Encontro na névoa

ENCONTRO NA NÉVOA

Miguel Carqueija


Em meio à névoa cinza-esverdeada e quase com a espessura de uma sopa de ervilhas, caminhava um homem esguio e lépido, e em seus passos e sua atitude podia-se notar uma grande determinação. Àquela hora da noite, as vielas e os becos daquela região miserável da cidade achavam-se envoltos em silêncio e desolação; e era surpreendente que um indivíduo isolado se arriscasse, de modo tão afoito, em tais paramos.
Entretanto, ele parecia saber bem o que estava fazendo. As vias estavam desertas, à exceção de um ou outro boleima vagamente avistado em alguma soleira, curtindo o resto de uma ressaca ou “viagem” de droga. O homem seguia em frente, sem se importar com tais aparições, e finalmente, no final de uma estreita alameda, tocou a campainha de uma vetusta estalagem em cuja tabuleta se lia: “A Bona-Hira”.
Após um minuto de espera, a porta se abriu e apareceu uma mulher gorda e madura, os cabelos curtos ocultos por um lenço e um olhar feroz, que assim se dirigiu ao recém-chegado:
— Entre logo, antes que alguém o veja.
Mesmo refletindo em como tal hipótese era pouco provável no meio daquele “smog”, o homem não se fez de rogado e entrou imediatamente.
Passaram por um vestíbulo vazio e soturno e dirigiram-se, por um escuro corredor, até os fundos do estabelecimento. A mulher iluminava o trajeto com uma lanterna. Chegaram a uma suja e desarrumada despensa onde, entre outros trastes espalhados pelo chão, achava-se um homem gordo e nauseabundo, roncando com a cabeça sobre um saco de farinha de trigo.
— Não se importe com ele. É o meu marido, e não vai acordar tão cedo do porre.
— Acho que cheguei a conhecê-lo, Laureana.
— Bom. Me acompanhe.
Subiram por uma escada estreita e sinuosa que levou a uma espécie de água-furtada onde pelas paredes achavam-se armários embutidos e prateleiras.
— Você deve voltar antes que o nevoeiro se dissipe. O seu navio está pronto para o retorno?
— O meu brigue está sempre pronto, você bem sabe.
Ela deu um sorriso horroroso, mostrando uma boca cheia de dentes furados, estragados ou ausentes.
— Bem. Vamos ao que interessa.
Assim dizendo ela subiu numa cadeira e pôs-se a remexer entre as traquitanas de um dos armários embutidos e por fim conseguiu abrir uma pequena portinhola invisível. Pegou um rolo de papiro e passou-o ao pirata.
Este examinou-o sem demora, estendendo-o diante da sua própria lanterna. Imediatamente formou-se um holograma móvel no ar, mostrando claramente, em cores, um trajeto por uma região inóspita, começando porém num ponto conhecido ainda que distante.
— Está satisfeito? — perguntou a mulher.
— Dezenas de homens e mulheres perderam as suas vidas por esse objeto — murmurou ele, enquanto contemplava o espetáculo.
— Nunca consegui ver o final.
— É claro. Esses hologramas não são resolúveis inteiramente só com a lanterna. Há uma tecnologia especial e secreta para chegar ao fim.
— Você deve ter os meios para chegar ao final. Você é o Longo Bacamarte — observou a mulher, secamente.
Ele não respondeu, mas tirou de sua roupa um saco de moedas e passou-o à estalajadeira.
— Terá mais, muito mais, se eu obtiver sucesso.
— Agora vá, por favor. Não quero que saibam que você esteve aqui.
— Eu muito menos.
Laureana acompanhou-o por todo o trajeto inverso até a porta e ao despedir-se, recomendou:
— Procure se apressar. Esse “fog” de sopa de lentilhas logo se dissipará e você sabe qual é o risco.
— Está bem, mulher. Deus te cuide, pois você foi de grande valia.
O Longo Bacamarte afastou-se, apressando o passo, auxiliado por sua lanterna. Suas botas chapinhavam em frias poças que infestavam as ruas esburacadas e seus olhos azuis e penetrantes mantinham-se atentos a todos os detalhes. De vez em quando o pirata alisava sua barba, espessa e negra em volta do queixo, por causa das cristalizações que a geada provocava.
Subitamente, num largo onde, pelo maior afastamento das casas, a neblina já ameaçava se dissipar, apareceu um grupo estranho e ameaçador. Nem todos eram humanos, mas os humanos não eram menos sinistros. O pirata conheceu logo que eram os demônios da névoa, como assim se intitulavam os assaltantes que acossavam transeuntes descuidados que circulassem por aquelas tenebrosas vias na hora em que o fog se dissipava, deixando de oferecer proteção.
— Ora, quem vem lá — disse um orc, falando a língua geral. — Assim bem vestido, deve ter ouro e jóias!
Bil, o Longo Bacamarte, não estava tão bem vestido assim, mas o seu resistente casaco parecia artigo de luxo num bairro de pessoas esfarrapadas.
— Saiam do meu caminho — ordenou o bucaneiro, desembainhando a espada.
— Vamos nos divertir, pelo visto! — exclamou o homem que, aparentemente, capitaneava o bando.
