O Baronato de Shoah - Seolferwulf
1. Drömma
Fracos, os raios de sol nasciam entre as nuvens e sumiam antes de tocar o chão. Uma densa camada de Névoa surgia nas montanhas e formava anéis em torno dos picos, serpenteando entre as árvores e cascateando cordilheira abaixo.
A floresta se espalhava na encosta, criando um labirinto de árvores altas e sombras densas em meio à neve. Dentro dela, o imperceptível círculo rochoso. Quase vinte metros de raio formados por pedras variadas, algumas inexistentes na região, só confirmavam a teoria que o local fora criado por terceiros, e não pela natureza através do tempo.
O círculo mantinha, ainda assim, uma aura onírica que trazia paz a quem se aproximava. Ao seu redor, a floresta era mais viva, exalando um cheiro forte de mata virgem. O ar mais leve, os animais espertos e fortes. A relva um tapete esmeralda, úmida devido ao clima.
O Drömma era um local sagrado para os senoi, criado muito antes de qualquer império humano ou titânico. Antes mesmo da existência dos elfos, ou das primeiras referências aos syrians, o povo da noite, o Círculo dos Sonhos já recebia visitantes anualmente, mesmo que o próprio conceito de tempo ainda não existisse.
Aquela era uma raça esquecida há anos. Nas lendas, conhecidos como trolls, monstros desprezíveis que devoravam bebês. Na realidade, os senoi eram um povo pacífico que sequer construía armas e preferia se afastar sempre que uma ameaça pairava sobre eles.
Estrondos na floresta, mas nenhum animal fugiu do que vinha pela mata. A maioria olhou com admiração os mais antigos seres de Nordara. Feras maiores, como lobos e ursos, curvaram discretamente as cabeças, um sinal de respeito pelos viajantes.
O precursor era um humanoide alto, cujos cabelos assemelhavam-se a fios de cobre trançados entre folhas e carvão. A pele avermelhada, de pedra, com sulcos profundos em sua extensão. Usava roupas pesadas, feitas de peles de animais. Não levava armas, mas uma caixa de madeira.
Mais trolls vieram por caminhos diversos. Seres muito velhos, de pele cinza, azul, verde, preta ou branca. Os mais raros, bem como os maiores, eram os marrons. Havia apenas um vermelho, Erion.
Organizaram-se ao lado das pedras mais semelhantes a si mesmos. Apesar de todos parecerem velhos, o líder vermelho se destacava pelas camadas de cinzas em sua pele e por uma paciência que só os mais idosos são capazes de transmitir. Havia mais pedras de sua cor, mas não havia trolls para elas. Ele passou por um senoi jovem, o peito com um buraco abrigando um ninho de pássaro.
– Zyon… – continuou até parar ao lado de um troll cinzento e de cabelos prateados. Com algo que poderia ser definido como um sorriso em seu rosto, o ancião disse:
– Opalla, há quanto tempo? – sua voz cavernosa soou baixa, quase impossível para um humano ouvir. Para a raça, porém, o importante não era o volume, mas a vibração. Isso que dava a eles o sentimento do que queriam passar em uma conversa.
– Tohat Erion, mais de trinta luas... – ela afirmou. Sua voz, porém, não era como a do curandeiro. Parecia mais um som uniforme, sem entonação alguma. Erion se preocupava que o número de jovens assim crescia cada vez mais. Passividade destruindo sua cultura, fazendo os trolls esquecerem coisas básicas, como cantar ou dançar. A raça declinava ano após ano e o insucesso na busca por uma solução minava sua vontade.
Parou no meio do círculo duplo formado por trolls e pedras. Solene, abriu a caixa de madeira e virou-a, deixando todo o pó espalhar-se com o vento.
– Mais um irmão nosso morreu... Quantos de nós ainda existem? Seiscentos? – sentenciou o tohat.
