Frederico: o andarilho da história

Nos contam os mais antigos, que lá pelos anos 70, existia pelas redondezas da cidadezinha de Limoeiro um andarilho de aproximadamente 60 anos de idade, Seu Frederico. Ele viajava em sua casa ambulante, uma carruagem. E nela, levava seus poucos pertences: um colchão velho com algumas cobertas, um lampião, um fogareiro, alguns utensílios como panelas e facas, algumas ferramentas de trabalho e sua inseparável companheira: uma gaitinha de boca.

Pelos períodos em que Seu Frederico passava pela cidadezinha, arrumava alguns bicos na lavoura, ajudava os fazendeiros com a lida dos gados, e assim, levava a sua vida, ganhando comida e alguns trocados por onde passava. Fazia amizade fácil, sua simplicidade e honestidade eram admiradas.

Nas noites quentes, após o árduo trabalho, os agricultores se reuniam em algum ranchinho para conversarem, e lá estava seu Frederico, contando causos e animando o pessoal ao som da sua gaitinha. Desse modo, se tornava popular e muito querido pelos moradores, deixando saudade ao ir embora dizendo:

-Tenho que ir, o dever me chama, mas não te preocupes, a qualquer hora apontarei novamente por estas bandas.

E assim, lá se ia Seu Frederico à procura de novos lugares e amigos. Ninguém conhecia o passado do velho andarilho, que da sua família nada contava, e quando lhe perguntavam, desviava do assunto sem responder, com um ar de tristeza refletido em sua face.

Quando as viagens eram longas e demorava a se aproximar de algum vilarejo, Seu Frederico se alojava nas proximidades de algum rio, onde podia lavar suas poucas peças de roupas, pescar alguns peixes e usufruir da água para a sua sobrevivência.

Em uma dessas suas paradas, Seu Frederico saiu pela mata em busca de alguns alimentos, lá pelas tantas, no meio da mata, encontrou um casarão cercado por árvores carregadas de frutas vistosas que davam água na boca. Chamando pelo morador da casa, ninguém se manifestou.

Como as frutas já estavam maduras e caindo ao chão, resolveu recolhê-las, a fome já estava lhe apertando. Enquanto comia distraído debaixo do pé, percebeu a aproximação de um cavaleiro, e pensando ser o dono, logo foi levantando para se explicar com ele.

O cavaleiro, ao avistá-lo, desceu do cavalo e sem tempo para justificativas, empurrou o pobre senhor contra a árvore e apontou-lhe uma arma para a sua cabeça, indagando-o quem dera autorização para pegar daquelas frutas. O andarilho, se vendo a beira da morte e imaginando que assim seria o seu fim, fechou os olhos e num minuto de silêncio, pediu a Deus que não permitisse morrer antes de reparar os danos cometidos no passado, dizendo ter se arrependido profundamente de tudo o que havia feito.

Ao abrir os olhos, olhou para todos os lados assustado e sentiu um imenso alivio ao ver que tudo havia sido um sonho. Mas lá, bem no fundo, sabia que não se tratava de um simples sonho, mas sim, que estava na hora de voltar e encarar o pecado que por tantos anos lhe fez ser um fugitivo.

Ainda meio ressabiado com o sonho, catou tudo o que pode carregar e voltou para o seu alojamento jogando pelos carreiros as sementes das frutas que degustava. Ao anoitecer, mal pode dormir, sentia-se confuso e muitos pensamentos vinham a sua cabeça.

Por três ou quatro dias ficou ali, no mesmo lugar, apenas meditando qual decisão tomaria. Por um lado, pensava em deixar tudo como estava, pois sua vida era boa e depois, tanto tempo já havia se passado que ninguém mais lembrava da sua história, mas por outro lado, sabia que havia cometido um grande crime e que certamente ainda seria castigado por isso, carregando o peso na consciência e a dor que impedia a sua felicidade.

A gaitinha de boca era a sua única lembrança boa que trazia do passado, quando, rodeado por seus filhinhos, tocava músicas alegres enquanto a esposa preparava o jantar. E aos domingos, quando toda a família e amigos se reuniam e faziam aquela festa na companhia dos colegas gaiteiros. Ao relembrar todos esses momentos, Seu Frederico ficou impedido de conter as lágrimas, se vendo agora sozinho no mundo, ele, que no passado, dificilmente ficava um instante sem a companhia de alguém querido.

Agora, restava lastimar a estúpida ideia que teve em propor a sua esposa que aprendesse a cantar e juntos formassem uma dupla para tocar em barzinhos e lanchonetes do povoado que moravam, mas, muito mais estúpida e cruel teria sido sem dúvida, a sua atitude ciumenta e explosiva que teve naquela noite, a noite do fim da sua felicidade, da harmonia que tinha com seus filhos e amigos, a noite em que conseguiu pegar apenas algumas coisas e fugir para bem longe.

