não quer ser ajudado! E mesmo assim, nós o aguentamos já há vários anos, sempre na esperança de que algum dia ele vá melhorar, mas isso nunca acontecerá! Pra mim, já chega, ele não merece mais nenhuma oportunidade de minha parte! – Doroteia estava simplesmente exasperada.
- Mas vocês têm que admitir que o rapaz é inteligente. Suas notas são sempre boas. – arriscou Jonas.
- A inteligência sem disciplina de nada vale, meu caro. – Rebateu Juscelino.
O inspetor Dickens, que sabia muito bem da importância da permanência de Arthur na escola, começou a se desesperar, e lançou um argumento que sempre surtia algum efeito sobre os professores:
- Se expulsarem Arthur, os advogados dos Battlelfield nos comerão vivos, podem ter certeza. Então não teremos mais que nos preocupar em manter nossa reputação, porque não teremos mais nenhuma reputação a manter. Apesar de idiotas, os Battlelfield são muito ricos e, portanto, muito perigosos.
Mas, para a infelicidade de Dickens e da diretora, a professora Miriam contra argumentou:
- Ele vai acabar com a nossa reputação de qualquer jeito, porque continuar desgastando a nossa equipe¿
Meirying Zhou fez uma última tentativa de salvação, jogando sua última carta:
- É o último ano dele na escola, de qualquer forma. Já o aguentamos até aqui, por que expulsá-lo agora¿
Após um momento de cochichos e murmúrios, a professora Kate, de química, deu o primeiro voto:
- Ele nem mesmo assiste as minhas aulas, portanto não vai me incomodar. Pela reputação da escola, e porque é o último ano dele aqui, eu voto a favor do Battlelfield.
Com um primeiro voto em aprovação, o inspetor e a diretora voltaram a respirar. O resultado foi um empate, mas como o voto da diretora tinha um peso ligeiramente maior, Arthur estava salvo, pelo menos por enquanto.
O Convite
- Aí, Battlelfield – chamou Joe – Tu tá muito inteiro pra quem tomou um porre ontem... Que que houve¿
- Chazinho da Nana, sempre resolve... – Arthur sorriu.
- Ah, é, - Caçoou Greg – esqueci que sua babá sempre dá um jeito nas coisas pra você... Mas ‘cê tá muito estranho. Tá meio sério, parece preocupado... Nem parece o Arthur que eu conheço...
- Ãaan... Nada a ver, eu tô legal...
- Ah, mas não tá mesmo! – Afirmou Joe – Alguma enrascada¿
Arthur ia responder, mas foi interrompido por batidas na porta da sala. Era o inspetor Dickens:
- Arthur Battlelfield, que bom que está acordado.
- Dickens, meu brother, veio tripudiar¿
- Não, vim convidá-lo para ir à diretoria.
A classe toda passou a prestar a atenção agora, apesar de ver Arthur ser chamado à direção ser algo bem comum. O fato é que todos estavam esperando ele debochar um pouco, só pra poderem rir. “Todo bobo tem a sua corte”, era o que os professores diziam.
Arthur consultou o relógio:
- Não, Dickens, acho que a Meiy se enganou: nosso encontro é só depois do intervalo, na aula de química. Você sabe, vou estar muito ocupado atazanando a professora de português nas próximas duas aulas, e esse é um compromisso inadiável. Como é que ela quer ter uma relação duradoura se não respeita meus horários¿
A sala toda ria, enquanto Arthur, satisfeito, mantinha a pose de quem está falando sério. A professora não viu graça nenhuma, mas sabia que não resolveria nada se intrometer.
- Muito engraçado, Battlelfield – ironizou Dickens-, mas a Srta. Zhou, que vê-lo imediatamente. – Ninguém, jamais, ousava chamar a Srta. Zhou de Meiy. Mas Arthur, claro, não era “ninguém”.
- Mulheres... – gracejou Arthur.
- Eu não sei por que ainda me preocupo com você, Arthur – Disse Joe, em meio a risadas – Você é o tipo de cara que tá sempre bem, é sempre um mala. Vai lá, e manda um beijo pra Srta. Zhou.
Se ele soubesse...
- “Podexá”.
Arthur foi entrando na diretoria sem pedir licença. Já se sentia em casa. Ou melhor, costumava se sentir em casa. Hoje, porém, ele se sentia ligeiramente desconfortável. Tentou afastar o pensamento agindo naturalmente:
- Meiy, linda como sempre!
Ele olhou com carinho para aquela pequena e esguia chinesinha, a quem, embora não desse o devido respeito, admirava imensamente. Ela tinha a paciência característica dos orientais. Se assim não fosse, ela já teria jogado tudo para o alto e expulsado Arthur há muito tempo, ele reconhecia. Mas ele gostava dela.
Sentou-se e, como ela continuasse calada, continuou:
- O que houve¿ Ainda nem aprontei nada hoje, e nem é aula de química, e cá estamos. – Só então ele reparou que havia mais alunos na diretoria, entre eles, Andrew. – Não, sério, meu irmão na diretoria¿ Impossível! Ele nunca fez nada errado na vida, coitado!
