Danilo e os peixes
Danilo é um cara inteligente, sempre tem respostas muito rápidas, discute os mais variados assuntos.
A alguns tempo atrás me emprestou um livro sobre o planeta vermelho “hercolobus”. Segundo a teoria do autor ele prevê uma grande catástrofe para o futuro próximo, onde seremos atingidos por esse planeta vermelho que em sua rota pelo cosmos vai dar de cara com a terra, com o choque tudo se transformará em poeira cósmica. Danilo sempre teve uma veia esotérica muito ativa.
No começo dos anos 90 Danilo resolveu da um tempo de Roraima levando junto a sua namorada tão jovem quanto ele, acho que na verdade ele não queria fugir, queria mesmo era ir para o rock in rio segunda edição, digo isso porque era o que eu queria fazer só não tive coragem. Claro que depois dessa festa toda o Danilo iria ficar por ali de rolé. Foi exatamente o que fizeram depois que a festa no Rio acabou foi parar são Paulo lá viveram como hippie ele e sua namorada durante dois anos. Danilo não aguentou essa empreitada por muito tempo, a coisa apertou, a mina engravidou bateu a saudade dos amigos e da família, lá vem o Danilo de volta para o extremo norte.
Veio subindo de carona, na base do dedão pra cima até Manaus, dali em diante tinha 750 km para chegar em BV. Essa é a distancia que separa Boa Vista capital de Roraima de Manaus Capital do Amazonas. Nessa época a rodovia BR 174 era estrada de chão, era uma verdadeira aventura atravessa-la, o trecho era só buracos e atoleiros que piorava no período das chuvas. No pico das chuvas o ônibus que fazia a linha às vezes levava quase uma semana para fazer todo o trecho, ainda tinha de atravessar a reserva indígena com uma faixa de 130 km até hoje selva pura, esse era o trecho que botava medo nas pessoas. Isso porque em 1968 no inicio da obra houve um caso sinistro em que morreram um padre e oito pessoas que trabalhavam com saúde indígena, foi no rio Alalaù, a fronteira sul de Roraima com o Amazonas, para quem quiser saber mais detalhes e só procurar o livro “massacre” escrito pelo padre Silvano Sabattine publicado em 1995.
O lugar que Danilo arranjou para dar um tempo e pegar carona vindo no sentido de Boa Vista foi o posto 5 uma especie de “ pau da paciência em manaus” Foi ali, que Danilo parou! Estava com fome sua mulher também, nessa época ele sobrevivia com o equivalente a um real por dia para se alimentar. Mas naquele momento não tinha um tostão furado. Deixou a mulher num canto do posto tomando conta das mochilas e foi aventurar como diz a moçada "dar um mangue" naquele momento não tinha caminhão nenhum saindo e mesmo assim ele tinha que levar alguma coisa de rancho para comer na estrada a viagem era longa.
Andando por ali no meio daqueles caminhões estacionados ele olhava para o chão e questionava ao todo poderoso, como dizem alguns incrédulos “falando sozinho” dizia: “Tá vendo ai meu irmão a culpa e sua de eu estar nessa situação, qual foi o meu pecado, para mim tá nessa”. No meio do dialogo com o senhor ele passa por trás de um caminhão cuja o proprietário estava com dificuldades tentando colocar um para barro enorme na traseira do seu caminhão, era um daqueles que tem frases engraçadas. O caminhoneiro diz: “Ei rapaz me ajuda aqui com esse troço que te dou uma grana” Danilo não contou muita conversa se atracou com o serviço. Foram quase hora e meio ali em baixo furando daqui, segura dali, a maquina de furar era manual um “Arco de púa”.
Com a bariga quase encostando no espinhaço de fome, Danilo calculava ganhar o equivalente de 3 a 5 reais, quando terminou o caminhoneiro lhe deu o equivalente a 15 reais, ele agradeceu e saiu caminhando em direção a sua mulher, logo olhou para o céu e disse: “também não precisava pagar esse sapo todo nê meu irmão” deu uma boa risada com o senhor e continuou. Deixou a mulher a par do acontecido e foram comer.
