A Experiência

A sala, mergulhada numa escuridão completa, não me permitia ver a paleta, os pincéis ou a tela . Eu escutava e sentia a presença humana a retratar posando para mim a menos de metro e meio do cavalete. Sabia pela memória, vagamente, o lugar das cores na paleta redonda pousada sobre a mesa de apoio mas alguém a colocara noutra posição por forma a que eu perdesse toda e qualquer referência. Não via, não sabia o lugar das cores mas, pelo tacto, poderia escolher os pincéis, as espátulas, as bisnagas da tinta. Tocava, baixo , com som distorcido, “ Adágio”, de Albinoni. Deveria sentir e pintar a imagem que se formasse no meu cérebro ali posto a recolher informações mínimas. Tu, o modelo, já lá estavas quando me colocaram junto á tela, grande, onde deverias estar, em pintura, no final da experiência. A tua voz, distorcida tal como todos os sons, parecia-me um ronco vibrante. Era tão próxima que poderia agarrá-la, grudá-la a mim e tentar ler, com os dedos, os sons das palavras sem sentido que dizias. Gradualmente a música desapareceu. Apenas serviu para que eu ajuizasse o teor da distorção dos sons. Fiquei longos minutos estático. Depois, além da firme convicção do teu sexo, adivinhei a tua nudez. Fazia perguntas mas as tuas respostas pareciam vibrações cavernosas. Eras mulher e estavas nua. Comecei a pintar como se a paleta não tivesse saído da sua posição inicial. Com regra e método, primeiro, com desespero depois, com plena liberdade de gesto a maioria do tempo. Trouxe da minha memória a tua figura e tentei representar-te sob uma luz que não havia, num sereno espaço transformado agora em caos onde as emoções jorravam cegas e disléxicas. Raspei, risquei, empastei a tela. Senti-a sobre os dedos e vi-te nascer das trevas sem saber quem eras, mas sentindo-te como entidade próxima. A arte é para se executar com todos os sentidos e aquela era para ser feita com o mínimo deles. Registar a emoção sem a simbologia da cor. Quando a sessão chegou ao fim, quando a melodia voltou ao caminho que lhe deu Albinoni, quando as palavras voltaram á limpidez usual e, finalmente, se iluminou o espaço, tu já não estavas. Apesar disso, eu que te representei no escuro sem saber quem eras, vi-te na emocionada anarquia das formas. A tela representava o amor mas era a sua radiografia.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 28/09/2013
Código do texto: T4502595
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