Os olhos castanho-escuros de Erion passavam por seus companheiros, curandeiros como ele que vinham de longe compartilhar os sonhos de suas tribos. Pois assim viviam os senoi, baseando-se nos sonhos para decidirem sobre tudo. O lugar onde viveriam, os nomes dos recém-nascidos, as migrações. Para eles todas as coisas do mundo possuíam alma, animais, plantas e todas as manifestações da natureza. Através dos sonhos, os senoi buscavam entender esta união de almas, à qual davam o nome de “Espiral”.
– Nyankomsem, as palavras de um deus do céu nos dizem que a era dos trolls acabou – os senoi continuaram quietos, imóveis como as pedras. De olhos fechados, emitiam um som com as bocas que lembrava o zumbido de abelhas.
– Ka ora! Eu vivo! – Opalla, a jovem troll, iniciou o cântico, seguida pelos demais. O discurso de Erion soando junto.
– Há anos os Titãs foram banidos de nossa terra pelo Messias Humano – Erion caminhava pelo círculo, sua voz perdera a rouquidão e ficava mais alta a cada instante. Fechou o punho ameaçadoramente enquanto seu rosto se retorcia. – E quanto a nós? O que sobrou para a mais antiga raça deste mundo?
Cada palavra do troll atingia o coração dos seus irmãos como uma avalanche. Um a um, os curandeiros ergueram e baixaram os pés em ritmo cadenciado, lento, como tambores. Urravam a cada três batidas no solo.
– Ka mate, Ka mate. É a Morte, a Morte – Opalla, sempre, acima dos outros. Vibrando pela primeira vez desde que chegara.
– Éramos pedras que ganharam consciência, não pedimos a vida, não queríamos mudar. Imersos no mundo dos sonhos ao lado de nossos Gurag, espíritos professores, que nos ensinaram sobre a música, a dança e as artes do espírito. Nyankomsem – Erion passou alguns segundos olhando para seus companheiros, medindo o tempo que demorava para seus espíritos sorverem suas sábias palavras e as tranformarem em parte de si, tal como faziam os humanos ao se alimentarem.
– Tēnei te tangata pūhuruhuru Nāna i tiki mai whakawhiti te Ra. Este é o Deus de Pedra que faz o Sol brilhar – gritaram os trolls.
Avalanches tiveram início nas montanhas próximas a eles. As pedras do Drömma tremeram. O som reverberou por toda a floresta. Só então os animais se espantaram e fugiram. Apesar de não haver fúria na cultura dos trolls, havia medo. E ele transbordava do Círculo dos Sonhos.
– Quantos entre nós ainda se lembram de como escrever? Nossa cultura está se perdendo conforme nossas mentes voltam a ser pedra. Estamos morrendo. Daqui a menos de cinquenta anos o último de nós fechará os olhos para sempre, e não haverá ninguém para espalhar suas cinzas no Drömma.
Um troll verde tentou se pronunciar, mas a única coisa que emitiu foram urros. Ficou claro que sua mente definhava, e provavelmente suas cinzas seriam jogadas no círculo no próximo ano. De súbito, as batidas com os pés cessaram e todos olharam na direção de um companheiro marrom.
Ele era muito maior que os demais, tendo pelo menos o dobro de altura de Erion. Seus pés afundavam na terra enquanto andava e as mãos iam ao peito, quando desabou de joelhos no meio do círculo. O líder virou o rosto, incapaz de presenciar a morte de mais um irmão. No entanto, despediu-se:
– Adeus, Nurah – o cântico no Drömma perdeu força. Rachaduras apareceram na pele do moribundo, um braço caiu, o outro esfarelou. O restante do corpo se desfez com o vento.
– Mais um volta a sonhar – murmurou Opalla. Em seguida, Erion declamou:
– Nós ensinamos à humanidade a arte que eles tanto amam. Entretanto, nós nos esquecemos dela, passamos a nos distanciar cada vez mais daquilo que nos torna seres vivos. Deixamos que a memória se apagasse e perdemos nossa capacidade de sonhar. Hoje, quantos são os trolls em nossas tribos que conhecem o Nyankomsem?