Algum tempo depois, já de barriga cheia e com um ranchinho básico na mochila estava na hora de pedir carona. Por coincidência vai saindo um 1113 (caminhão da Mercedes Benz) todo lonado, Danilo se adiantou numa carreira só, pediu carona ao motorista, esse deu uma diminuída, ainda estava na primeira marcha “ ei mano me da uma carona até Boa Vista” o caminhoneiro deu uma olhada para o “naipe” do Danilo todo malucão... A mulher do Danilo consegue alcança-lo ficando ao seu lado, como diz o próprio Danilo ela era uma “cocota”.
“É para vocês dois? Olha só tem uma vaga aqui dentro, o outro tem que ir lá em cima da carga”. Danilo não contou conversa, pegou na mão de sua gatinha levou-a até a porta do carona, abria a porta coloco-a pra dentro empurrando as coisas do motorista na direção dele criando assim uma pequena barreira, fechou a porta jogou as mochilas e saltou para cima da carga. De repente lembrou algo se apoiou no gigante do caminhão meteu a cara na janela e falou para o caminhoneiro “Olha lá em meu irmão tô de olho em você”. O caminhoneiro deu um leve sorriso já se familiarizando com aquele maluco, meteu a marcha novamente e iniciou a viagem.
Ele conhecia bem a estrada dirigia com maestria, em alguns trechos Danilo em cima da carga tinha que tomar cuidado para não levar uma lapada de galho na cara de tão próximo que a estrada estava da floresta, que parecia querer sarar aquela ferida aberta.
Depois de viajarem o dia todo e parte da noite chegaram ao posto do Abonari bem na entrada da reserva indígena Waimirim-atroaris, ali tem uma corrente e a partir das 6:00 da tarde ninguém mais atravessa a não ser o ônibus e veículos com autorização, as pessoas não autorizadas esperam o dia amanhecer dormindo por ali mesmo.
Quando o dia clareou a corrente desceu seguiram com a viagem, logo de cara pegaram a primeira chuva, Danilo se protegeu como pode, mas como diz os antigos “quem vai para casa não se molha”. A saudade de Roraima tornava aquele banho inesquecível.
A tarde chegaram ao posto de fiscalização do Jundiá no km 512 contando a partir de Boa vista, exatamente na saída da reserva. Ali é um posto fiscal tributário do estado de Roraima. O senhor gordo dono do caminhão desceu e apresentou seus documentos Danilo e a mulher também fizeram o mesmo. Não demorou muito! A viagem segue seu rumo agora eles iram dormir na vila do equador, Tá chovendo muito, terão que atravessar a linha do Equador entrando assim no hemisfério norte ela está no Km 409 contando de Boa vista, ali tem uma praça chamada praça do centro do mundo, bem no meio dela tem um monumento as pessoas que perderam a vida na construção da estrada BR 174. Trata-se de um enorme monólito de uns 4 de comprimento atravessado por uma lamina de metal que contem as coordenadas do local, na pedra tem uma placa de bronze com muitos nomes.
A praça é abandonada, alguns que passam por ali ou dormem dizem que o lugar tem um energia incrível, caminhoneiros que passam a noite relatam sobre o avistamento de luzes que se alternam no céu como se fosse uma aurora boreal do equador, alguns mais sensitivos dizem sentir calafrios ao atravessar a linha, a também aqueles que juram já terem visto ali a mulher de branco. O Danilo estava louco para passar por ali
antes de chegarem a linha do equador eles tinham que passar pelo arara-vermelha o lugar de maior atoleiro na 174. Ao chegaram lá surpresa! Havia um dos grandes, Não passava ninguém tinha uma fila de quase 2 km, vários ônibus e caminhões e umas poucas pick-up, já estavam ali a dois dias. Esperavam a ajuda do sexto BEC.
O seu gordo não teve alternativa a não ser pegar seu lugar e encostar-se à fila, como o pessoal já estava ali há dois dias, já faltava comida. Passaram-se então mais um dia, o ranchinho do Danilo tava pouco, todos já estavam preocupados, pois as maquinas não chegavam e a situação era caótica. Uma senhora que Danilo conheceu por ali estava vindo do nordeste para Roraima, ela já estava 24 horas sem comer, estava começando a passar mal, ninguém tinha algo para oferecer, a esperança era o sexto BEC chegar com os marmitões de campanha.
