A Aldeia (XXXI)
 
Kally usou a sua prerrogativa de ser rainha e conseguiu driblar o cerco que impuseram à presença de Amom na aldeia. Até aquele momento só mesmo Aulah,  Ormec e o próprio rei Auan é que tinham tido acesso e conversado com Amom. As demais pessoas não tinham permissão para vê-lo, porque imaginavam, até com certa dose de razão, que as demais guerreiras, ansiosas por saberem notícias dos seus maridos e familiares, pudessem perturbar a paz de quem estava em recuperação. 
Mas o próprio Amom já se sentia incomodado com a situação imposta, já dissera para Aulah que saíra de uma prisão e fora para outra. 
Seu corpo sentia necessidade do sol, seus olhos ansiavam pela claridade, os pulmões pelo ar puro, e tudo aquilo lhe trazia uma certa angústia, um sentimento de impotência. Por outro lado, sem expandir suas necessidades imediatas, o ódio que cultivava por seus raptores aumentava, fermentado pelo desejo da vingança.
Quando Kally entrou no cantinho do quarto em que Amom estava com Aulah, ele abriu um sorriso de alegria:
- Que bom que você veio, Kally, estava sentindo a falta das outras pessoas...
- Estou satisfeita por saber que você está bem, Amom, eu quero conversar muito com você, já sei que nossos guerreiros estão vivos, mas primeiro vamos ter de sermos pacientes, porque antes de tudo vou conversar um pouquinho com a Aulah. Você pode ouvir o que temos a falar, mas depois a conversa é nossa...
Sabe, Aulah, as mulheres se compreendem melhor, e tenho alguma coisa para lhe contar.
Aulah ouviu com paciência todo o relato de Kally sobre os seus sonhos, ou visões, como ela dizia, sobre a beleza do Orixá Xangô, comentando que se ele fosse um ser vivente e não do reino de Orum,  ela teria se apaixonado por ele, relatou também sobre o sonho da noite anterior em que viu Omulu, do medo que sentira da morte no momento da visão, e finalmente sobre o encontro com a Mãe Noah.  
Disse que ficara impressionada com o que a mãe Noah lhe dissera,  quando afirmara que estava em suas mãos a possibilidade do resgate dos guerreiros aprisionados e de seus filhos... Depois de dizer-se protegida por Xangô que lhe asseguraria uma grande vitória, mostrou sua decepção por não ter tido o apoio de Auan nessa empreitada.
- O meu rei ficou amedrontado, Aulah... Nesse momento Amom interrompeu Kally:
- Auan é um homem de bom senso, Kally, essa não é uma empreitada para amadores, eles têm guerreiros sanguinários, assassinos profissionais, que defendem com bacamartes e arcabuzes,  nós só temos nossas lanças e flechas... Hoje nosso exército é de mulheres, Kally, como vamos brigar com profissionais?
 Sem querer ser pessimista, há uma diferença de forças muito grande, se perdermos seremos escravizados, seremos levados para um lugar estranho e teremos de trabalhar pelo resto de nossas vidas sob o açoite de chicotes...
- Não é esse o nosso exército, Amom, irei procurar os guerreiros das tribos Koré e Maurid e outras tribos que já tiveram seus guerreiros raptados e presos, eles se juntarão a nós, Amom, e você, como foi o único que conseguiu escapar daquela prisão, será o nosso general.
Os olhos de Amom brilharam:
- Assim é diferente, com a ajuda deles poderemos ter chances de vencê-los. 
Aulah, apreensiva, interviu:
- Kally, acho melhor analisarmos tudo isso com mais calma, com o pé no chão, nós estamos nos alicerçando em sonhos...
- Lógico que tudo deve ser muito bem planejado, não poderemos ser afoitos e por tudo a perder, mas é uma hipótese que me agrada, poderemos por o projeto em andamento, Kally, mas uma coisa que acho muito importante, teremos de convencer Amom. Esse será o nosso primeiro passo. ..
- Concordo plenamente, disse Aulah.
- Então vamos marcar um encontro com ele, primeiro vamos ouvir sua opinião, depois apresentaremos nossos argumentos, falou Kally com entusiasmo.