O pirata calculou, a grosso modo, quais seriam as suas chances. Seria melhor fugir, pois o nevoeiro estava se levantando com rapidez assustadora. O grupo tinha, à primeira vista, uns seis malfeitores.
— O que vocês querem, idiotas? Sumam daqui!
Bil olhou para uma esquina estreita. Lá estava uma garota longilínea, cabelos negros compridos, calças compridas marrons, blusa branca de manga comprida, portando um fino florete. Bil sabia que aquela arma de aparência frágil era mortífera em mãos habilidosas.
Um dos orcs, cuja noção de cavalheirismo orçava próxima a zero, pulou sobre a garota brandindo uma cimitarra enferrujada; mas a jovem espadachim, com grande agilidade, espetou-lhe o pulso certeiramente, fazendo a grande arma branca tombar no chão.
Bil optou então por uma solução rápida. Atirou uma bomba de magnésio sobre os atacantes, que recuaram ofuscados. Nesse momento a garota o alcançou e o puxou pelo braço esquerdo:
— Por ali, depressa!
Ele aceitou a deixa e os dois dispararam por um beco, mas Bil não esqueceu o seu objetivo:
— Obrigado, moça, mas eles já devem ter desistido. Sigo o meu caminho. Adeus!
Ele correu por uma travessa que levava na direção do porto, mas a garota correu em seu encalço.
— Espere! Deixa eu ir com você!
Ele encarou-a com firmeza:
— Não estou interessado, moça.
— Por quem você me toma? Não sou uma meretriz. Alem disso, eu sei quem você é. Você é o Longo Bacamarte!
O homem estremeceu.
— Como você sabe disso?
— Não seja ridículo. Você está em milhares de cartazes de “procura-se”.
Ele sorriu amargamente.
— É mesmo. Não sei por que me procuram tanto, já que ninguém me quer.
— Ninguém o quer vivo... — e ela sorriu. — Por que não me leva com você, Longo Bacamarte? Seu brigue está no porto, não está?
Ele pôs-se a caminhar, e ela o foi seguindo.
— Uma garota não deveria querer entrar num navio pirata — observou Bil.
— Não tenho nada a perder. E não tenho medo de cara feia. Os seus amigos terão de me respeitar.
— Quem é você, afinal? O que está querendo?
— Me chame Virgínia. O meu verdadeiro nome morreu. Sabe... não tenho mais para onde ir.
— O que houve com você?
— Amei um homem... — ela crispou os punhos. — Era lindo como a aurora na serra e suave como um ninho de passarinhos. Mas era um canalha. Entreguei-me a ele, e quando se satisfez largou-me e sumiu no mundo. Meus pais e meus irmãos expulsaram-me de casa, chamando-me de prostituta. E ele prometera levar-me ao altar...
Ele sorriu sarcasticamente.
— As mulheres já deviam estar mais sabidas. Essa é uma história muito comum.
— Hoje eu sou sabida, moço, o bastante para não confiar mais nos homens. Nenhum mais me terá, até o dia em que algum saiba conquistar o meu coração com nobreza e generosidade, e realize a promessa do traidor, de casar comigo. Portanto, Longo Bacamarte, não tenha idéias a meu respeito! Tudo o que eu quero é um trabalho para me sustentar. Não estou procurando homens!
— Você tem sorte. Eu procuro por uma mulher, e só uma, e você não é ela.
— Uma mulher? Explique-se!
O olhar de Bil perdeu-se num devaneio.
— Houve uma mulher a quem eu amei, e só a ela. E ela sumiu no mundo, e desde então eu a procuro. É uma longa e triste história, não tenho tempo de contá-la agora.
Virginia passou seu braço direito no esquerdo de Bil:
— Uma história longa, triste e bela, com certeza. Espero que um dia você me conte. Vamos, Longo Bacamarte. Não devemos perder tempo.
Eles estugaram o passo, o pirata perdido em pensamentos.
— Diga, Longo Bacamarte... qual é seu nome afinal?
— O meu nome verdadeiro morreu — disse ele, repetindo exatamente a frase dela. — Me chame Bil.
— Então diga, Bil, onde está o seu bacamarte?
— Tivemos sorte, que aqueles bandidos não tinham armas de fogo. De fato, deixei o bacamarte no navio. Eu tinha muita pressa e não queria ser reconhecido.
— Você é um homem corajoso. Acho que gostarei de tê-lo como amigo.
O Longo Bacamarte não respondeu. Pensava no mapa holográfico e na grande aventura que se abria à sua frente.

NOTA: Aqui começa a saga "As aventuras do Longo Bacamarte", um livro ainda em construção.
NOTA EM 29/12/2015 - o livro está pronto, à procura de uma editora.

"Farei meu destino", de Miguel Carqueija, é uma fantasia mística publicada por Giz Editorial: história da "deusa da Lua", Diana, no passado e no futuro da Terra.

"O estigma do feiticeiro negro", de Miguel Carqueija e Melanie Evarino, é um romance de alta fantasia: a saga da elfa guerreira Gislaine Pétala (lançamento da Editora Ornitorrinco).


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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 21/06/2013
Reeditado em 01/11/2019
Código do texto: T4351890
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