A diretora respirou fundo e finalmente perguntou, com sua voz suave:
- Vai me deixar falar, Arthur¿
- Ah, claro, desculpe.
- Obrigada. Agora sente-se lá, junto com os outros, por favor. Isso, aí está bem. Dickens, entre e feche a porta, por gentileza. E vocês já podem respirar, queridos, não fizeram nada de errado. É claro que isso não se aplica ao Arthur, mas no momento ele também não está encrencado, o que pode ser considerado um milagre.
- Ah, não¿ - Agora Arthur estava preocupado, de verdade.
- Não. Vocês foram selecionados como alunos especiais da nossa escola.
Arthur sorriu:
- Ah, sério¿ Vejamos, temos aqui um belo e estranho grupo: o grande nerd do meu irmão, a gótica do outro terceiro, o japa do outro terceiro, a indiazinha do segundo e uma menininha da... em que série você está, neném¿
Shaíra não gostou nem um pouco de ser chamada de neném, mas, como estava na presença da diretora, resolveu ser educada e responder:
- Na quinta.
- Uma menininha da quinta – continuou Arthur – e eu, claro, o cara mais especial da escola, embora “especial” não seja o termo que os professores usem pra me definir... O que significa ser especial, nesse momento¿
- Significa que vocês estão sendo convidados para passarem um tempinho, uns dois meses, suponho, no nosso acampamento, Ping Heng. Vocês sabem, todos os anos nós convocamos nossos alunos especiais para ir ao acampamento, e essa é um grande honra. Espero que valorizem isso e compareçam.
Arthur ia protestar, mas Mellany, “a gótica do outro terceiro”, foi mais rápida:
- Eu não vou pra nenhum acampamento idiota!
- Tô com a gótica, não vou, não – Complementou Arthur.
- Eu só vou se lá tiver internet e espaço pra treinar karatê. – Declarou calmamente Hideki, “o japa do outro terceiro”.
- Não tem internet, mas tem espaço para a prática de todas as artes marciais, o que me diz¿ - Ofereceu a diretora.
- Nesse caso, eu vou ter que pensar.
- Alguém tem mais alguma objeção¿ Perguntou a Srta. Zhou.
Os outros balançaram a cabeça em negação, e Andrew disse:
- Eu aceito, diretora. Será uma honra.
- Parabéns, irmãozinho, vai ter a honra de participar de mais uma coisa chata – debochou Arthur. – Agora, já posso voltar pra minha aula de português¿
- Arthur, você não tem opção. Vai ter que ir ao acampamento. – Declarou a diretora.
- Posso saber por quê¿
- Porque eu quero que você vá.
- É mesmo¿ Desculpa, meu bem, mas eu não estou aqui para fazer o que você quer, acho que já deve ter notado isso.
- Você ainda não entendeu a gravidade da situação, não é mesmo¿ Esse ano, Arthur, o número de votos a favor da sua expulsão foi idêntico ao número de votos contra a sua expulsão. Você só está aqui ainda porque eu tenho trabalhado muito pra isso, e porque o meu voto vale um pouco mais que o voto dos professores. Mas, se você me decepcionar, eu posso muito bem mudar de lado, desempatando o jogo e agradando a mais da metade dos funcionários da escola. E tenho certeza de que seria muito triste pra você ter que mudar de escola no último ano. Todos os amigos que você perderia, o trabalho que daria pra você fazer novos amigos e reconstruir sua fama em outra escola... seria uma lástima.
- Você está me ameaçando¿ - Arthur tentou soar debochado, mas estava desconcertado com sua situação.
- Não, Arthur, não é uma ameaça. É uma promessa. O acampamento é uma última e desesperada tentativa de te tornar uma pessoa melhor. Não dê as costas a todo o trabalho que eu tive pra te fazer chegar até aqui.
Houve um grande e incômodo silêncio, até que Mellany falou:
- Pode até convencer o delinquentezinho aí a ir, mas não tem como me chantagear.
- Não estou aqui para chantagear ninguém, Mellany. A propósito, uma garota oriental de vestido branco te entregou alguma coisa ontem, como, por exemplo, uma corrente com o pingente do Yin Yang¿
Todos os alunos prenderam a respiração, pasmados e boquiabertos. Perderam totalmente a cor ao constatar uma pequena protuberância sob a camiseta de cada um dos outros alunos. Todos tinham recebido a corrente da oriental de vestido branco, e a diretora sabia disso. Mas como¿
Como ninguém encontrou palavras para responder à pergunta da diretora, ela mesma interrompeu o silêncio:
- Ótimo. Bom saber que ela continua sendo eficiente em seu trabalho. Dickens irá entregar-lhes uma ficha de autorização para seus responsáveis assinarem. Vocês deverão trazer as autorizações até o final dessa semana e serão enviados ao acampamento na próxima segunda-feira. Agora podem voltar às suas salas.
Os alunos foram se levantando lentamente e se retirando. Arthur foi o último a se levantar e, quando estava saindo, a diretora o deteve:
- Arthur¿
Ele não respondeu, nem se virou, apenas permaneceu onde estava.
- Não me decepcione.