Enquanto isso Danilo foi dar uma volta vê o que encontrava para oferecer a velhinha e a sua esposa, passou por trás do caminhão do seu gordo que estava dormindo, no canto da carroceria pingava uma agua, Danilo aparou um pouco com a mão e levou até o nariz, sentiu o forte cheiro de peixe na agua. Imediatamente ele foi perturbar o sono do seu gordo, chegou até ele e perguntou: “ Seu gordo o que o sr esta levando embaixo dessa lona” o gordão puto porque foi acordado “ meu amigo tú é otário! Não tá vendo que é peixe”.
“Meu amigo você esta levando peixe e não me fala nada” “ desde quando te devo satisfação, te dou uma carona e tu vira meu sócio é?” Não! O acontece é o seguinte, esse pessoal que tá ai na fila tá morrendo de fome, tem pessoas passando mal, já imaginou se alguém morrer e teu peixe apodrecer. Quando as pessoas perceberem eles vão te linchar e como estou com você vai sobrar para mim também que fui conivente.
Acho melhor você doar um pouco de peixe para as pessoas mais necessitadas, “que nada eu vou dar nada de graça não” falou o seu gordão. Tudo bem mais eu vou logo avisar eles para livra a minha pele e da minha mulher... Saiu caminhando, seu gordo olhou para o chão pensando, então disse: “ espera ai Danilo faz o seguinte, sobe ai e pode tirar ½ metro de lona e doar alguns peixes”. Danilo não contou conversa, subiu e os primeiros peixes quem ganhou foi a senhorinha que estava mal e seus parentes, deu-lhes os peixes e disse a seu sobrinho, olha não volta na fila porque voçe já pegou o seu deixe para quem ainda não ganhou. A tiazinha era evangélica e falou bem alto isso é coisa do “senhor”. Danilo começou a distribuir o peixe e disse esse peixe é do senhor. Pessoas que viram as primeiras passarem com peixe achara que Danilo estava vendendo pois na parte de baixo da carroceria estava uma muvuca grande, então o pessoal começou a embolar o dinheiro e jogar no Danilo pedindo um peixe em troca, eram notas de 1 barão que ali não queria troco queria era o peixe para matar a fome. Seu gordo quando viu isso, balançou o caminhão subindo até onde estava Danilo em seguida já passou foi a vender o peixe. Nesse ínterim teve um malandro que tinha pego o peixe de graça e entrou na fila novamente, e no meio da confusão ele pedia dois peixes do Danilo que agora já tinha entrado no ritmo do dono da carga e vendia os peixes. “Danilo “pergunta antes de entregar o peixe “Cadê o dinheiro” O malandro diz” Tu não falou que esse peixe é do senhor” Danilo sem perder o rebolado e como sempre pensando rápido respondeu: “ Sim é do senhor gordo aqui do meu lado” em seguida deu uma baita gargalhada, e o malandro deu meia volta e foi embora. Levou uma hora e meia ate todo mundo esta com seu peixe, sentindo que sua missão tinha chegado ao fim Danilo botou a lona de volta, pegou três peixes e foi preparar.
alegria voltou a imperar na vila de caminhões, foi aquela barulheira todo mundo fazendo um foguinho parecia aqueles filmes de cowboy quando os índios mandam sinais de fumaça... u delicioso cheiro de peixe assado no ar.
Quando deu duas da tarde estava o maior silencio novamente, o barulho que vinha era do dominó de alguns caminhoneiros, do ronco das pessoas dentro dos ônibus e das araras vermelhas que de vez em quando passava de casal. Danilo não fazia diferente, estava na sua rede deitado com sua mulher tirando um cochilo embaixo da carroceria do caminhão do seu seu gordo que ainda naquele momento finalizava a contagem da grana que veio embolada, ele esticava ela em cima de um banquinho de madeira.