Desde então, viveu como andarilho pelo mundo, não quis mais formar outra família e nem se apegar a ninguém, pois a saudade que tinha da sua família e amigos era por si só um imenso castigo.

Quase a beira da loucura de tanto desencadear lembranças do passado, encheu com água todos os recipientes que tinha, fez um pequeno estoque de comida com o que conseguiu encontrar e partiu, rumo ao povoado que vivia quando era feliz.

Tantos anos já havia se passado, que a essas alturas já se encontrava muito distante, levando, após a decisão de voltar, alguns meses para então chegar no lugar da tragédia. Tudo estava diferente, mal reconheceu o lugar, e também, por ninguém havia sido reconhecido. Seus filhos, que quando os abandonara eram jovens, agora já deveriam estar casados e até quem sabe, lhes dado netinhos.

Perguntou em alguns estabelecimentos por seus familiares mas ninguém sabia do paradeiro dos mesmos. Por alguns dias perambulou pelas ruas procurando notícias e nada, até que então, lembrou de uma antiga mercearia a qual o dono era muito amigo seu e foi até lá para ver se a mesma ainda existia. Avistando seu velho amigo do lado de dentro do balcão e reconhecendo-o devido a uma cicatriz que possuia no nariz, segurou-se para esconder tamanha emoção e disfarçar sua identidade na tentativa de obter alguma informação a respeito de seus filhos.

-Boa tarde! To procurando por Roberto e Frederico Paes Filho, o senhor sabe aonde posso encontrá-los?

-Boa tarde! Ah, esses cidadãos são moradores antigos daqui, um tem uma banca de jornal na praça e o outro tá morando lá pros lados do Capinzal, trabalha na plantação de soja com mais outros camaradas, o Senhor é parente?

-Não, só preciso dá um recado a eles, eles aparecem por aqui?

-Faz tempo que não vieram mais, acho que andam bastante ocupado.

-Mais tá bom então, eu vou ver se os encontro, obrigado!

-Se eu os ver digo que o senhor tava procurando, mas qual é seu nome?

-To com pressa, qualquer hora volto pra conversarmos mais.

Rumo a praça, Seu Frederico foi atrás de seu filho sem saber qual dos dois poderia encontrar. A ansiedade tomava conta do andarilho e quanto mais perto estava, maior era seu nervosismo. Ao avistar uma banca, aproximou-se devagar com o coração acelerado, e observando o atendente, sua feição, o seu sorriso, seu olhar, reconheceu que era sim seu filho. Com os olhos encharcados de lágrimas e as mão trêmulas, quase sem voz, chamou por seu filho:

- Fredi, é você meu filho?

O atendente olhou espantado e ainda com muita mágoa e ressentimento, gritou em forma de desafabo:

- Quem? Meu pai?...aquele que por um ciúme idiota tirou a vida da minha própria mãe? Pensei que você tivesse morrido também, e bem que gostaria que tivesse.

- Eu entendo sua raiva meu filho, mas me perdoe, jamais queria ter feito o que fiz.

- Seu arrependimento não trará minha mãe de volta, você deve pagar pelo que fez!

E assim continuaram, quando já cercados por um bando de curiosos que passavam pela praça, guardas perceberam a discussão e acabaram levando os dois para a delegacia.

Seu Frederico ficou preso pelas acusações, enquanto Fredi foi procurar Roberto para contar o ocorrido.

Na pequena comunidade não se falava em outra coisa, esse era o comentário da vez. Uns diziam que o velho deveria ser morto, outros ficavam com pena, alguns o chamavam de covarde por ter fugido, outros o achavam corajoso por ter voltado. Mas quem mais sofria com essa história toda era Roberto e Fredi, pois embora ainda estivesse aberta a ferida que o pai havia causado e a dor da perda da mãe ser incontestável, sabiam o quanto o pai os amava e havia batalhado para dar-lhes uma vida digna.

Passaram-se meses, os moradores já não comentavam mais o episódio, e o velho, na cadeia estava esquecido. Funcionários da delegacia, percebendo a tristeza do pobre homem que passava a maior parte do tempo chorando, entraram em contato com os filhos e então, estes resolveram visitá-lo.

Vendo a aparência abatida do pai, Roberto e Fredi amoleceram seus corações e num forte abraço perdoaram o velhinho, que abrindo um sorriso, sentiu-se imensamente aliviado. Daquele dia em diante, Seu Frederico contagiava seus colegas da cadeia com o som da sua gaitinha, e nas visitas quase que diárias dos seus filhos, noras e netos, contava suas histórias do tempo que permaneceu longe.

O andarilho, que de viajante passou a ser prisioneiro, permaneceu o resto da sua vida na cadeia, preso numa cela, porém, libertado do peso da sua consciência e feliz, feliz por ter sido perdoado.

-Papai, aquela sua gaitinha de boca era do seu vovô?