Erion se abaixou e forçou a mente a se lembrar dos desenhos que antes eram a linguagem dos senoi.
Cada risco na neve era uma cicatriz no próprio corpo, devido ao esforço que exigia. Cada traço era um amigo, um evento, um objeto. Buscava uma resposta para seu povo, mas a única coisa que leu foi um nome desconhecido:
– Diren.
Os demais pararam. O silêncio tão pesado como as batidas. Opalla questionou:
– O quê?
– Eu vi uma criança e uma mulher nas montanhas. É meu dever salvá-los. Os espíritos disseram isso – decretou Erion, com um aperto no coração. Queria uma salvação para seu povo, não aquilo.
– Você está enlouquecendo. Não há vida no pico das montanhas – retrucou Opalla. Respeitava Erion como um dos mais velhos curandeiros do círculo, mas estava desesperada. Os tohat mais velhos apoiaram-na com um urro em uníssono.
– Há quanto tempo nós começamos a questionar os desígnios dos gurags? – Erion expeliu toda vibração na voz, indicado sua fúria. Um de seus ombros rachou.
– Nosso povo está morrendo e você quer falar de gente perdida nas montanhas! Precisamos nos salvar, Erion! – Opalla avançou, tentando intimidar o feiticeiro. Ela era reforçada pelos demais, que fecharam a roda em torno de Erion.
– Minha decisão, Opalla.
– Vá, mas saiba que ninguém irá apoiá-lo. - Opalla abriu os braços, clamando mais apoio dos anciões, que balançaram as cabeças e urraram mais uma vez - Lembre que abandonou seu povo por causa de outros. Uma vez lá, seu espírito findará aos poucos. Você está preparado para isso? – ameaçou a troll.
– Não – respondeu Erion. – Mas também não estou preparado para morrer sem lutar. Os senoi sempre foram sábios, aqueles que levavam o conhecimento aos outros povos. Não seria este um sinal?
– E se não for? Sua mente está se tornando pedra. Não gaste suas últimas forças com a loucura. Encontre uma saída para nós, não para eles – Opalla fez-lhe um sinal de lamento e baixou o tom de voz.
O círculo se desfez e os tohat, cabisbaixos, seguiram de volta para suas tribos. Erion permaneceu na floresta, olhando para o resto da poeira de Nurah. Segurou nas mãos tudo que restou e recitou.
– Ó vida que agora é sonho, me leve para as montanhas, faça meu espírito entender o Nyankomsem uma última vez antes de partir. Mesmo que isto seja o fim de minha vida e de meu povo – Erion jogou o pó para o alto o mais forte que seus velhos braços permitiram. Os restos mortais de Nurah espiralaram ao redor do Tohat ao invés de se afastarem.
– Datu Bintung at jelong! – invocou. A bruma mágica e onipresente das montanhas, a Névoa, antes parada ali, juntou-se à espiral. Cinza e branco tomaram uma única forma que partia de Erion e subia até desaparecer acima das árvores.
De repente, uma voz grave.
– Erion Mah Meri, sua mente tem consciência de que poderá ser destruída?
– Sim.
– Tem consciência de que poderá morrer?
– Sim.
– Tem consciência de que os segredos aqui revelados pertencem ao sonho e somente a ele?
– Sim.
– Tem consciência do medo?
– Não.
De olhos fechados, Erion ouviu o barulho de portas se abrindo e sentiu um calor intenso envolvendo seu corpo. Por instinto, apertou a velha caixa de madeira contra o peito e deixou que a espiral de Névoa e pó o guiasse.
Entrava nas montanhas, atrás de uma criança desconhecida por causa de seus sonhos. Seu próprio povo poderia ser destruído por isso. Mas ele precisava tentar. Precisava ter esperança e sonhar com a vida.
Era a única coisa que restava.
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