Quando deu três horas exatamente, chegou os caminhões do BEC no inicio do atoleiro, atravessaram a lama trazendo os marmitões de campanha, na frente da tropa um tenente com a pistola no coldre. Ele estava achando tudo muito estranho, “será que já estão todos mortos”
Ninguém foi recebê-los ou brigar por um pouco de comida. Nesse momento ele passou do lado da rede da velhinha que o Danilo primeiro deu os peixes, ela bem tranquila enrolava os caixinhos do cabelo com o dedo indicador. O tenente perguntou “o que esta acontecendo aqui minha senhora, disseram-me que a coisa aqui estava calamitosa, tinha pessoas passando mal por falta de comida, eu chego e tá todo mundo dormindo”
A velhinha por sua vez senta na rede e diz: Meu filho deixa eu te explicar, estava todo mundo realmente morrendo, eu mesma passei mal de fome. Mas teve uma alma caridosa, aquele rapaz lá do caminhão com a lona azul, ele distribui-o um pouco de peixe de graça para todo mundo, é por isso que tá assim todo mundo de barriga cheia. È uma pena que o peixe dele até ele sair daqui vai se estraga o gelo dele já esta no fim... Olhe com uma atitude dessas o rapaz merece ser o primeiro a sair, é o que vai acontecer. Com essas palavras o tenente se despediu da senhora foi em direção a um trator de esteiras D8, subiu no estribo dando a ordem para o operador: “abre uma trilha pela lateral ate aquele caminhão lá à frente com a lona azul”.
Enquanto isso Danilo cochilava ao lado de sua amada bem tranquilo, despertou ao ouvir o som de madeira rachando algumas pequenas árvores caindo, falou: “acho que chegou nossa hora, é o hercolobus”, não demorou muito e todos estavam acordados, aquela maquina enorme e fumegante estava parada ao lado do caminhão, o tenente agarrado na grade protetora do piloto perguntou: “quem é o rapaz dos peixes” O senhor gordo automaticamente respondeu “sou eu mesmo”. “então funciona seu caminhão e manobra ele que a maquina vai te arrasta até lá fora do atoleiro para que sua carga não estrague”. O gordão esfregou as mãos e disse: “vamos Danilo”. Ele já estava feliz porque o dinheiro que apurou ali era mais do que o preço da carga que venderia em Boa Vista e agora ainda vai salvar o resto é bom demais.
Dessa vez seu gordo convidou o Danilo para ir dentro da cabine para não pegar chuva, ao longo da viagem seu gordo falou: Danilo você é pé quente demais, cara tu vai trabalhar comigo. Danilo falou; “nem a pau meu, de jeito nenhum eu trabalho com você camarada” O gordo parecia entender a mensagem deu uma baita de uma gargalhada, ela já passava a conhecer aquela mente indomada.
O mais interessante foi que Danilo me contará essa historia há muito tempo, isso aconteceu em 1987. Recentemente em 2012 encontrei o Danilo no centro de Boa Vista. Bem perto do Maior templo da Assembleia de Deus em Roraima, ele fica na Av Benjamin Constant. Danilo estava com um saco nas mãos onde tinha uns 4k de “saputi” (Manilkara zapota) uma fruta deliciosa, segundo ele o próprio “O néctar dos Deuses”. Perguntei: quanto è o saco com tudo? Vou fazer barato por você ser meu brother, é 10 paus. De repente vem passando uma senhora aparentando uns 80 anos, ela estava amparada por uma jovem, talvez sua filha ou neta. Nós estávamos na calçada que era estreita. Peguei no braço do Danilo e falei: “espera um pouco, deixa a vovó passar” a jovem passou com a senhorinha, Danilo ficou olhando para ela e a chamou pelo seu nome, ele levantou um pouco a cabeça olhou para o rapaz e logo conheceu “Danilo como vai”. Mesmo antes de lhe responder, Danilo virou para min dizendo: lembra aquela historia dos peixes na BR 174. “Essa aqui é a senhora para quem primeiro eu dei o peixe”. Ficamos ali conversando um pouco a vovó confirmou a historia do Danilo depois ela e sua neta foram assistir ao culto, e é por isso que eu resolvi escrever essa historia. Uma homenagem ao meu amigo “Danilo Capoteiro” o homem que conhece todos os pés de frutas do centro de Boa Vista capital de Roraima e também um grande aventureiro das serras selvagens do norte de Roraima, mas isso é para o próximo livro.